DIAGNÓSTICO SANGUÍNEO PARA A APNEIA
Coração sufocado: responsável por alterações cardíacas, apneia pode ter diagnóstico sanguíneo
Maria Guimarães
Pesquisa Fapesp Online
No embalo do sono, quando o corpo relaxa e se prepara para deixar entrar o mundo dos sonhos, de repente o ar não passa pela garganta. Sem consciência disso, o dormidor acorda apenas o suficiente para aspirar uma boa dose de ar. É o que acontece, dezenas de vezes por noite, com quem sofre de apneia obstrutiva do sono. Essa falta de ar intermitente causa uma série de problemas de saúde e, de acordo com o grupo da médica Dalva Poyares, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), é responsável por alterações estruturais e funcionais no coração. Os pesquisadores agora buscam reverter esses efeitos e encontrar um marcador diagnóstico barato e eficiente para detectar a apneia obstrutiva do sono, um mal que na capital paulista aflige um terço da população. A pesquisa é parte de um projeto desenvolvido e coordenado pelo médico Sergio Tufik, diretor do Instituto do Sono, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP e referência mundial em distúrbios do sono.
“Quando a pessoa tem apneia, ela faz todo o movimento de respirar, mas o ar não entra”, conta Dalva. O resultado é uma pressão negativa dentro do tórax que reduz o retorno de sangue do pulmão para o lado direito do coração e impede que se encha por inteiro, forçando o átrio esquerdo a se contrair mais. Essa musculação cardíaca altera a estrutura do átrio esquerdo, a ponto de reduzir o volume de sangue bombeado.
O efeito não tinha sido detectado até agora porque os estudos anteriores usaram ecocardiografias convencionais, de imagens bidimensionais. “Esse exame usa parâmetros em duas dimensões para medir as partes do coração”, explica Dalva, “mas o resultado é pouco preciso porque o órgão tem formas irregulares”. Com a ecocardiografia mais detalhada, em três dimensões, feita pelo médico ecocardiografista Wercules Oliveira, o grupo da Unifesp conseguiu detectar um aumento do átrio que, embora não saia do espectro considerado normal, é típico dos pacientes apneicos. Essa característica pode explicar pelo menos parte dos problemas cardiovasculares comuns em quem sofre dessa dificuldade respiratória noturna.
Um átrio esquerdo aumentado já tinha sido apontado pelo estudo Framingham, um projeto norte-americano de epidemiologia cardiovascular, como associado a uma maior incidência de acidentes vasculares cerebrais e indicador de aumento de mortalidade. O estudo da Unifesp, publicado no final de 2009 na Heart, avaliou 56 pacientes com diagnóstico de apneia recente e mostrou que parte do funcionamento do átrio esquerdo pode ser restabelecida com o uso de CPAP, um aparelho acoplado a uma máscara que, durante o sono, lança ar nariz adentro e regulariza a respiração e deve ser usado todas as noites por quem tem apneia. O achado sublinha a participação da apneia no desenvolvimento das dificuldades cardíacas e ressalta a eficácia do CPAP como tratamento não só para amenizar a falta de ar e tornar o sono mais constante e restaurador, mas também para contra-arrestar as consequências da apneia no organismo.
O experimento feito no Instituto do Sono limitou o uso do CPAP a 24 semanas, o suficiente para melhorar a capacidade de esvaziamento do átrio esquerdo, mas não para diminuir a força contrativa do átrio e reduzi-lo ao tamanho normal. “Ainda não sabemos se é possível reverter a mudança de forma, talvez seja preciso ampliar para um ano o uso de CPAP”, diz Dalva.
É um avanço, mas uma dificuldade permanece: detectar a apneia do sono. O exame definitivo é a polissonografia, em que o paciente dorme ligado a aparelhos que medem parâmetros como respiração, atividade do cérebro e do coração. Mas muitas pessoas que sofrem de hipertensão, tosse e depressão, por exemplo, acabam consultando médicos de várias especialidades sem que nenhum deles perceba que os problemas estão relacionados à qualidade do sono. Ainda não há um exame simples e barato que possa ser feito por qualquer médico, mas o grupo de Dalva pode estar prestes a sanar essa deficiência.
