Google
Na Web No BLOG AMBIENTE ACREANO

14 setembro 2010

UFAC: O RETORNO DA RAZÃO CÍNICA DO 'DESENVOLVIMENTO' E DO 'AVANÇO' PARA LUGAR NENHUM

"Começamos a viver mais um capítulo na história da conquista definitiva da Amazônia. No setentrião do Brasil, o presidente Médici assiste ao início da construção da Estrada Perimetral Norte. Após o hasteamento da bandeira nacional e o descerramento da placa foi derrubada uma imensa árvore, símbolo do desbravamento da terra”.

Gerson Rodrigues de Albuquerque*

Com essas palavras o locutor oficial do Programa de Propaganda “Brasil Hoje”, em sua edição 36, datada do dia 29 de julho de 1973, anunciava o início de um dos mais drásticos processos de violências contra os diferentes grupos humanos e ecossistemas da região. A Perimetral Norte tinha como ponto de partida as “encostas do Tumucumaque”, nas margens do Atlântico, atravessando “todo o vasto setentrião do Brasil”, até os limites da insanidade “modernizante e desenvolvimentista” dos militares que sabotaram o estado de direito no Brasil, por mais de 20 anos.

A obsessão pelo desbravamento estava sempre acompanhada da retórica da “melhoria da qualidade de vida” e do “progresso” para a Amazônia e seus habitantes. “Acelera Brasil”, “Avança Brasil”, “Este é um país que vai pra frente”, “Integração nacional”, entre outros, sempre foram os slogans instilados no imaginário de todos pela propaganda oficial em rádios, revistas, jornais, TVs, livros e programas escolares.

A derrubada de uma imensa árvore, como símbolo trágico do “desbravamento da terra”, de forma sintomática dava a tônica do propósito governamental de “conquistar a Amazônia, ocupando com trabalho e audácia mais esta imensa região do solo pátrio”, segundo o que ficara registrado na placa de bronze da “pedra fundamental”, descerrada por Médici para a abertura da Perimetral Norte.

Passados 37 anos daquele fatídico 29 de julho, somos conhecedores dos drásticos resultados de tal “desbravamento”, “modernização”, “integração”, “progresso”, “avanço”. No plano estratégico, os discursos governamentais, empresariais e “científicos” situavam a Amazônia como a “última fronteira agrícola”, o “celeiro do Brasil”, para justificar a “integração do pulmão do mundo”. Margeando esse palavrório, o Acre, no alvo da “frente de expansão da pecuária”, aparecia como a “terra prometida do desenvolvimento”, um “nordeste sem secas”, um “sul sem geadas”. Depois vieram outras pérolas do tipo “Acre: filé mignon da Amazônia” e, mais recentemente, com as miríades do “manejo madeireiro”, esse Estado passou a ser tecido - pela linguagem dos que detém o controle da máquina pública e da mídia - como “predestinado” a garantir seu “desenvolvimento” tendo como base a “exploração racional” de suas florestas e a exportação de madeira para o mercado nacional e internacional.

O Centro de Excelência em Energia

Todo esse “passado morto e enterrado”, como dizem os que gostam de ocultar o sol com a peneira, me veio à mente ao visitar os estragos e a verdadeira devassa implementada pela administração superior da Universidade Federal do Acre, com a abertura de uma estrada em parte significativa do Parque Zoobotânico (PZ) dessa instituição. A finalidade dessa devastação foi o “lançamento da pedra fundamental”, em 17 de agosto último, do “Centro de Excelência em Energia do Acre (CEEAC)”.

Não me parece coincidência que esse “centro” que, antes de nascer, já é de “excelência”, tenha tido seu lançamento marcado pela tradicional pompa do descerramento de uma “placa inaugural” e pela velha megalomania dos projetos e políticas gestadas em gabinetes externos à Ufac para “potencializar o desenvolvimento regional”. No entanto, as manifestações públicas da reitora, Olinda Batista, e do seu vice-reitor, Pascoal Muniz, não poderiam ter deixado de pontuar que a participação da universidade que dirigem, na criação desse centro, sequer foi discutida no âmbito do Conselho Universitário, colegiado máximo de deliberação e responsável pela definição das políticas institucionais.

O CEEAC é fruto de um Acordo de Cooperação Técnica entre a Eletrobrás, a Ufac e um grupo de outros consórcios e empresas, dentre os quais é preciso destacar a Santo Antonio Energia S.A. que está à frente do Complexo Hidrelétrico do Madeira, responsável por danos incalculáveis à diversidade biológica e sociocultural de um dos mais importantes afluentes do rio Amazonas; a Siemens, Alstom, Andritz Hidro, e Voith Hydro, empresas multinacionais que faturam bilhões de euros no controle dos mercados mundiais de produtos e serviços com eletrônicos, telecomunicações, material elétrico e infra-estrutura do setor energético, equipamentos para usinas hidrelétricas, entre outros.

