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Na Web No BLOG AMBIENTE ACREANO

28 setembro 2021

TROPEIROS E CAMINHOS DO BENI PARA O ACRE

Alceu Ranzi*

No final do mês de agosto de 2021, quando estive em Rio Branco, tive a oportunidade de entrevistar dois acreanos que testemunharam ou acompanharam as tropas de gado originadas dos campos do Beni, na Bolívia, a caminho do Acre, em especial Rio Branco.

Conversei primeiro com o Sr. Paulo da Silva Maia, nascido em 1931, e morador do Segundo Distrito, onde vive até hoje. Paulo Maia sempre lidou com gado, foi um antigo tropeiro e acompanhou em diversas oportunidades tropas de gado dos campos de Santa Ana del Yacuma, na Bolívia, para o Acre.

Segundo ele, as tropas de gado com 300 ou 400 cabeças eram divididas em grupos menores, acompanhadas por tropeiros bolivianos a pé. Não se usavam cavalos ou mulas pela dificuldade de andar nos varadouros.

O segundo entrevistado foi o Sr. Clóvis Alves de Souza, nascido em 1933, neto do Capitão Liberalino Alves de Souza, Guarda-Livros do Cel. Plácido de Castro que se destacou, durante a revolução acreana, no combate de Santa Rosa, nas cercanias do rio Abunã, Bolívia.

O Sr. Clóvis nasceu e ainda é proprietário de terras na região dos antigos “Campo Esperança” e “Campo Central”, nas proximidades da atual cidade de Capixaba. Segundo ele, o Capitão Liberalino era proprietário do Seringal Gavião e casou com uma índia parente de Benavide Benavenuto, o último Cacique dos “Apurinã do Gavião” que também foi Pajé na aldeia do Muchanguy, situada entre o Gavião e o “Campo Lindo”, no atual município de Capixaba.

O gado trazido dos campos do Beni, depois de caminhar durante 30 a 40 dias, chegava ao Acre em péssimas condições. A recuperação e engorda, antes do abate, ocorria nas pastagens naturais do Campo Esperança e Campo Central, na região das cabeceiras do rio Iquiri, e nos pastos de Newtel Maia e na planície do rio Acre no atual Bairro da Cidade Nova, em Rio Branco.

Tanto o Sr. Paulo Maia como o Sr. Clóvis Alves de Souza, amigos e contemporâneos, falaram da importância do comércio de gado da Bolívia para o Brasil nos anos em que carne chegava ao Acre na forma de Corned Beef (enlatada) ou como Charque ou Jabá (salgada e seca ao sol).

O transporte do gado vindo da Bolívia se iniciava em Santa Ana del Yacuma e nos primeiros 300 km, até a localidade de Exaltación, na margem do rio Beni, o caminho atravessava campos naturais. Daí para a frente, o gado seguia em varadouros no interior da Floresta cruzando os rios Madre de Dios (na localidade de Mercedes), Orton (Palestina) e Abunã (Santa Rosa).

Conforme o mapa “La Frontera del Norte”, de 1907, elaborado pelo Cel. Percy H. Fawcett e publicado por Adolfo Ballivian (Chefe da Comissão Boliviana Demarcadora de Limites com o Brasil), a partir de Palestina, no rio Orton, o varadouro seguia quase em linha reta cruzando o rio Abunã em Santa Rosa, e, adentrando o Brasil, passava pelo Seringal Gavião, no Campo Esperança, até chegar ao Campo Central do Capatará. Esse é o mesmo varadouro indígena trilhado pelo Cel. Labre em 1887 (ver Ranzi & Ferreira, p. 147 e 305).

Na localidade conhecida como quatro bocas, tinha um entroncamento (Gavião-Capatará/Palmares-Empresa), com um ramal seguindo para o Seringal Capatará, às margens do rio Acre, e o outro, via Missões (no eixo da atual rodovia BR-317) ia até as pastagens de Newtel Maia em Rio Branco.

Os varadouros da margem direita do rio Acre para os rios Xipamanu e Orton podem ser visualizados no mapa “Bolívia-Brazil Boundary, 1911-1912” (Edwards, 2013) e o “Mapa de Vias de Comunicacion de los Distintos Puntos de la República a Puerto Acre”, de Meredia Villarreal (1903), publicado na p. 27 de Gumucio (2014).

Esse comércio de gado do Beni para o Acre é antigo e foi objeto de um Decreto Supremo do governo boliviano datado de 02 de setembro de 1912, assinado pelo Presidente Eliodoro Villazón, que isentava de impostos e taxas o trânsito e exportação de reses do Beni para a região do Acre “donde el consumo de carne se hace impossible para los pobladores por su fabuloso precio”.

Ainda mais antiga é a observação do Frei Nicolás Armentia de que “talvez se abrirá en breve um camiño para el transporte del ganado de Mojos al Purús, donde existen de cincuenta à sesenta mil esplotadores de goma que carecen em lo absoluto de ese artículo tan necesário para la vida” (Armentia, 1888).

Por outro lado, nos tempos da Revolução Acreana, Genesco de Castro (2002) cita que a firma N. Maia & Cia. “importa da Bolívia mais de 2.000 cabeças de gado anualmente”.

O declínio, e posterior paralização, da importação de gado vivo do Beni para o Acre tem como seu ponto de partida a implantação e consolidação de extensas fazendas de pecuária no Acre a partir do início dos anos 70. O fim desse comércio resultou, em território acreano, no abandono de varadouros que serviram para esse transporte por mais de 50 anos. Desde então, o Acre passou da condição de importador de gado em pé para a de exportador de carne beneficiada.

* Alceu Ranzi Alceu Ranzi é professor aposentado da UFAC e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Acre

Para saber mais: 

Armentia, N. 1888. Descripción de la provincia de los Moxos, en el Reino del Perú. Imprenta del Siglo Industrial, La Paz, Bolivia.

Castro, G. 2002. O Estado Independente do Acre. Senado Federal, Brasília, 372 pp.

República da Bolívia, 1912 – Decreto Supremo da Bolívia de 02 de setembro de 1912, assinado pelo Presidente Eliodoro Villazón.

Edwards, H. A. 1913. Frontier work on the Bolivia-Brazil boundary, 1911-1912. The Geographical Journal, v. 42, n. 2, p. 113-126 (+ mapa).

Gumucio, M. P. 2014. Pando y la Amazonia Boliviana. Grupo Editorial Kipus, Cochabamba, Bolivia, 352 pp.

Ranzi, A.; Ferreira, E. 2021. Acre: Visto e Revisto. Massiambooks, Florianópolis, 310 pp. 

15 setembro 2021

APESAR DO AVAL DO ICMBIO E DO IBAMA, ESTRADA NO PARQUE NACIONAL DA SERRA DO DIVISOR TEM POUCAS CHANCES DE SE MATERIALIZAR

Evandro Ferreira*

Em 03 de setembro o Diretor de Pesquisa, Avaliação e Monitoramento da Biodiversidade do ICMBio, Marcos Aurélio Venâncio, um Tenente Coronel da Reserva da Polícia Militar de São Paulo, oficiou o Diretor de Licenciamento Ambiental do IBAMA dando o “de acordo” para a realização do licenciamento ambiental visando a construção da rodovia BR-364 dentro do Parque Nacional da Serra do Divisor (PNSD), no extremo oeste do Acre.

