O CÉREBRO FABRICA MACONHA
Pesquisadores de São Paulo descobrem novas substâncias canabinoides produzidas pelos neurônios
Roberto Lent
Universidade Federal do Rio de Janeiro
No início dos anos 1970, uma grande surpresa agitou os farmacologistas, aqueles que estudam o efeito das substâncias químicas sobre os órgãos e sobre as células. É que o neurocientista Solomon Snyder, da Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, descobriu que havia no cérebro proteínas capazes de reconhecer a morfina. Eram os receptores opioides, chamados assim em referência ao ópio, que contém grande quantidade de morfina.
Parecia muito estranho que o cérebro tivesse receptores para uma substância analgésica obtida de um vegetal – a papoula (Papaver somniferum)... E ainda mais uma substância fortemente viciante, presente no tradicional narcótico cujo uso remonta a eras e civilizações antigas. No entanto, pouco tempo depois, o mesmo Snyder descobriu as morfinas endógenas, que ficaram conhecidas como endorfinas. Ficamos sabendo então que o nosso cérebro fabrica um tipo de morfina participante dos mecanismos naturais de regulação da dor.
A maconha feita no cérebro
Na década de 1990, a descoberta de receptores cerebrais capazes de reconhecer as substâncias psicoativas derivadas da maconha (na foto) surpreendeu os pesquisadores (foto: United States Fish and Wildlife Service).
Surpresa parecida causou a descoberta dos receptores canabinoides, capazes de reconhecer as substâncias psicoativas derivadas da maconha (Cannabis sativa). Foi em 1990 que o grupo do farmacologista Tom Bonner, do Instituto Nacional de Saúde Mental, nos Estados Unidos, clonou pela primeira vez um receptor canabinoide do cérebro. A esse feito seguiu-se a descoberta dos endocanabinoides, compostos gordurosos produzidos por neurônios e capazes de serem reconhecidos pelos mesmos receptores da maconha, posicionados na membrana de outros neurônios.
O que faria essa maconha endógena no cérebro? Os anos seguintes mostraram que os endocanabinoides são neurotransmissores não convencionais, pois não são armazenados em vesículas, mas produzidos “sob encomenda”. Ou seja: quando os neurônios do sistema nervoso central são ativados, sintetizam “maconha endógena” para modular as suas próprias sinapses.
Constatou-se que a ação dos endocanabinoides nas sinapses é retrógrada, ou seja, ocorre de trás para frente: sintetizadas no neurônio ativado por uma sinapse, essas substâncias vão atingir o neurônio antecedente da cadeia, sendo reconhecidas pelos receptores nele posicionados, que então freiam a transmissão sináptica que acabou de se iniciar. Uma espécie de marcha a ré da transmissão sináptica. Esse mecanismo é atuante nas regiões cerebrais que regulam o apetite e o humor, além das regiões ligadas à dor e à memória.
O tetra-hidrocanabinol (à esquerda) é reconhecido pelo receptor canabinoide (à direita, em verde), que fica encravado na membrana dos neurônios (modelo molecular do receptor feito pela North Carolina Central University, EUA).
Os nossos canabinoides
Com a evolução do conhecimento sobre os endocanabinoides, mais surpresas aguardavam os farmacologistas. A mais recente delas veio de um estudo publicado há poucas semanas, realizado por pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, da empresa Proteimax, também de São Paulo, e das escolas de medicina Mount Sinai e Albert Einstein, em Nova York, nos Estados Unidos.
O grupo descobriu que os neurônios produzem peptídeos (pequenas proteínas) derivados da hemoglobina que ativam os receptores canabinoides do sistema nervoso – de modo semelhante à maconha. O trabalho envolveu o levantamento proteômico dos derivados da hemoglobina e de sua presença no cérebro, o que levou à identificação de peptídeos com nove aminoácidos e ação canabinoide. Essas substâncias, chamadas hemopressinas, foram encontradas em regiões do cérebro ligadas à regulação do apetite (o hipotálamo) e em outras que atuam na geração de sensações prazerosas (o núcleo acumbente), bem como nos terminais nervosos periféricos envolvidos na dor.
Os pesquisadores então realizaram diversos experimentos para testar a ação das hemopressinas nos receptores canabinoides conhecidos, o que permitiu a identificação da via de ação desses peptídeos.