Diagnóstico – Eles mediram no sangue de 75 pacientes e 75 voluntários saudáveis substâncias ligadas ao estresse oxidativo, uma característica da apneia. Os resultados, publicados este ano na Chest, indicam o aminoácido cisteína como um possível marcador da doença. Quanto mais grave a apneia, mais alta a concentração de cisteína no sangue. “É a única substância, entre as que examinamos, cujos níveis elevados só estão relacionados à apneia, e não à hipertensão, à obesidade ou a outros fatores comuns nos apneicos”, Dalva afirma.
A descoberta se deu um pouco ao acaso. A cisteína é parte do metabolismo da homocisteína, um aminoácido que já se sabia estar ligado a problemas cardiovasculares. “Mas ninguém presta atenção à cisteína”, conta a bióloga Vânia D’Almeida, também da Unifesp. Ela é uma das autoras do trabalho da Chest e desde 1997 estuda a homocisteína (ver Pesquisa FAPESP nº 60). Alterações nos níveis da cisteína foram uma surpresa no doutorado de Juliana Perry, orientado por Tufik e por Vânia, e publicado em 2007 na Respiratory Physiology & Neurobiology. Num modelo que reproduz a falta de ar intermitente dos apneicos, ratos expostos a uma baixa concentração de oxigênio – com 10% de oxigênio em vez dos 21% normais – e com privação de sono têm mais cisteína no sangue do que o normal. Veio daí a ideia de medir esse parâmetro em seres humanos.
Agora é preciso examinar pessoas com apneia em fase inicial, ainda sem sintomas. “Precisamos saber se a cisteína é apenas um marcador da progressão da doença ou se pode servir como diagnóstico precoce”, afirma Vânia. Um bom banco de dados seria o Episono, mas só a homocisteína foi medida nos mais de mil participantes do estudo. “Precisamos reanalisar as amostras para medir a cisteína, além de repetir as dosagens com os voluntários que participaram do estudo”, planeja Vânia. Não são planos vagos. O assunto já foi discutido com Tufik, que declarou: “Precisamos disso para ontem”.
Foto: Paula Muniz
Maria Guimarães
Pesquisa Fapesp Online
No embalo do sono, quando o corpo relaxa e se prepara para deixar entrar o mundo dos sonhos, de repente o ar não passa pela garganta. Sem consciência disso, o dormidor acorda apenas o suficiente para aspirar uma boa dose de ar. É o que acontece, dezenas de vezes por noite, com quem sofre de apneia obstrutiva do sono. Essa falta de ar intermitente causa uma série de problemas de saúde e, de acordo com o grupo da médica Dalva Poyares, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), é responsável por alterações estruturais e funcionais no coração. Os pesquisadores agora buscam reverter esses efeitos e encontrar um marcador diagnóstico barato e eficiente para detectar a apneia obstrutiva do sono, um mal que na capital paulista aflige um terço da população. A pesquisa é parte de um projeto desenvolvido e coordenado pelo médico Sergio Tufik, diretor do Instituto do Sono, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP e referência mundial em distúrbios do sono.
“Quando a pessoa tem apneia, ela faz todo o movimento de respirar, mas o ar não entra”, conta Dalva. O resultado é uma pressão negativa dentro do tórax que reduz o retorno de sangue do pulmão para o lado direito do coração e impede que se encha por inteiro, forçando o átrio esquerdo a se contrair mais. Essa musculação cardíaca altera a estrutura do átrio esquerdo, a ponto de reduzir o volume de sangue bombeado.
O efeito não tinha sido detectado até agora porque os estudos anteriores usaram ecocardiografias convencionais, de imagens bidimensionais. “Esse exame usa parâmetros em duas dimensões para medir as partes do coração”, explica Dalva, “mas o resultado é pouco preciso porque o órgão tem formas irregulares”. Com a ecocardiografia mais detalhada, em três dimensões, feita pelo médico ecocardiografista Wercules Oliveira, o grupo da Unifesp conseguiu detectar um aumento do átrio que, embora não saia do espectro considerado normal, é típico dos pacientes apneicos. Essa característica pode explicar pelo menos parte dos problemas cardiovasculares comuns em quem sofre dessa dificuldade respiratória noturna.