A decisão de seguir em frente com a iniciativa de construção da referida estrada em um ambiente global de franca hostilidade político-ambiental ao Brasil em razão da desastrada política ambiental adotada pela administração que assumiu as rédeas do país em 2019 parece fadada ao fracasso.

Embora o Decreto de criação do PNSD (n° 97.839/1989), em seu artigo 3°, autorize explicitamente “a implantação do trecho da BR-364 cortando o Parque, desde que observadas medidas de proteção ambiental e compatibilização do traçado com as características naturais da área”, legislação posterior e hierarquicamente superior torna sem valor essa autorização.

Em julho 2000, por meio da Lei n° 9.985 o Governo Federal criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), estabelecendo critérios e normas para a criação, implantação e gestão das unidades de conservação no país. Além de passarem a ser regidas por um arcabouço legal comum, as unidades de conservação foram categorizadas em dois grandes grupos: as de uso sustentável e as de proteção integral.

O primeiro grupo, de uso sustentável (que inclui as Reservas Extrativistas), admite a presença de moradores em seu interior e a exploração em bases sustentáveis dos recursos naturais existentes. O segundo, de proteção integral, no qual se inserem Parques Nacionais (caso do PNSD), proíbe a presença de moradores e a exploração dos recursos naturais locais tendo em vista que essas unidades objetivam a “manutenção dos ecossistemas livres de alterações causadas por interferência humana, admitido apenas o uso indireto dos seus atributos naturais”.

Diante disso, está claro que a construção de uma estrada em um Parque Nacional não se admite pelos danos diretos e indiretos (atuais e futuros) que a mesma pode causar à unidade de proteção integral. Além disso, permitir a construção da estrada é um atentado contra a Lei que criou o SNUC. E usar o argumento de que a legislação que criou o PNSD previa a construção da estrada é inútil visto que no nosso ordenamento jurídico uma Lei sempre se impõe a um Decreto. Este não pode contrariá-la, sob pena dos atos praticados com base no mesmo serem ilegais e sem validade.

Quem “deu sinal verde” para o ICMBio “autorizar” o IBAMA a liberar os estudos visando o licenciamento ambiental da construção da estrada foi a Procuradoria Federal Especializada da Advocacia-Geral da União (AGU). Obviamente que a AGU existe para defender as iniciativas do Governo Federal e para isso ela irá interpretar e argumentar a legislação, mesmo contra a lógica jurídica mais elementar (Decreto se sobrepondo a uma Lei), em favor das iniciativas do governo.

É importante deixar claro que muitas decisões de um ou outro ocupante de cargo de confiança no ICMBio, no IBAMA ou mesmo do Ministro do Meio Ambiente, visam atender demandas de políticos que viram na ascensão do atual governo uma oportunidade ímpar de avançar projetos supostamente desenvolvimentistas brecados no passado por sabidos impactos ambientais negativos. Sua aprovação é a “moeda de troca” representada pelo apoio que esses políticos dão às iniciativas do governo no Congresso.

Um resultado dessa interação política nefasta, que se intensificou a partir de 2019, é a aceleração da destruição ambiental por todo o país. Graças a isso, em pouco mais de dois anos e meio o Brasil foi “rebaixado” no campo ambiental à categoria de “pária mundial”. De nação líder e exemplar na adoção de práticas ambientais sustentáveis em nível global, o país passou a ser visto como um “grande vilão”, muitas vezes excluído e, quando presente, sem respeito ou autoridade alguma para impor suas sugestões e demandas ambientais em foros e reuniões internacionais.

Embora a iniciativa do Diretor do ICMBio no tocante à construção da estrada dentro do PNSD cause preocupações, na prática, o ambiente político-jurídico atual inviabiliza que “essa boiada” passe despercebida.

Se judicializada, é quase certo que as providências preliminares indispensáveis para viabilizar a construção da estrada dentro do PNSD serão paralisadas. Especialmente agora que o Executivo Federal declarou “guerra” ao Judiciário brasileiro em todas as frentes. Assim, ele que não espere boa vontade e celeridade por parte dos juízes que vierem a ser designados para decidir a causa.

No que toca à sociedade civil organizada que se opõe à construção da rodovia, os defensores que se preparem. Terão que se contrapor aos ambientalistas locais, regionais e nacionais que estão criando uma “onda” crescente de oposição que tem atraído importantes influenciadores nacionais e internacionais. Em paralelo, organizações indígenas estão atuando fortemente para brecar a iniciativa, pois a estrada impacta três terras indígenas.

Se a oposição “civil” à estrada é crescente no lado brasileiro, no lado peruano o apoio político à mesma mudou drasticamente com a recente eleição de um professor e agricultor para a presidência daquele país. Não sendo representante das elites peruanas, iniciativas em favor da parcela mais pobre da população e a defesa de causas indígenas e ambientais tenderão a prevalecer durante o seu governo. Sem o apoio dos peruanos, não faz sentido o Brasil insistir na construção de uma estrada que correrá o risco de ter o seu trajeto terminado abruptamente no meio do nada, na fronteira com o Peru.

*Evandro Ferreira é pesquisador do INPA e do Parque Zoobotânico da UFAC.

 

17 agosto 2021

A CAÇA DE ANIMAIS SILVESTRES EM COMUNIDADE EXTRATIVISTA NO ACRE

Evandro Ferreira*

A caça de subsistência de animais da fauna silvestre para consumo doméstico em comunidades extrativistas no Acre é, muitas vezes, a única alternativa de acesso a fontes nutricionais de alto valor proteico.

A tradição dessa atividade no interior do Acre remonta aos primórdios da colonização do estado. Apesar disso, poucos estudos científicos foram feitos para identificar os animais mais buscados e as formas mais comuns de caça empregadas pelos extrativistas.

Um artigo publicado em junho de 2021 na revista Biota Amazônia (v.11, n.2, p.27-30) por pesquisadores da Fundação Osvaldo Cruz (RJ), Universidade Estadual de Maringá (PR) e Universidade Federal do Acre (AC) traz informações esclarecedoras sobre essa prática no Acre.

A partir de informações colhidas por meio de entrevistas feitas com 42 famílias da Reserva Extrativista (RESEX) Cazumbá-Iracema, os pesquisadores descobriram que mais de 40 espécies de animais silvestres são caçados com regularidade.

O grupo mais buscado é o das aves, com 23 espécies caçadas. Entre as mais apreciadas, se destacaram o jacu (Penelope jacquacu), a inhambu-galinha (Tinamus guttatus), a inhambu-macucau (Crypturellus undulatus), a arara (Ara sp.) e o papagaio (Amazona sp.).