Hemoglobina e maconha: relação improvável
Relações improváveis: a molécula da hemoglobina (na imagem), quem diria, existe também nas células do sistema nervoso e origina pequenas proteínas reguladoras dos endocanabinoides, como a hemopressina.
A nova surpresa que o estudo trouxe, além da identificação de novos canabinoides, foi a sua origem a partir da hemoglobina. O que estaria fazendo no cérebro a molécula mais conhecida do sangue, encarregada de fixar o oxigênio da respiração nas células vermelhas? Na verdade, já se conhecia a presença de hemoglobina, em pequenas quantidades, em outros tecidos, como o endométrio do útero feminino, o cristalino do olho, os glomérulos dos rins e também os neurônios e células gliais do cérebro.
Outro fato que chama a atenção é que dados preliminares anunciados pelos autores do estudo indicam a produção de hemopressina em maiores quantidades quando o cérebro é submetido a condições de isquemia, como nos acidentes vasculares cerebrais. Nesse caso, teria essa “maconha endógena” alguma ação protetora contra os acidentes isquêmicos cerebrais?
A natureza, como se vê, percorre os mesmos caminhos para atender diferentes necessidades. As diversas células do organismo são aparelhadas para sintetizar substâncias semelhantes em órgãos e tecidos diferentes. Mas, em cada um, as mesmas substâncias são utilizadas para funções distintas. Soluções plenas de “racionalidade econômica”, diriam os economistas. Aproveitamento máximo das mesmas soluções em diferentes problemas.
SUGESTÕES PARA LEITURA
C.B. Pert e S.H. Snyder (1973) Opiate receptor: demonstration in nervous tissue. Science, vol. 179: pp. 1011-1014.
L.A. Chung e colaboradores (1990) Structure of a cannabinoid receptor and functional expression of the cloned cDNA. Nature, vol. 346: pp.561-564.
A. Heimann e colaboradores (2007) Hemopressin is an inverse agonist of CB1 cannabinoid receptors. Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA, vol. 104: pp. 20588-20593.
I. Gomes e colaboradores (2009) Novel endogenous peptide agonists of cannabinoid receptors. FASEB Journal, publicação eletrônica de 20 de abril.
Roberto Lent
Universidade Federal do Rio de Janeiro
No início dos anos 1970, uma grande surpresa agitou os farmacologistas, aqueles que estudam o efeito das substâncias químicas sobre os órgãos e sobre as células. É que o neurocientista Solomon Snyder, da Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, descobriu que havia no cérebro proteínas capazes de reconhecer a morfina. Eram os receptores opioides, chamados assim em referência ao ópio, que contém grande quantidade de morfina.
Parecia muito estranho que o cérebro tivesse receptores para uma substância analgésica obtida de um vegetal – a papoula (Papaver somniferum)... E ainda mais uma substância fortemente viciante, presente no tradicional narcótico cujo uso remonta a eras e civilizações antigas. No entanto, pouco tempo depois, o mesmo Snyder descobriu as morfinas endógenas, que ficaram conhecidas como endorfinas. Ficamos sabendo então que o nosso cérebro fabrica um tipo de morfina participante dos mecanismos naturais de regulação da dor.
A maconha feita no cérebro
Na década de 1990, a descoberta de receptores cerebrais capazes de reconhecer as substâncias psicoativas derivadas da maconha (na foto) surpreendeu os pesquisadores (foto: United States Fish and Wildlife Service).
Surpresa parecida causou a descoberta dos receptores canabinoides, capazes de reconhecer as substâncias psicoativas derivadas da maconha (Cannabis sativa). Foi em 1990 que o grupo do farmacologista Tom Bonner, do Instituto Nacional de Saúde Mental, nos Estados Unidos, clonou pela primeira vez um receptor canabinoide do cérebro. A esse feito seguiu-se a descoberta dos endocanabinoides, compostos gordurosos produzidos por neurônios e capazes de serem reconhecidos pelos mesmos receptores da maconha, posicionados na membrana de outros neurônios.
O que faria essa maconha endógena no cérebro? Os anos seguintes mostraram que os endocanabinoides são neurotransmissores não convencionais, pois não são armazenados em vesículas, mas produzidos “sob encomenda”. Ou seja: quando os neurônios do sistema nervoso central são ativados, sintetizam “maconha endógena” para modular as suas próprias sinapses.
