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01 outubro 2008

MALÁRIA NA AMAZÔNIA

As paisagens da malária na Amazônia*

Ulisses Confalonieri
Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública
Fundação Oswaldo Cruz

A malária é a doença infecciosa endêmica mais importante da Amazônia brasileira, pela sua ampla difusão na região, a alta incidência, os impactos na morbi-mortalidade e difícil controle.

É transmitida por mosquitos que proliferam em acúmulos d'água em ecossistemas naturais ou com pequenos graus de antropização. Não apresenta animais silvestres vertebrados como reservatórios da infecção, ou seja, "os focos de infecção" sempre dependem da presença de seres humanos e de mosquitos infectados.

Por outro lado, um fator de alta relevância na determinação da situação endêmico-epidêmica desta doença na Amazônia (ou em qualquer outro lugar) é a possibilidade de realização de diagnóstico e tratamento precoces, para extinção da fonte de infecção, representada pelo hospedeiro humano, o único capaz de servir de fonte do parasita para mosquitos que os vão transmitir a indivíduos saudáveis. Este aspecto está, por sua vez, diretamente relacionado à capacidade resolutiva dos sistemas de saúde e dos programas de vigilância e controle da doença, em termos governamentais.

Sob o ponto de vista biológico, as populações e indivíduos oriundos de fora da zona endêmica de malária, que abrange toda a Amazônia brasileira, não tendo experiência prévia com a doença, não tem imunidade parcial às infecções, pois não foram repetidamente expostos a ela, conforme se verifica em algumas populações tradicionais da região.

Outros dois fatores não biológicos são relevantes na determinação da dinâmica da doença na Amazônia. O primeiro diz respeito à percepção do risco, ou seja, o conhecimento, pelos indivíduos vulneráveis, das formas de aquisição da infecção, principalmente nas horas de maior atividade dos insetos vetores. Este conhecimento é pré-requisito para a tomada de medidas de proteção individual, principalmente a redução da exposição ao ataque de mosquitos.

O segundo fator está relacionado com a mobilidade espacial dos grupos familiares, comunitários ou de trabalho. Esse fenômeno é característico, na Amazônia, em alguns grupos indígenas e naqueles envolvidos com extrativismo, como os garimpos de caráter não empresarial. A mobilidade freqüente dificulta a continuidade do tratamento, bem como a redução da exposição aos vetores, pela impossibilidade do controle local.

O resultado final da conjugação desses fatores biológicos, comportamentais e geográficos será a incidência maior ou menor da malária, nos diferentes grupos expostos, bem como a maior ou menor estabilidade da transmissão e a gravidade da doença (Figura 1).

Para discutirmos os diferentes aspectos da malária em situações diferenciadas e típicas da Amazônia – de importância para o planejamento das ações de controle – utilizaremos o conceito de paisagens nosológicas, oriundo da epidemiologia paisagística clássica, enunciada por Pavlovsky (1966), com modificações. Originalmente, o conceito pavlovskiano de "foco natural" incluía principalmente o ecossistema e seus animais, vertebrados e invertebrados, capazes de manter os agentes infecciosos circulando, sem a interferência humana ou de animais domésticos.

Entretanto, neste estudo, ampliamos o conceito de "paisagem" de uma doença infecciosa, para incluir as dinâmicas socioeconômica e ambiental, no contexto de sua transmissão. Isso quer dizer que as "paisagens da malária" são determinadas pelas diversas interações entre as práticas de uso da terra, o comportamento humano, os elementos físicos e biológicos do meio natural e as transformações nele causadas pela intervenção humana. Assim, adotamos uma epidemiologia paisagística "pós-Pavlovskiana", ao incluir características do elemento humano e suas interações com o ambiente como partes constituintes das paisagens e, por isso, como determinantes das dinâmicas epidemiológicas (Figura 2).

Aqui utilizamos o conceito geográfico clássico de paisagem como sendo "um mosaico onde a mistura de ecossistemas locais e usos da terra se repete, de forma similar, por áreas de quilômetros de extensão" (Forman, 1995).

A partir dessas complexas formas de interação, identificamos algumas paisagens típicas da malária na Amazônia brasileira. Na identificação dessas paisagens, assim como para a sua denominação, adotamos em parte a classificação desenvolvida por Lima e Pozzobom (2001).

Estes autores, sem pretender cobrir toda a diversidade social da região, distinguiram nove categorias socioambientais de "produtores rurais", com base na pressão de uso e de impacto que exercem sobre o ambiente, relacionados ao modo como ocupam, exploram e concebem sua relação com a natureza. Utilizamos cinco dessas categorias socioambientais e a elas agregamos os grandes assentamentos urbanos, dado a sua importância demográfica e geográfica, para a região, bem como sua importância para a epidemiologia da malária (Tabela 1, abaixo).