Os mamíferos são o segundo grupo em número de espécies caçadas (16), com destaque para o porco do mato (Pecari tajacu), veado (Mazama sp.), tatu (Dasypus novemcinctus), o macaco guariba (Alouatta sp.) e a anta (Tapirus terrestris). Surpreendentemente, a paca (Cuniculus paca) e a cutia (Dasyprocta sp.) não estão listadas dos animais mais caçados no RESEX. Apenas a cutiara (Myoprocta sp.).

O outro grupo caçado é o dos répteis com casco, com um único representante: o jabuti (Chelonoidis denticulata).

A pesquisa determinou quais espécies são consideradas com maior valor de uso pelos extrativistas utilizando o índice de Valor de Uso (VU), que é calculado pela divisão do número de vezes em que a espécie é citada e a quantidade de entrevistados. O valor desse índice varia de 0 a 1. Quanto mais próximo de zero, menos conhecida é a espécie, e quanto mais próximo de 1, mais conhecida e apreciada ela é pelos entrevistados.

Assim, pela ordem, as espécies com maior Valor de Uso para os extrativistas da RESEX Cazumbá-Iracema foram: porco do mato (VU=1), jabuti (VU=0,98), veado (VU=0,90), o jacu (VU= 0,86) e o inhambu-galinha (VU=0,74).   

Os métodos de caça mais praticados pelos extrativistas são a espera (42,7%) e o uso de espingardas (41,7%). Os locais preferencias de caçadas são áreas de matas mais fechadas (floresta virgem), que geralmente oferecem com mais frequência e abundância – em relação às florestas secundárias (capoeiras) – fontes de alimentos para os animais, aumentando as chances de sucesso das caçadas.

A caça tipo “espera”, ou de “tocaia”, é mais usada na caça de mamíferos e geralmente acontece à noite em locais propícios, ou seja, próximo a árvores com frutos caindo ou locais de passagem de animais. Nessa modalidade os caçadores geralmente se abrigam em poleiros ou sobre árvores das proximidades e aguardam silenciosamente a chegada dos animais.

A caça com o auxílio de cachorros era praticada por apenas 9,4% dos entrevistados. Outros métodos como o uso de armadilhas para a captura de aves e pequenos roedores era ainda menos frequentes, praticados por 6,3% dos entrevistados.

Um fato inusitado demonstrado pelo estudo foi o maior consumo de aves e não de mamíferos na RESEX Cazumbá-Iracema. O normal é o contrário. Segundo os pesquisadores, isso pode ser consequência da maior abundância das aves no local. Apesar disso, a caça de mamíferos é a preferida pelos extrativistas em razão da maior massa (quantidade de carne) que eles fornecem em comparação às aves.

Embora a pesquisa não tenha abordado a questão da intensidade ou da pressão de caça exercida pelos moradores da RESEX sobre a fauna silvestre local, foi possível verificar que dos animais caçados, cinco integram a lista de espécies ameaçadas de extinção publicada pela International Union for Conservation of Nature (IUCN, 2019) na categoria “vulnerável” (jabuti, inhambu-azul, tucano, queixada e anta) e um a categoria “em perigo de extinção” (o macaco preto).

Os pesquisadores concluem o estudo afirmando que a caça de subsistência da fauna silvestre ainda é um importante para a sobrevivência dos moradores de áreas protegidas na Amazônia brasileira. Eles sugerem que programas de educação ambiental devem ser desenvolvidos para que esses moradores ampliem ainda mais seu conhecimento sobre o uso sustentável dos recursos naturais existentes nas áreas florestais que tradicionalmente exploram.

*Evandro Ferreira é pesquisador do INPA e do Parque Zoobotânico da UFAC.

Para saber mais:

IUCN. 2019. Red List of Threatened   Species. Disponível em: https://www.iucnredlist.org

Leandro Siqueira de Souza, Melissa  Progênio, Leilandio Siqueira    de Souza, Francisco Glauco de Araújo Santos. 2021. Consumption of wild animals in extractive communities in the State of Acre, Brazilian Amazon. Biota Amazônia, v.11, n.2, p.27-30.

12 julho 2021

NOSSA GAMELEIRA, QUEM DIRIA, AGORA É UM APUÍ (OU MATA-PAU)

 Evandro Ferreira*

A cidade de Rio Branco foi fundada pelo cearense Neutel Maia em 28 de dezembro de 1882, por ocasião do estabelecimento de seu primeiro seringal em terras acreanas. Segundo relatos perpetuados oralmente, a razão da escolha do local para instalar seu seringal – batizado como “Volta da Empreza” – foi a existência de uma gigantesca e frondosa árvore conhecida como “gameleira” em uma curva do rio Acre.

Eu me arrisco a especular que Neutel Maia escolheu o local da gameleira provavelmente por ele ser, nas redondezas, a única área de “terra firme” cujo “barranco” – que chegava até a margem do rio Acre – não era afetado pela erosão comum em margens de rios meândricos como o nosso. Isso facilitou o estabelecimento de um porto funcional no inverno e no verão, apto para barcos de variadas tonelagens.

De fato, o programa “Google Earth” mostra que a montante, ou seja, acima da curva da gameleira, área com condição similar só existe onde hoje está instalado o CEASA, cerca de 7 km rio acima. A jusante, locais similares só são encontrados mais de 10 km seguindo o curso do rio, na região hoje conhecida como Belo Jardim.

O fato é que a existência da gameleira no local de fundação da nossa cidade se constituiu em uma referência histórica usada para se chegar ao “marco zero” de Rio Branco. Tanto que para homenagear e proteger nossa árvore símbolo, o local foi tombado pelo Patrimônio Histórico Municipal de Rio Branco através do Decreto Nº 752, de 28 de dezembro de 1981.

A partir de 2002 o sítio histórico localizado no entorno da gameleira foi revitalizado. Foi construída uma barreira de contenção para evitar o desbarrancamento do rio, restaurados diversos prédios históricos, construído um marco para abrigar uma gigantesca bandeira do Acre e um calçadão equipado com quiosques, bancos e deck de observação do rio.

Em razão da presença marcante da gameleira, toda aquela região é hoje conhecida como “calçadão da gameleira”. Até o mastro é referido como “mastro da gameleira”.

Apesar do esforço para preservar nossa história e, principalmente, a árvore símbolo da fundação de nossa cidade, a lenta e inexorável ação da natureza resultou em uma mudança biológica que põe em cheque a manutenção do nome “gameleira” como o de “batismo” de todo o complexo que conhecemos como “calçadão da gameleira”.

A verdade é que não existe mais “gameleira” no calçadão da “gameleira”. Não se sabe ao certo quando a gameleira original deixou de existir. De certo, o que temos certeza é que hoje, no lugar da gameleira, temos um majestoso pé de “apuí”, árvore também conhecida popularmente como “mata-pau”.

E como isso aconteceu?