Um átrio esquerdo aumentado já tinha sido apontado pelo estudo Framingham, um projeto norte-americano de epidemiologia cardiovascular, como associado a uma maior incidência de acidentes vasculares cerebrais e indicador de aumento de mortalidade. O estudo da Unifesp, publicado no final de 2009 na Heart, avaliou 56 pacientes com diagnóstico de apneia recente e mostrou que parte do funcionamento do átrio esquerdo pode ser restabelecida com o uso de CPAP, um aparelho acoplado a uma máscara que, durante o sono, lança ar nariz adentro e regulariza a respiração e deve ser usado todas as noites por quem tem apneia. O achado sublinha a participação da apneia no desenvolvimento das dificuldades cardíacas e ressalta a eficácia do CPAP como tratamento não só para amenizar a falta de ar e tornar o sono mais constante e restaurador, mas também para contra-arrestar as consequências da apneia no organismo.
O experimento feito no Instituto do Sono limitou o uso do CPAP a 24 semanas, o suficiente para melhorar a capacidade de esvaziamento do átrio esquerdo, mas não para diminuir a força contrativa do átrio e reduzi-lo ao tamanho normal. “Ainda não sabemos se é possível reverter a mudança de forma, talvez seja preciso ampliar para um ano o uso de CPAP”, diz Dalva.
É um avanço, mas uma dificuldade permanece: detectar a apneia do sono. O exame definitivo é a polissonografia, em que o paciente dorme ligado a aparelhos que medem parâmetros como respiração, atividade do cérebro e do coração. Mas muitas pessoas que sofrem de hipertensão, tosse e depressão, por exemplo, acabam consultando médicos de várias especialidades sem que nenhum deles perceba que os problemas estão relacionados à qualidade do sono. Ainda não há um exame simples e barato que possa ser feito por qualquer médico, mas o grupo de Dalva pode estar prestes a sanar essa deficiência.
Diagnóstico – Eles mediram no sangue de 75 pacientes e 75 voluntários saudáveis substâncias ligadas ao estresse oxidativo, uma característica da apneia. Os resultados, publicados este ano na Chest, indicam o aminoácido cisteína como um possível marcador da doença. Quanto mais grave a apneia, mais alta a concentração de cisteína no sangue. “É a única substância, entre as que examinamos, cujos níveis elevados só estão relacionados à apneia, e não à hipertensão, à obesidade ou a outros fatores comuns nos apneicos”, Dalva afirma.
A descoberta se deu um pouco ao acaso. A cisteína é parte do metabolismo da homocisteína, um aminoácido que já se sabia estar ligado a problemas cardiovasculares. “Mas ninguém presta atenção à cisteína”, conta a bióloga Vânia D’Almeida, também da Unifesp. Ela é uma das autoras do trabalho da Chest e desde 1997 estuda a homocisteína (ver Pesquisa FAPESP nº 60). Alterações nos níveis da cisteína foram uma surpresa no doutorado de Juliana Perry, orientado por Tufik e por Vânia, e publicado em 2007 na Respiratory Physiology & Neurobiology. Num modelo que reproduz a falta de ar intermitente dos apneicos, ratos expostos a uma baixa concentração de oxigênio – com 10% de oxigênio em vez dos 21% normais – e com privação de sono têm mais cisteína no sangue do que o normal. Veio daí a ideia de medir esse parâmetro em seres humanos.
Agora é preciso examinar pessoas com apneia em fase inicial, ainda sem sintomas. “Precisamos saber se a cisteína é apenas um marcador da progressão da doença ou se pode servir como diagnóstico precoce”, afirma Vânia. Um bom banco de dados seria o Episono, mas só a homocisteína foi medida nos mais de mil participantes do estudo. “Precisamos reanalisar as amostras para medir a cisteína, além de repetir as dosagens com os voluntários que participaram do estudo”, planeja Vânia. Não são planos vagos. O assunto já foi discutido com Tufik, que declarou: “Precisamos disso para ontem”.
Foto: Paula Muniz
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