Constatou-se que a ação dos endocanabinoides nas sinapses é retrógrada, ou seja, ocorre de trás para frente: sintetizadas no neurônio ativado por uma sinapse, essas substâncias vão atingir o neurônio antecedente da cadeia, sendo reconhecidas pelos receptores nele posicionados, que então freiam a transmissão sináptica que acabou de se iniciar. Uma espécie de marcha a ré da transmissão sináptica. Esse mecanismo é atuante nas regiões cerebrais que regulam o apetite e o humor, além das regiões ligadas à dor e à memória.
O tetra-hidrocanabinol (à esquerda) é reconhecido pelo receptor canabinoide (à direita, em verde), que fica encravado na membrana dos neurônios (modelo molecular do receptor feito pela North Carolina Central University, EUA).
Os nossos canabinoides
Com a evolução do conhecimento sobre os endocanabinoides, mais surpresas aguardavam os farmacologistas. A mais recente delas veio de um estudo publicado há poucas semanas, realizado por pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, da empresa Proteimax, também de São Paulo, e das escolas de medicina Mount Sinai e Albert Einstein, em Nova York, nos Estados Unidos.
O grupo descobriu que os neurônios produzem peptídeos (pequenas proteínas) derivados da hemoglobina que ativam os receptores canabinoides do sistema nervoso – de modo semelhante à maconha. O trabalho envolveu o levantamento proteômico dos derivados da hemoglobina e de sua presença no cérebro, o que levou à identificação de peptídeos com nove aminoácidos e ação canabinoide. Essas substâncias, chamadas hemopressinas, foram encontradas em regiões do cérebro ligadas à regulação do apetite (o hipotálamo) e em outras que atuam na geração de sensações prazerosas (o núcleo acumbente), bem como nos terminais nervosos periféricos envolvidos na dor.
Os pesquisadores então realizaram diversos experimentos para testar a ação das hemopressinas nos receptores canabinoides conhecidos, o que permitiu a identificação da via de ação desses peptídeos.
Hemoglobina e maconha: relação improvável
Relações improváveis: a molécula da hemoglobina (na imagem), quem diria, existe também nas células do sistema nervoso e origina pequenas proteínas reguladoras dos endocanabinoides, como a hemopressina.
A nova surpresa que o estudo trouxe, além da identificação de novos canabinoides, foi a sua origem a partir da hemoglobina. O que estaria fazendo no cérebro a molécula mais conhecida do sangue, encarregada de fixar o oxigênio da respiração nas células vermelhas? Na verdade, já se conhecia a presença de hemoglobina, em pequenas quantidades, em outros tecidos, como o endométrio do útero feminino, o cristalino do olho, os glomérulos dos rins e também os neurônios e células gliais do cérebro.
Outro fato que chama a atenção é que dados preliminares anunciados pelos autores do estudo indicam a produção de hemopressina em maiores quantidades quando o cérebro é submetido a condições de isquemia, como nos acidentes vasculares cerebrais. Nesse caso, teria essa “maconha endógena” alguma ação protetora contra os acidentes isquêmicos cerebrais?
A natureza, como se vê, percorre os mesmos caminhos para atender diferentes necessidades. As diversas células do organismo são aparelhadas para sintetizar substâncias semelhantes em órgãos e tecidos diferentes. Mas, em cada um, as mesmas substâncias são utilizadas para funções distintas. Soluções plenas de “racionalidade econômica”, diriam os economistas. Aproveitamento máximo das mesmas soluções em diferentes problemas.
SUGESTÕES PARA LEITURA
C.B. Pert e S.H. Snyder (1973) Opiate receptor: demonstration in nervous tissue. Science, vol. 179: pp. 1011-1014.
L.A. Chung e colaboradores (1990) Structure of a cannabinoid receptor and functional expression of the cloned cDNA. Nature, vol. 346: pp.561-564.
A. Heimann e colaboradores (2007) Hemopressin is an inverse agonist of CB1 cannabinoid receptors. Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA, vol. 104: pp. 20588-20593.
I. Gomes e colaboradores (2009) Novel endogenous peptide agonists of cannabinoid receptors. FASEB Journal, publicação eletrônica de 20 de abril.
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