Vamos à explicação. Tanto a “gameleira” como o “apuí” pertencem à família botânica das Moráceas, que inclui 37 gêneros e mais de 1000 espécies no mundo, dos quais 17 gêneros e cerca de 80 espécies no Acre. Algumas plantas muito conhecidas dessa família no Acre são, além da gameleira e do apuí, o caucho, a caxinguba, a guariúba, o inharé e o manitê.

Gameleira é um nome popular que se aplica a diversas árvores de Morácea do gênero Ficus. O nome popular possivelmente deriva do fato da madeira dessas árvores ser usada na confecção de gamelas.

No Acre, o nome gameleira, conforme resultado de consulta ao acervo do Herbário do Parque Zoobotânico da UFAC, é usado para designar pelo menos três espécies distintas: Ficus coerulescens, Ficus insipida e Ficus maxima. Todas elas são árvores convencionais, ou seja, suas sementes germinam no solo e seu tronco se desenvolve normalmente até atingir o dossel da floresta.   

O nome “apuí” se aplica a pelo menos 16 espécies de Ficus nativas do Acre. Ao contrário da gameleira, alguns apuí são plantas “estranguladoras” ou seja, crescem sobre outras plantas como epífitas (sem ser parasitas), se alimentando inicialmente de água e nutrientes que se acumulam no emaranhado de galhos da planta hospedeira.

Com o tempo, o apuí lança raízes em direção ao solo para obter de forma mais segura e abundante água e nutrientes para o desenvolvimento do seu tronco e copa. Nesse processo, ele “abraça” o corpo da planta que lhe hospeda e o “estrangula”, ocupando o seu lugar após um processo que pode durar dezenas de anos. Essa é a razão do apuí também ser chamado de “mata-pau”. Pois é: ingratidão existe até no mundo vegetal.

Isso aconteceu com a majestosa “gameleira” que testemunhou a fundação de Rio Branco. Lugares entre seus galhos eram propícios para a germinação de sementes de outras plantas, como se vê em troncos de palmeiras vivas cheias de samambaias. Essas sementes são trazidas por pássaros que se alimentam dos frutos de uma árvore e voam para longe, defecando as sementes sobre outras árvores.

Portanto leitores, nossa “gameleira”, a do calçadão, a do mastro, a que foi tombada pelo patrimônio histórico, não existe mais. Ela foi “estrangulada” e no seu lugar se desenvolveu um majestoso e grandioso “apuí”.

O nome científico da antiga gameleira, símbolo de nossa cidade, não é mais possível determinar. Mas o do apuí que está no seu lugar (posando de gameleira) esse sabemos. Chama-se Ficus sphenophylla.

E agora? O que fazer? Mudar tudo para “Calçadão do Apuí”? “Mastro da bandeira do apuí”? Ou vamos viver na ilusão de que ainda temos uma gameleira por lá?

* Evandro Ferreira é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e do Parque Zoobotânico (PZ) da Universidade Federal do Acre (UFAC).

21 abril 2021

OS ACREANOS ANTES DO ACRE

 Alceu Ranzi* e Evandro Ferreira**

Vamos imaginar a região onde localiza-se o Acre antes dos relatos de Manoel Urbano, William Chandless e do Coronel Labre. Esse pedaço de terra localizado na porção sul-ocidental da Amazônia, relativamente próximo dos Andes, era um mundo com uma variada e numerosa população nativa que convivia com a mais alta biodiversidade do nosso planeta distribuída em florestas sem fim, cortadas por grandes rios meandrantes, igarapés e lagos piscosos.

Para os homens e mulheres que aqui viviam, a denominação “índios” não era e não é adequada, pois as terras descobertas por Cristóvão Colombo não eram a “Índia” que originalmente ele buscava quando içou velas nas Ilhas Canárias em 3 de agosto de 1492. Povos “pré-colombianos” também não é adequado porque as pessoas que habitavam o Acre já ocupavam a região milhares de anos antes da chegada do navegador genovês ao continente americano na região do Caribe. “Ameríndios” é ainda mais inadequada tendo em vista a controvérsia que cerca o primeiro nome do geógrafo italiano Américo Vespúcio: era “Amerigo”, “Alberico” ou “Albertutio”?

Muito antes da chegada de Colombo e de Pedro Álvares Cabral às Américas, no Acre já haviam populações humanas, pessoas, gente. Muita gente. Elas viviam em uma região denominada pelos Incas de Antisuyu: uma grande porção de terras com florestas, calor e chuvas torrenciais desconhecida pelas autoridades das Coroas da Espanha e de Portugal, que posteriormente se intitularam “donas” das mesmas.

Com certeza a chegada de Cabral às praias da Bahia em 1500 passou desapercebida pelos habitantes da região que no futuro viria a ser conhecida como Acre. O mesmo aconteceu quando da ocupação de Cajamarca pelo conquistador e explorador espanhol Francisco Pizarro em 1533, fato que determinou o fim do Império Inca.

Antes de Chandless e Labre, que nos deixaram relatos escritos de suas observações ao longo dos rios Purus e Acre, são poucas as notícias de outras fontes confiáveis. Chandless, Labre e Manuel Urbano nos relatam que havia gente ao longo dos rios acreanos. E não eram seringueiros nordestinos. Eram “nativos” da região. É importante lembrar que até meados de 1860 a borracha ainda não havia sido buscada nessa parte da Amazônia. Portanto, os não nativos eram raros. Possivelmente estavam de passagem ou apenas passando uma temporada por estas terras.

Deve-se notar que as primeiras grandes expedições pela Amazônia não singraram os rios que adentram o Acre. Orellana e Carvajal (1541-1542), Lope de Aguirre e Pedro de Ursúa (1559), Pedro Teixeira (1637-1639), todos navegaram os rios Solimões e Amazonas e passaram pelas bocas dos rios Juruá e Purus. Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-1792), na sua Viagem Philosophica, navegou o Madeira e o Guaporé e passou pela boca do rio Abunã. Ele foi o que chegou mais próximo das terras acreanas.

Além dos escritos de Chandless e Labre e dos relatos de Manuel Urbano, outra fonte que confirma a existência de muita gente no Acre está em processo de revelação pelos arqueólogos. Os geoglifos são um bom exemplo de obras monumentais existentes no Acre e executadas pelos ocupantes milenares dessas terras. As escavações no sítio Tequinho, situado nas proximidades da Vila Pia, na rodovia BR-317 em direção à cidade de Boca do Acre, no Amazonas, revelaram cerâmicas policromáticas de excepcional qualidade artística.

Outros estudos indicam que os primeiros habitantes do Acre chegaram à região há pelo menos 10 mil anos. Estudos de remanescentes fósseis de suas cozinhas permitiram identificar que já naquela época se utilizavam vários alimentos comuns nos dias atuais, com destaque para a abóbora, milho e mandioca, além de frutos de diversas palmeiras e também da castanha do Brasil.

Além dos geoglifos, novas tecnologias como o LIDAR (sigla inglesa para o termo Light Detection And Ranging), que se utiliza do laser para obter informações espaciais e produzir Modelos Digitais do Terreno e da Superfície, tem revelado a existência de trilhas interligando os geoglifos construídos no Acre e uma grande rede de caminhos primitivos que provavelmente se conectavam a outros construídos pelos antigos habitantes da região centro-oeste do Brasil e também com as estradas andinas do Império Inca.

