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16 fevereiro 2011

DESAFIOS PARA A PESQUISA CIENTÍFICA NO BRASIL

Burocracia e impostos são piores que cortes no Orçamento, diz Lygia da Veiga Pereira, uma das mais importantes cientistas do país

Gilberto Scofield Jr.
O Globo

A geneticista Lygia da Veiga Pereira, 43 anos, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), cuja equipe foi a primeira do país a conseguir extrair e multiplicar células-tronco retiradas de embriões congelados, não consegue esconder uma ponta de frustração com as notícias de que um dos ministérios mais afetados pelos cortes de Orçamento foi o de Ciência e Tecnologia. Trata-se de mais um exemplo da pouca importância que o governo brasileiro dá à pesquisa científica, o que se traduz também nas instalações precárias e em orçamentos que flutuam ao sabor de constrangimentos políticos. Ela pede que o ministro Aloizio Mercadante encontre fórmulas de estimular a parceria do setor privado com a pesquisa, nem que seja por meio de doações a universidades e premiações a pesquisadores. "Os prêmios fazem uma coisa muita rara para o pesquisador no Brasil, que é dizer 'você é importante'", afirma. Confira abaixo a entrevista:

O GLOBO: O MCT foi um dos mais afetados pelos cortes no Orçamento anunciados pelo governo. Como os cientistas brasileiros veem isso?

LYGIA DA VEIGA PEREIRA: Qualquer decisão de Orçamento reflete, além das necessidades de cada pasta, o valor relativo que o governo dá às diferentes pastas. Não tenho dados para julgar se a área de Ciência e Tecnologia foi injustiçada ou desvalorizada com os cortes, mas espero que sua importância no desenvolvimento do país seja reconhecida na prática, com verbas e legislações adequadas. Caso contrário, não teremos aprendido nada nos últimos 15 anos e seguiremos fornecedores de matéria-prima e importadores de tecnologia.

O GLOBO: Qual a expectativa da comunidade científica sobre a gestão do novo ministro de Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante?

LYGIA: Ele já deu sinais que foram entendidos como positivos nas escolhas do presidente do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), o professor Glaucius Oliva (engenheiro eletrônico, ex-reitor da USP), que é um craque que todo mundo conhece há muito tempo, e o presidente da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), Glauco Arbix, que tem uma linha de atuação e de pesquisa em inovação. E como a gente sabe, inovação é justamente uma das fraquezas do país.

O GLOBO: E como ampliar a pesquisa científica?

LYGIA: Muito pior do que a questão orçamentária é a limitação da burocracia, principalmente na importação de materiais. A gente vive uma situação meio kafkiana em que tem verba do governo, mas uma boa fatia desse dinheiro que o governo nos dá ele pega de volta sob a forma de impostos sobre todos os reagentes importados que a gente precisa. Na minha área, 90% do que a gente usa é importado. Quando se compra um material para pesquisa aqui do Brasil, em reais, eles custam três vezes mais do que se comprássemos lá fora. Mas o pior ponto é mesmo a dificuldade que o próprio governo cria para esse material chegar até a gente.

O GLOBO: Como assim?

LYGIA: Nos EUA, se eu preciso de um reagente, no dia seguinte o produto está na minha mesa. Aqui, perde-se de 30 a 60 dias. Então, além de pagarmos mais caro, ficamos um tempo de braços cruzados. E o que acontece? Em 30, 60 dias, um grupo nos EUA consegue testar cinco hipóteses diferentes. Enquanto isso, a gente está aqui ainda tentando testar aquela primeira.

O GLOBO: Você já passou por isso?

LYGIA: O tempo todo. Outro dia recebi de um grupo da Inglaterra um carregamento de células através de um pacote por Federal Express. Eu então recebo um email do Fedex dizendo que a Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) exige que eu preencha três formulários, reconheça duas firmas, gere uma Guia de Recolhimento de impostos para a União (GRU), pague esta guia e envie isso tudo para as autoridades no Aeroporto de Viracopos. Isso levou uma semana. Graças a Deus o gelo seco estava lá. Muitos cientistas perdem animais por conta disso, o que é muito comum. Camundongos geneticamente modificados, por exemplo. O processo de liberação demora tanto tempo que, muitas vezes, os animais morrem sem alimentação, o que inviabiliza a pesquisa. No meu caso, se aquele material se perde, que credibilidade eu tenho com a minha parceira científica?