A lógica que preside esses conglomerados financeiros é o lucro máximo e o total descompromisso com o bem estar das pessoas e com o meio ambiente das áreas e regiões de interesses para seus negócios. O acordo assinado pela reitoria da Ufac, sem a anuência do Conselho Universitário e sem nenhuma reflexão sobre os seus significados com a comunidade acadêmica e toda a sociedade local, revelam não apenas desapego às normas que regem essa instituição pública, mas uma total “ingenuidade” e inabilidade para lidar com questões dessa natureza, bem como sobre o papel da universidade. Papel esse que jamais pode ser de submissão a projetos megalomaníacos e aos interesses de empresas particulares ou mesmo “estatais”, como a Eletrobrás e suas subsidiárias que todos conhecemos pelos altos custos e a péssima qualidade dos serviços que presta em nossa região.

Por trás do acordo que cria o “Centro de Excelência em Energia do Acre está o engodo da Pareceria Público Privado (PPP), inventada pelo governo federal para dissimular o deslocamento de verbas públicas para a iniciativa privada, sob a cínica alegação de alavancar o “desenvolvimento” ou sanar déficits educacionais. Exemplo disso é o Programa Universidade para Todos (Prouni) que destina para universidade particulares milhões de reais que poderiam ser investidos na melhoria das condições de oferta, infra-estrutura e contratação de profissionais para a criação de novos cursos e ampliação de vagas nas universidades públicas.

Em conversa com o Professor Luis Fernando Novoa Garzon (Unir), um dos grandes estudiosos dos projetos de construção de barragens e usinas hidrelétricas na região do rio Madeira, o mesmo fez questão de ressaltar que iniciativas como essas, da criação desse “centro de excelência”, fazem parte do suporte que o Ministério das Minas e Energias em conjunto com suas estatais e o Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES) vem dando para promover uma cobertura técnico-científica ao criminoso avanço de consórcios econômicos internacionais sobre a “fronteira elétrica na Amazônia”.

Com esse “Centro de Excelência em Energia do Acre” o que está em “operação é o espraiar de empresas que atuam no Complexo Rio Madeira”, saindo na dianteira para ficar em posição de “se apropriarem das quinze novas Usinas Hidrelétricas (UHEs) a serem construídas na Amazônia peruana. Nucleadas pela Santo Antônio Energia (SAESA) que é concessionária da UHE de Santo Antonio e pela Energia Sustentável do Brasil (ESBR) que é concessionária da UHE de Jirau, as demais empresas que estão associadas à Ufac para a construção do ‘centro de excelência’ são algumas das responsáveis pela logística (linha de transmissão: Norte Brasil e Interligação) e suprimentos (turbinas e demais equipamentos), Siemens-Voith com SAESA e Alstom com ESBR. Esse centro na universidade demonstra bem a excelência da espoliação que buscam tais empresas, reproduzindo em micro-escala a forma como vêm lidando com as populações do Madeira e seu meio ambiente”.

O debate indispensável

A devassa proporcionada pela ação dos tratores e máquinas para a abertura da estrada na área do Parque Zoobotânico, jogando por terra toda a discussão e debates acadêmicos acerca da preservação, conservação e estudos sobre a diversidade da flora e fauna daquele local, simbolizam o cenário de palavras de efeito, dos discursos ufanistas e do “rolo compressor” que acompanham o germe da criação de tal “centro” nessa universidade. Frente aos interesses de mercado não existe diálogo possível. A alternativa é fazer e fazer, não importando seus desdobramentos ou nada do que se disse antes.

O site da Ufac informa que o Parque Zoobotânico, “criado em 1979, compreende uma área de 100 ha, representada por formações vegetais secundárias em diferentes estágios de regeneração e por um remanescente de mata primária pouco perturbada”. Sua atuação é pautada em três eixos: biodiversidade, ecologia e manejo de ecossistemas, e educação. A ampliação das atividades do parque, ao longo dos últimos vinte anos, possibilitou-lhe gerar “autonomia científica, didática e administrativa, agilizando o cumprimento dos seus objetivos primordiais: contribuir com o desenvolvimento regional na geração de produtos relacionados à pesquisa, conhecimento florístico da região, preservação, educação ambiental envolvendo importantes aspectos da flora e fauna amazônica, bem como capacitando recursos humanos em diferentes campos de atuação”.