Com o boom da borracha, em um recorte temporal de 40 anos entre 1880 e 1920, grande parte dos moradores originais do Acre foram massacrados e expulsos de suas terras para permitir o estabelecimento dos barracões e seringais. Isso só foi possível com as “correrias” promovidas por pessoas como Pedro Biló e Felizardo Cerqueira, os mais afamados “caçadores de índios” das terras acreanas.

É preciso que se diga: grande parte das “pelas” ou bolas de borracha defumada produzidas nos seringais acreanos que seguiam para as indústrias na Europa e nos Estados Unidos levavam consigo a marca de um genocídio, pois eram manchadas pelo sangue dos habitantes primitivos do Acre postos para “correr” das suas terras onde abundavam árvores de seringueiras. A maioria dos que conseguiram sobreviver aos massacres se refugiou nos altos rios, próximo da fronteira com o Peru, onde não haviam seringueiras. Longe, portanto, da cobiça dos coronéis e patrões seringalistas.

No Acre, atualmente, são numerosas as pessoas originárias, descendentes dos primeiros habitantes que adentraram a região milhares de anos atrás. Integram os troncos linguísticos Pano e Aruak, e ocupam várias terras indígenas demarcadas e consolidadas. Pertencem a distintas etnias, com destaque para os Yawanawas, Ashaninkas, Kashinauas, Manchineris, Apurinãs, Katukinas, Kulinas, Yaminawas, Nukinis e os famosos Náuas, que enfrentaram a expedição do explorador inglês William Chandless ao rio Juruá em 1867, que por isso só conseguiu chegar à boca do rio Gregório, de onde teve que regressar.

Foi assim que os “acreanos antes do Acre”, ou seja, os povos originários que viveram pacificamente e em harmonia com a natureza por milhares de anos no território que ocupamos hoje tiveram sua paz perturbada e foram levados quase à extinção em razão de interesses econômicos desencadeados pela Revolução Industrial que valorava esses “povos da floresta” em um patamar inferior às árvores produtoras de borracha existentes em suas florestas.

*Alceu Ranzi é professor aposentado da UFAC e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Acre.

**Evandro Ferreira é pesquisador do INPA e do Parque Zoobotânico da UFAC.

Para saber mais:

Fausto, C. 2000. Os índios antes do Brasil. Zahar, Rio de Janeiro, 94 pp.

Neves, E. 2006. Arqueologia da Amazônia. Zahar, Rio de Janeiro, 86 pp.

Prous, A. 2007. O Brasil antes dos brasileiros. Zahar, Rio de Janeiro, 142 pp.

05 setembro 2020

MUDANÇAS CLIMÁTICAS FAVORECERÃO A FREQUÊNCIA E A INTENSIDADE DE SURTOS DE LEPTOSPIROSE EM RIO BRANCO*

Evandro Ferreira
Ambiente Acreano

 

A leptospirose, causada por uma bactéria do gênero Leptospira sp., é uma doença febril aguda que afeta mais frequentemente o fígado e os rins, e que pode resultar em febre, dor de cabeça, dores musculares, náuseas e vômitos. Quando não corretamente diagnosticada e tratada ela pode se agravar e causar a falência múltipla dos órgãos. Sua letalidade pode chegar a 20% das pessoas atingidas.

A bactéria causadora da leptospirose pode se hospedar em uma grande variedade de animais silvestres e domésticos. Apesar do rato marrom (Rattus norvegicus) ser frequentemente citado como o principal hospedeiro da doença, ela também pode se manifestar em bois, porcos, cavalos, cabras, ovelhas e cães, e deles ser transmitida ao homem.

O clima, o ambiente tropical e a infraestrutura de numerosas cidades da Amazônia ocidental brasileira, incluindo a cidade de Rio Branco, favorecem sobremaneira a disseminação da leptospirose. A bactéria causadora desta doença, cuja proliferação é favorecida pelas condições inadequadas de saneamento e pela alta ocorrência de roedores infectados, se concentra sobre solo durante os períodos mais secos do ano e tende a ser espalhada quando da ocorrência de chuvas e cheios de rios e outros cursos de águas presentes nas áreas urbanas.

As mudanças climáticas em curso, visíveis em nossa cidade pela maior frequência de cheias anuais do rio Acre, são, portanto, um fator que deveria ser motivo de preocupação para as autoridades, pois a intensidade e a frequência dos surtos epidêmicos da doença estão associadas com a ocorrência destas cheias.

Um estudo realizado em Rio Branco por pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), publicado em março passado, mostra que a situação em nossa cidade é extremamente preocupante.

A pesquisa analisou a incidência mensal de leptospirose na população residente no município de Rio Branco entre 2008 e 2013. Segundo o censo de 2010, a população local era de aproximadamente 336 mil habitantes, dos quais mais de 92% vivia em área urbana. Como se sabe, a cidade é cortada pelo rio Acre e anualmente, durante o período de maior intensidade das chuvas (janeiro a março), acontecem transbordamentos do rio que atingem grandes áreas da mesma, causando, durante os eventos mais acentuados, o desabrigo de milhares de pessoas.

Para o estudo, os dados sobre a ocorrência da doença foram obtidos no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) e as incidências foram analisadas quanto a sua evolução temporal, distribuição em distintas faixas etárias, relação com as médias mensais de variáveis climáticas regionais (número de dias com precipitação no mês, média mensal da precipitação, médias mensais das temperaturas máxima, média compensada e mínima e média mensal da umidade relativa compensada) e oscilações mensais do nível do rio Acre.

Os resultados do estudo revelaram que entre 2008 e 2013 ocorreram 779 casos de leptospirose no município de Rio Branco, com forte tendência de ascendência, passando de 13,4 casos/100 mil habitantes em 2010 para 122,3 casos em 2013. Os números de 2013 indicam uma incidência entre 10 a 60 vezes maior que a média do Brasil. E o crescimento do número de casos foi geométrico a partir de 2011, quando foram registrados 30,6 casos/100 mil habitantes, mais que dobrando para 71,6 em 2012 e 122,3 casos em 2013.

A incidência média mensal de leptospirose mostrou forte aumento no período mais chuvoso dos anos estudados, ou seja, entre outubro e abril, quando a média de ocorrência passou de 3,9 casos/100 mil hab. no mês de outubro, para 8,1 casos/100 mil hab. em março. Na estação seca a maior média foi em maio (2,3 casos) e a menor em julho (1,4 casos).

A faixa etária mais atingida pela doença foi a de indivíduos com idade entre 20 e 39 anos, com incidências médias mensais de 49,8 casos/100 mil hab. Crianças com menos de 1 ano e na faixa etária de 1 a 4 anos foram as que apresentaram a menores incidências médias mensais: 2,6 casos/100 mil hab. e 2,0 casos/100 mil, respectivamente. Idosos com mais de 80 anos foram a terceira faixa etária menos atingida: 10,5 casos/100 mil hab.