O GLOBO: Como resolver isso?

LYGIA: Essa situação não acontece porque o país não tem dinheiro. É pela burocracia e não precisava ser assim. Basta ter vontade política de mudar esta situação. Basta colocar na agenda que ciência é importante, fazer pesquisa é importante para o Brasil e a gente tem que facilitar a vida do pesquisador. O governo tem medo de que, se este processo for facilitado, abra-se uma via para o contrabando e as pessoas comecem a importar iPad dizendo que é material científico. Mas os cientistas que fazem pesquisa são poucos e conhecidos. Acredito que isso tenha mais impacto na pesquisa do que pequenos aumentos de verba.

O GLOBO: E a questão da inovação?

LYGIA: É preciso estimular a ciência aplicada, ter a iniciativa privada contratando todos esses doutores que a gente forma para eles fazerem pesquisa dentro das empresas. Já temos incentivos financeiros na Finep que são atraentes, inclusive empréstimos a fundo perdido. Mas, de novo: estes mecanismos precisam ser mais ágeis, as importações para pesquisa dentro da iniciativa privada precisam ser mais ágeis e os processos de acompanhamento destes projetos precisam ser mais flexíveis, porque, se um pedido demora seis meses para ser apreciado, é claro que partes dos procedimentos da pesquisa, pela demora, são modificados.

O GLOBO: Como as empresas privadas podem produzir mais pesquisa científica no Brasil, onde o tema ainda está amplamente nas mãos do governo e da academia?

LYGIA: As universidades precisam acabar com essa Muralha da China que é se recusar a pensar em uma pesquisa que vire produto, como se fosse horrível o cientista querer ganhar dinheiro com a pesquisa. Mas essa cultura até que vem sendo derrubada aqui. Nos EUA, os pesquisadores todos têm um pé na iniciativa privada, sem que isso desmereça seus trabalhos. Quanto mais o governo sinalizar que isso é uma coisa boa e desejável, mais rápida será esta mudança de cultura. Agora, a gente precisa que o nosso setor privado questione: bem, se a iniciativa de fomentar a pesquisa pelo governo é limitada, de que forma as empresas privadas podem ajudar? E isso seria ótimo porque a empresa privada tem uma flexibilidade bem maior que a academia. Pesquisa não pode ser uma atribuição exclusiva do governo.

O GLOBO: E onde entram os prêmios aos pesquisadores? Isso é importante?

LYGIA: Os prêmios fazem uma coisa muito rara para o pesquisador no Brasil, que é dizer "você é importante". A sociedade acha que o que você faz é importante. Mas a mensagem subliminar que o cientista no Brasil recebe, dada a infraestrutura na qual a gente trabalha e as dificuldades para a pesquisa, é que o que se faz aqui não é importante. E eu sempre achei que as coisas eram complicadas justamente porque eram serviço público. Mas Itaipu, por exemplo, está aí para mostrar que não é assim. Então, a universidade, a pesquisa, a educação estão funcionando desta forma porque não há interesse. É também uma questão de valores. Se acontece um apagão é um escândalo dentro do governo, mas se a pesquisa ou a educação vão mal, a reação é menos óbvia.

O GLOBO: Como vai a pesquisa científica no Brasil?

LYGIA: Melhor, mas ainda insuficiente. O gasto com ciência no Brasil, segundo a revista "Science", é de 1,2% do PIB e cerca de 10 mil doutores são formados por ano. Além disso, a produção científica publicada em revistas científicas triplicou nos últimos dez anos. Mas o impacto desses trabalhos, a quantidade de vezes em que são citados internacionalmente, ainda é baixo.