A identificação dessas seis categorias foi feita para mais bem se discutir o conceito de paisagens de doenças infecciosas e sua relevância prática. Pretendeu-se incluir as situações de transmissão de malária mais facilmente diferenciáveis entre si, sob o ponto de vista socioambiental, além de terem maior importância epidemiológica. Há transmissão de malária em outras situações na Amazônia, como por exemplo, as que envolvem deslocamentos transitórios de grupos em áreas endêmicas (manobras militares, expedições científicas e geográficas etc.). Também há assentamentos permanentes sujeitos à doença como os latifúndios que exploram a pecuária e destacamentos militares de fronteira. Entretanto, como estes não são, geralmente, contextos de hiperendemicidade da doença, não foram caracterizados como paisagens típicas.

Deixando de lado, para nossos propósitos, os critérios de sustentabilidade ecológica e orientação econômica dessas categorias socioambientais, limitamo-nos a uma caracterização epidemiológica de cada grupo, incluindo fatores críticos para a transmissão e controle da doença, a saber:

1. Geográfico: o acesso físico às comunidades na Amazônia é um importante determinante da eficácia de controle da malária, por razões operacionais. Nesse sentido, o grau de mobilidade dos grupos e sua distância das cidades ou de vias de transporte (fluvial e rodoviária), determinam a dificuldade e custo maior ou menor do acesso;

2. Mobilidade da população: é alta em algumas comunidades de indígenas de comércio esporádico, bem como em grupos extrativistas, como garimpeiros;

3. Imunidade da população: só existe em níveis capazes de conferir algum grau de proteção a novas infecções em grupos assentados de longa data em áreas endêmicas, como os pequenos produtores e índios. Entretanto, neste últimos, quando mais isolados, o quadro da doença pode modificar-se rapidamente com a introdução de cepas do parasito mais agressivas, em virtude de contatos externos;

4. Percepção de risco: diz respeito a uma "cultura da malária", isto é, conhecimentos elementares sobre as formas de aquisição da doença e medidas de prevenção.Tende a ser baixa em migrantes da extra-Amazônia, sem experiência prévia com a doença;

5. Controle de vetores: além de ser de realização difícil em paisagens de difícil acesso e com populações de alta mobilidade, atividades com transformações ambientais que ensejam a proliferação de criadouros de mosquitos, como no caso dos garimpos de ouro em rios, tendem a piorar a dificuldade;

6. Dinâmica da doença: definida pela estabilidade da transmissão e pelos níveis de incidência do parasito. Quanto mais instável for a dinâmica da doença, mais difícil seu controle. A instabilidade é causada pelo grau de imunidade da população; pela eficácia no tratamento dos doentes; pela mobilidade populacional e pela freqüência de entrada de cepas novas do agente infeccioso.

Para uma adequada organização das atividades de controle da malária na região, devem ser considerados todos os elementos que caracterizam as paisagens da doença. Só com uma compreensão das especificidades ambientais e sociais de cada paisagem podem ser adaptadas estratégias específicas de atuação.

Analisando-se a tabela comparativa das paisagens (Tabela 1) podemos notar a ausência de uma correlação entre o grau de antropização da paisagem, as características epidemiológicas da doença, e as facilidades para seu controle.

Comparando duas paisagens bem distintas, como as comunidades indígenas de comércio esporádico e as comunidades associadas aos grandes projetos, como a mineração industrial, podemos compreender melhor a epidemiologia da malária.

Ambas se localizam fisicamente em meio a ecossistemas naturais, contendo as espécies vetoras da malária mas, as primeiras distinguem-se pela existência de uma convivência histórica com a doença, que lhes pode conferir algum grau de equilíbrio epidemiológico. Entretanto, são muito vulneráveis a perturbações externas, representadas pelo contato com outros grupos sociais, capazes de modificar radicalmente o quadro epidemiológico, pela introdução de outras cepas de malária. Ademais, as ações de controle da doença nessas comunidades costumam ser difíceis pela sua localização remota e por comportamentos culturalmente determinados, que podem aumentar a exposição aos mosquitos e também dificultar a eficácia dos tratamentos.

Por outro lado, na situação dos grandes projetos, as transformações radicais do meio físico circundante, os investimentos em obras de saneamento e em vigilância epidemiológica e assistência médica são capazes de reduzir acentuadamente a incidência da doença. Formam-se, assim, verdadeiras redomas sanitárias que isolam os trabalhadores e seus familiares dos perigos biológicos da floresta.

Entre esses extremos encontramos outras paisagens da malária com variações na importância relativa dos determinantes principais da doença, na capacidade de controle sanitário e nos graus de endemismo.

Um comentário adicional deve ser feito em relação à malária na periferia das cidades grandes, como Belém e, principalmente, Manaus. A doença tornou-se endêmica em função de três aspectos principais:

1. A proximidade das comunidades, geralmente invasões, em relação à floresta, que contém os mosquitos vetores;

2. A contínua chegada de migrantes infectados vindos do interior, que renovam a transmissão; e

3. A ineficiência do sistema local de saúde em controlar a doença.

*Texto extraído do artigo "Saúde na Amazônia: um modelo conceitual para a análise de paisagens e doenças", de Ulisses E. C. Confalonieri, Pesquisador do pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, publicado na revista Estudos Avançados, Dossiê Amazônia, Vol. 19 no. 53, São Paulo, Jan./Apr. 2005.