Em relação às condições climáticas, o estudo revelou que em Rio Branco a quantidade de dias com precipitação no mês e a média mensal do nível do rio podem interferir na ocorrência da leptospirose, causando aumentos de 4 e 7%, respectivamente, na incidência da doença. Os autores sugerem que essas variáveis podem representar indicadores para a predição de tendências na ocorrência dessa doença.

Para eles, as perspectivas das mudanças climáticas globais podem levar à exacerbação da vulnerabilidade e quadros epidemiológicos bastante preocupantes. Com a intensificação e aumento na frequência dos eventos climáticos e ambientais extremos e modelos climáticos projetados para a Região Amazônica que apontam para grandes aumentos de temperatura, pode haver um favorecimento do prolongamento da sobrevivência das bactérias no ambiente, ampliação dos habitat e aumento do número de espécies de animais atuantes como reservatório da bactéria causadora da leptospirose.

Em conjunto, essas mudanças poderão favorecer uma maior distribuição e exacerbação na ocorrência não apenas da leptospirose, mas de outras doenças de veiculação hídrica, especialmente em ambientes urbanos com infraestrutura deficiente de saneamento, como são os casos da grande maioria das cidades da região amazônica.

Os autores concluem o estudo afirmando que o “maior conhecimento sobre a distribuição temporal dos casos, sua relação com o clima e ambiente regionais, somado à detecção do alto potencial de transmissão da doença em Rio Branco, pode contribuir para o planejamento e as tomadas de decisão visando à prevenção e mitigação dos impactos climáticos e ambientais na saúde da população da capital do Acre”.

 

Para saber mais:

Juliana L. Duarte e Leandro L. Giatti. 2019. Incidência da leptospirose em uma capital da Amazônia Ocidental brasileira e sua relação com a variabilidade climática e ambiental, entre os anosde 2008 e 2013. Epidemiologia e Serviços de Saúde, vol. 28, n° 1, p. e2017224.

 

*Artigo originalmente publicado no jornal A Gazeta, em Rio Branco, Acre, em 18/06/2019. 

04 setembro 2020

CAPIVARAS: HERBÍVOROS MANSOS E “PERIGOSOS”

Evandro Ferreira
Blog Ambiente Acreano

As capivaras (nome científico: Hydrochoerus hydrochaeris), os maiores roedores do mundo, são mamíferos nativos da América do Sul, onde se encontram amplamente distribuídas. Seus parentes mais próximos são o Preá ou Porquinho-da-Índia (Cavia aperea), animal domesticado inexistente em sua forma selvagem, e o Mocó (Kerodon rupestris), espécie selvagem parecida com o coelho, porém de maior tamanho e com orelhas e cauda muito pequenos, endêmico da região da Caatinga no Nordeste do Brasil.

As capivaras estão distribuídas por todo o Brasil, exceto na Caatinga, sendo abundantes em regiões ricas em água, como o Pantanal (são animais semi-aquáticos). Na Amazônia elas são menos abundantes nas áreas de terra firme, mas podem ser encontradas próximo de lugares alagados.

Elas são animais sociais que podem viver em grupos com até 100 indivíduos, mas geralmente os grupos contem entre 10 e 20 animais. Apesar de não domesticadas, são consideradas animais mansos e permitem a aproximação, o toque e mesmo a alimentação diretamente da mão de humanos. Por essa razão, não é incomum encontra-las em áreas urbanas. Em Rio Branco, dentro e no entorno do Campus da Universidade Federal do Acre (UFAC), numerosas capivaras vagam livremente, constituindo-se em uma atração para os frequentadores.

Apesar da abundância e da mansidão desses animais, sua caça e o consumo de sua carne não são comuns no Brasil. Em países, como a Venezuela e a Colômbia, por exemplo, o consumo da carne é muito popular e uma tradição durante a quaresma e a semana santa. Por esta razão, a criação em cativeiro da espécie tanto para a venda da carne como da pele são práticas comuns.

E o que faz o consumo da carne de capivara não ser popular no Brasil? Pode ser que seja o sabor muito forte, o cheiro ou mesmo a cor da carne. Mas a principal razão reside em um processo de “demonização” deste animal patrocinado pela imprensa.

Todas as vezes que são reportados casos de febre maculosa no Brasil, invariavelmente são indicados como a “fonte” da doença os carrapatos que vivem naturalmente na pele das capivaras.

A febre maculosa é uma doença infecciosa de gravidade variável que pode causar febre aguda e apresentar elevada taxa de letalidade se não for tratada corretamente. Ela é transmitida pelo carrapato-estrela (Amblyomma cajennense) infectado pela bactéria Rickettsia rickettsii ou outras bactérias do mesmo gênero. Se o carrapato pica seres humanos, estes podem desenvolver a doença.  

Entretanto, sabe-se que o carrapato-estrela (hematófago) também pode ser encontrado em animais de grande porte (bois e cavalos), cães, aves domésticas e roedores. Se o carrapato presente nestes outros animais estiver infectado pela bactéria Rickettsia rickettsii e picar seres humanos, é grande a possibilidade de os mesmos desenvolverem a doença. Mas a “fama” faz com que a capivara seja quase sempre considerada a culpada.

Um “trend” mais recente envolvendo a capivara é seu suposto papel como importante transmissor de agentes etiológicos zoonóticos diz respeito à infecção por Salmonella.

A Salmonella é uma bactéria que pode causar dois tipos de doença, dependendo do sorotipo: salmonelose não tifóide e febre tifoide. Os sintomas da salmonelose não tifóide são semelhantes a outros problemas gastrointestinais e incluem diarreia, vômitos, febre moderada dor abdominal, cansaço e perda de apetite. Não é letal e os afetados podem se recuperar em até sete dias. A febre tifoide é uma forma mais grave e tem uma taxa de mortalidade maior.

A forma mais comum da transmissão desta doença é a ingestão de alimentos contaminados e maus hábitos de higiene. Estima-se que a Salmonella atinge mais de 93 milhões de pessoas/ano no mundo causando mais de 155 mil mortes. Apesar de a maioria dos casos da doença ser decorrente da ingestão de alimentos contaminados, uma porção bem pequena dos casos é derivada da infecção via contato de humanos com as fezes de animais portadores da bactéria.

É isso. A transmissão a partir de animais selvagens “exige” o contato com as fezes do animal. E a capivara, mais uma vez, é apontada como uma fonte potencial para esses casos.

Mesmo considerando que na literatura científica apenas dois casos de Salmonella tenham sido reportados para capivaras, pesquisadores da UFAC resolveram investigar o possível perigo que as capivaras da zona rural e urbana do Estado representam como repositórios de Salmonella que eventualmente poderia infectar a população local.

Para isso eles capturaram 54 capivaras assintomáticas para doenças intestinais de duas áreas urbanas e duas áreas rurais do Acre e as mantiveram em cativeiro por três a quatro dias para amostragem. Três amostras de fezes desses animais foram colhidas durante a permanência dos mesmos em cativeiro.