Pelo visto, nada disso foi levado em consideração pela administração superior da Ufac, pois a mesma, até a presente data, não fez nenhum comunicado oficial sobre as razões que a levaram a autorizar a abertura da estrada, iniciando o preparo do local para a implantação do referido “centro de excelência” e para a solenidade inaugural – espetáculo midiático – do “novo” empreendimento. Porém, é preciso dizer que interessa a todos nós saber o teor do laudo dos estudos sobre os impactos ambientais na área devastada pela estrada. Também interessa-nos conhecer o teor da licença ambiental concedida pelos órgãos responsáveis por tais licenciamentos. Os atos da gestão pública precisam ser divulgados para terem a devida legalidade: “registre-se, publique-se, cumpra-se” são os ditames legais obrigatórios para tudo o que tem a ver com a gestão da coisa pública.

Mais que isso, a comunidade universitária e a sociedade local precisam ser informadas sobre as razões que justificam a parceria firmada pela administração – em nome de todos nós – com empresas que têm como única finalidade a conquista dos mercados, a expansão de seus negócios e empreendimentos e a draconiana mercantilização de serviços essenciais para a população, de um modo em geral, como é o caso do fornecimento de energia elétrica. Uma concessão de tamanha envergadura a consórcios de grupos econômicos nacionais e internacionais geram graves consequências para a autonomia e para as finalidades últimas da universidade, sobre as quais compete ao Conselho Universitário dar a última palavra: o ensino, a pesquisa e a extensão.

As agências de notícias, jornais e a própria assessoria de imprensa da universidade divulgaram, em febril estado de congraçamento e júbilo, a construção do “centro de excelência” para o qual serão destinados recursos na ordem de “36 milhões de reais em estrutura física e aquisição de equipamentos”, somente na primeira fase de implantação. Sendo previstos outros “10 milhões de dólares, captados junto a agências internacionais para formação de recursos humanos”. Tudo isso numa universidade que vive graves colapsos com a falta de professores e técnicos administrativos, laboratórios, acervos bibliográficos, publicação e circulação de resultados de pesquisas e projetos/programas de extensão, condições de permanência dos estudantes na instituição e a total precariedade das estruturas físicas que abrigam os cursos de graduação e pós-graduação existentes.

No tocante a autonomia o que se anuncia publicamente é algo por demais preocupante, especialmente, porque o “centro de excelência” será gerenciado por uma “Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip)”, tendo à frente um “conselho deliberativo composto por nove pessoas indicadas pela Eletrobras, Ufac e empresas ou consórcios associados”, tais como: “Energia Sustentável do Brasil, Santo Antônio Energia, Interligação Elétrica do Madeira e Norte Brasil Transmissora de Energia e as empresas Alstom, Siemens, Voith Hydro, Impsa e Andritz Hydro”. Esse “estranho” conselho é quem vai deliberar não apenas sobre os investimentos para a geração e transmissão de energia, mas, também, sobre “qualificação de mão-de-obra especializada, capacitação de profissionais em engenharia e tecnologia da informação em níveis de graduação, mestrado e doutorado”. Tudo isso, “naturalmente” em um “centro de excelência” abrigado no interior do campus da Universidade Federal do Acre e sob os generosos auspícios de sua atual administração.

Envaidecidos com o “grandioso futuro” desse centro, seus signatários anunciam o “boom” da nova frente de desenvolvimento regional: a da energia elétrica, com o aproveitamento dos “recursos hidráulicos”, “recursos florestais”, potencializando os “recursos humanos”, ampliando a circulação dos “recursos de capitais”, entre outros adjetivos do mundo do mercado que, sob o invólucro da “sustentabilidade e do uso de recursos dentro dos preceitos de conservação ambiental”, evidenciam a razão cínica que nos anuncia o “avançar mais” dos “novos tempos” de “progresso”, “desenvolvimento” e “bem estar para a Amazônia”. Razão essa, cunhada pelos fascistas da ditadura militar e perpetuada nos dias de hoje por seus herdeiros e viúvas.
Por fim, encerro fazendo minhas as palavras e interrogações de Luis Novoa, ao saber do lançamento do “Centro de Excelência em Energia do Acre: que papel público pode ter esse “cavalo de tróia”? Essa “cabeça de ponte”? O que justifica concessões dessa natureza por parte da reitoria de uma Instituição Pública de Ensino Superior?

*Professor vinculado ao Centro de Educação, Letras e Artes da Universidade Federal do Acre