O resultado do estudo revelou que oito (5%) das 162 amostras examinadas por cultura bacteriana foram positivas para Salmonella spp., enquanto quatro (7%) das 54 amostras examinadas pelo método PCR foram positivas. Dos oito animais positivos em cultura, cinco eram oriundos de área urbana e três de área rural. Nas amostras positivas pelo método PCR apenas um animal positivo era de área urbana e quatro da área rural.

Ao final os autores consideraram que, considerando os resultados dos dois métodos de diagnóstico empregados, apenas um animal foi considerado positivo. E concluíram que as capivaras tem potencial como reservatórios e disseminadores de Salmonella na área urbana e rural do Acre.

Vejam que nenhum caso de transmissão de Salmonella de capivaras para humanos foi reportado para o Acre. Mas a fama da mesma foi suficiente para justificar o estudo.

Diante disso, só posso dizer – se é que entendem o sentido – aos leitores de A Gazeta: “Cuidado, apesar de mansas as capivaras são um perigo...”

 

Para saber mais: Farikoski, I. et al. 2019. As capivaras urbanas e rurais (Hydrochoerus hydrochaeris) como reservatório de Salmonella no oeste da Amazônia, Brasil. Pesquisa Veterinária Brasileira, vol. 39, n° 1, p. 66-69. 

03 setembro 2020

DOMESTICAÇÃO DA AMAZÔNIA ANTES DA CHEGADA DOS EUROPEUS*

Evandro Ferreira
Blog Ambiente Acreano

 

É um fato. Até hoje a maioria das pessoas acredita que as florestas na Amazônia são formações naturais que foram pouco alteradas pelos povos indígenas que as habitavam por ocasião dos primeiros contatos com colonizadores europeus a partir do início do século XVI.

Essa impressão foi reforçada pelos relatos muitas vezes exagerados e confusos dos primeiros exploradores espanhóis que, a partir de 1500, com a descoberta da foz do rio Amazonas por Vicente Pinzón, realizaram 24 expedições de penetrações na região.

Francisco de Orellana, em 1542, e Pedro de Ursúa e Lope de Aguirre, entre 1560 e 1561, percorreram totalmente o rio Solimões-Amazonas. Eles buscavam o reino “El Dorado”, um paraíso de ouro, e o “País da Canela”, onde supostamente abundava uma planta tão valiosa quanto a “Canela da Índia”, uma especiaria que conquistara consumidores europeus fazia poucos anos.

As descrições fantasiosas de Gaspar de Carvajal, padre dominicano que acompanhou a expedição de Orellana, reforçaram a ideia da Amazônia como uma floresta impenetrável, intocada, misteriosa e defendida por guerreiras ferozes (as Amazonas), que abrigava não apenas o reino de “El Dorado”, mas também o “País das Esmeraldas” e a elusiva – e nunca encontrada – cidade amazônica Inca de Paititi.

Nas últimas décadas, entretanto, evidências arqueológicas, botânicas, ecológicas, antropológicas, genéticas e históricas tem demonstrado que os indígenas da Amazônia foram e são como outros povos primitivos mundo afora que construíram (e continuam a construir) seus espaços de vida dentro de ecossistemas locais, modificando-os para que eles atendam aos seus interesses de sobrevivência.

A necessidade de moldar o ambiente às suas necessidades levou à domesticação de espécies de plantas e animais indispensáveis à sobrevivência dessas sociedades. Com o tempo, e o acúmulo de conhecimentos ecológicos que viabilizaram o manejo de ecossistemas do entorno de onde viviam, foi possível a domesticação de paisagens, ou seja, de áreas geográficas nas quais ocorrem interações entre os seres vivos e o meio ambiente e que antes da intervenção dos indígenas eram espacialmente heterogêneas.

Essa domesticação feita pelos indígenas consistia na retirada, por exemplo, de plantas úteis para a sua alimentação, medicina ou construções, diretamente do ambiente natural para cultivo nas redondezas de suas moradias. Foi assim com algumas espécies de plantas importantes para a sociedade moderna, como a mandioca, castanha do Brasil e pupunha.

No processo de domesticação levado a cabo pelos indígenas, prevaleceu a seleção de características genéticas que privilegiavam a obtenção de frutos maiores, com menor número de sementes ou sementes de menor tamanho, de árvores de porte mais baixo para facilitar a colheita, ou mesmo sem espinhos, como no caso da pupunha.

O pesquisador Charles Clement, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia-INPA, acredita que numerosas plantas da flora amazônica foram ou começaram a ser domesticadas há dez mil anos, ou seja, pouco depois da chegada do homem ao continente americano, que se presume ocorreu por volta de 12 mil anos atrás.

Essa crença está baseada em dois aspectos principais. O primeiro diz respeito ao crescente número de sítios arqueológicos indicadores de moradias de comunidades indígenas primitivas encontrados ao longo de quase todos os rios da região amazônica. Esses sítios apresentam um tipo único de solo conhecido como “terra preta de índio”, escuro, muito fértil e de origem antropogênica. Ou seja, que se formou pela intervenção humana via depósito de resíduos de fogueiras, lixeiras e mesmo sepultamentos. Essa terra fértil favorecia o cultivo recorrente de plantas anuais e perenes.

O segundo aspecto está relacionado à composição florística das florestas em volta desses sítios arqueológicos. Levantamento florísticos tem revelado que o percentual de plantas úteis para o homem nestas florestas é muito superior ao observado em regiões mais ermas, distantes das margens dos rios. Aqui também fica claro que a floresta foi modificada para aumentar a disponibilidade de recursos para os habitantes primitivos do entorno dos sítios arqueológicos.

Essa “domesticação” do ambiente produziu, na opinião dos arqueólogos, alterações em escala continental na paisagem amazônica e permitiu que a população indígena que habitava a região antes da chegada dos europeus atingisse, segundo algumas estimativas, entre oito e dez milhões de pessoas. Obviamente que a violência militar dos conquistadores europeus e, principalmente, as doenças trazidas por eles levaram a um rápido declínio dessa população indígena.

É importante ressaltar que ecólogos não concordam inteiramente com as teorias defendidas pelos arqueólogos sobre a forma de ocupação da Amazônia. Os arqueólogos defendem que indígenas primitivos modificaram a composição das florestas da região por meio do cultivo e manejo de determinadas espécies de plantas. A castanheira (Bertholletia excelsa), que pode viver mais de mil anos, é um bom exemplo, pois, além de ser frequentemente encontrada em sítios arqueológicos, apresenta uma distribuição em escala continental na Amazônia.

Como os frutos da castanheira são dispersos somente por humanos e pequenos roedores (cotias), a única explicação para a distribuição continental da mesma se deve aos humanos, mais precisamente às práticas de cultivo e manejo realizadas por populações indígenas que habitavam a região antes da chegada dos europeus.

O fato de humanos terem atuado para alterar no passado as florestas na Amazônia tem levado alguns pesquisadores a defender que as atuais florestas da região, em função da intervenção indígena pretérita, deveriam ser consideradas como patrimônio natural e cultural brasileiro e que sua derrubada significa não apenas a destruição de sua valiosa biodiversidade, mas também a perda definitiva deste patrimônio cultural.

 

Para saber mais: “The domestication of Amazonia before European conquest”, de autoria de Charles R. Clement e outros autores, publicado na revista científica Proceedings of the Royal Society, Biological Sciences, vol. 282, n° 1812, agosto de 2015. 

*Artigo originalmente publicado no jornal A Gazeta, em Rio Branco, Acre, em 07/10/2019.

Ilustração: Francisco de Orellana's 1541 expedition down the Amazon River, American engraving, 1848. The Granger Collection, New York

02 setembro 2020

DESCONHECIMENTO E INCOMPREENSÃO PODEM RESULTAR EM PREJUÍZOS FINANCEIROS E AMBIENTAIS REAIS OU PRESUMIDOS*

Evandro Ferreira
Blog Ambiente Acreano

 

Dez dias atrás o presidente Bolsonaro “partiu para cima” do INPE, a instituição governamental brasileira responsável por coletar, processar e divulgar dados sobre o desmatamento na Amazônia. Para o presidente, os dados divulgados pelo INPE são exagerados, incorretos e, da forma como são divulgados, prejudicam a “imagem” do Brasil perante o mundo.

A fala do presidente não se baseou em nenhum dado concreto. Nenhuma polêmica, denúncia ou acusação de manipulação de dados por parte do INPE foi ou tem sido levantada seja no meio acadêmico, seja no meio político.

É difícil contestar dados de desmatamento como os que o INPE divulga de forma sistemática desde os anos 80 baseados em análises de imagens de satélites feitas de forma automática por softwares desenvolvidos, em alguns casos, por pesquisadores de alto nível do próprio INPE.

Para fazer as estimativas de desmatamento na Amazônia, o INPE utiliza imagens produzidas por sensores instalados em satélites americanos da série Landsat. São satélites operados pela NASA e dedicados exclusivamente à observação dos recursos naturais do planeta. O primeiro deles foi lançado em 1972 (Landsat 1) e o mais recente (Landsat 8) em 2013.

O Landsat 8 passa sobre o mesmo ponto da região amazônica a cada 16 dias e seus sensores produzem uma faixa de imagem com largura de 185 km e resolução multiespectral de 30 metros. Na prática, ele pode ver com nitidez, a cada 16 dias, detalhes sobre aquela pequena área de 30 m² graças a softwares que processam as imagens revelando se a área contém floresta primária ou secundária (capoeira), se o local é ocupado por pastagens, cultivos, espelhos d´água ou se é terra nua sem cobertura vegetal viva (indicando desmatamento recente).

A prova da excelência do trabalho do INPE é o fato de os seus dados raramente terem sido contestados nos últimos 30 anos. E essa foi uma das razões para a instituição ter se firmado no mundo como uma ilha de excelência técnico-científica. E isso não foi adquirido da noite para o dia via importação de cérebros do estrangeiro. Pelo contrário. Foram feitos investimentos de milhões de reais na capacitação de seus pesquisadores - no Brasil e no exterior.

Levou tempo, mas valeu a pena. Hoje o INPE mantém, entre outros, programas de mestrado e doutorado nas áreas de Sensoriamento Remoto, Meteorologia, Geofísica Espacial, Astrofísica e Engenharia e Tecnologia Espacial. Isso se traduz na formação de massa crítica brasileira para continuar o trabalho no futuro. É a sustentabilidade da cultura de excelência criada pelo INPE.

E são os professores desses programas de pós-graduação de alto nível, com o auxílio de outros pesquisadores e técnicos do INPE, que trabalham no levantamento e na divulgação dos dados sobre o desmatamento na Amazônia.

Por isso não tem o menor cabimento sugerir que os dados publicados pelo INPE são manipulados, fraudados ou que, como querem muitos que hoje estão no poder, contém viés ideológico. Em ciências exatas a soma de 2 mais 2 será sempre 4. Não dá para mascarar o resultado.

Claro que pode haver discrepâncias aqui e ali. Mas nada que leve a erros grosseiros. Em 2016 o Governo do Acre contestou índices de desmatamento divulgados pelo INPE para o estado. O caso se referia a umas poucas áreas de lagos secos em Tarauacá contabilizadas como desmatamento. Em anos anteriores o levantamento do INPE havia contabilizado como desmatamento áreas onde a taboca (bambu) morreu naturalmente. Reclamação feita, índices corrigidos. Sem dramas e escândalos desnecessários.

O INPE é hoje referência mundial no assunto e deveria encher de orgulho nossas autoridades públicas, que hoje podem acessar, em base diária, como anda o desmatamento na Amazônia. O que mais os planejadores públicos de ações para combater os desmates ilegais que acontecem na região poderiam querer?

A crítica ao trabalho e dados divulgados pelo INPE por parte da Presidência da República é preocupante porque passa a impressão de que o combate ao desmatamento na Amazônia não será prioridade na atual administração. Espero estar enganado. Também espero que, para evitar episódios como esse, o presidente tenha no seu entorno assessores bem informados sobre a realidade do monitoramento e combate aos desmatamentos ilegais na Amazônia.

O assunto é delicado porque, como disse corretamente o presidente, a imagem do país pode ficar comprometida em caso de aumento exagerado do desmatamento da Amazônia. E muitos interesses estão em jogo caso a situação fuja do controle.

O acordo entre o Mercosul e a União Europeia, por exemplo, pode ter sua entrada em vigor adiada, conforme deixaram claro a França como a Alemanha, se o desmatamento na Amazônia aumentar exageradamente.

O Fundo Amazônia, que recebeu mais de R$ 3,4 bilhões de doações da Noruega e da Alemanha para financiar a conservação, preservação e desenvolvimento da Amazônia, está ameaçado por desavenças aparentemente ideológicas: enquanto os doadores estão satisfeitos e não vem razões para mudanças, o governo brasileiro gostaria, entre outras medidas, de usar as doações para indenizar invasores de áreas de conservação do país.

Esse clima de animosidade desnecessária criada pelo Governo Federal com países que colaboram efetivamente para as políticas de combate ao desmatamento na Amazônia pode resultar em prejuízos para o Acre, como, por exemplo, o cancelamento das doações feitas pela Alemanha aos programas ambientais do Acre. Entre 2013 e 2017 foram 25 milhões de Euros. Em 2017 um novo acordo de doação de mais 30 milhões de Euros.

Na precária situação econômica em que se encontra o país e o governo do Acre em especial, é preciso ter tato e jogo de cintura para desvincular a situação do Acre do contexto nacional. E isso é necessário. Afinal de contas, não é todo o dia que se encontram doadores tão generosos como a Alemanha tem sido com o Acre. 

*Artigo originalmente publicado no jornal A Gazeta, em Rio Branco, Acre, em 30/07/2019