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29 setembro 2009

AFINIDADES ENTRE KARL MARX E CHARLES DARWIN

Por Igor Zanoni Constant Carneiro Leão

O objetivo desta nota é apontar algumas afinidades bastante claras entre a visão de Karl Marx e de Charles Darwin sobre o homem, a natureza e a sociedade. Ambos viveram na Inglaterra vitoriana e, embora com formação e interesses distintos, aproximaram-se de forma notável na forma de ver a ciência que exerceram e na forma de se interessar pelos problemas do homem e da natureza.

Em 1859, Karl Marx publicou em Londres a Contribuição à crítica da economia política, obra de maturidade em que fazia a crítica da economia política dentro de uma trajetória que o levaria a O capital, cujo primeiro volume foi publicado em vida do autor, em 1867. Essa crítica procurava desvendar a chamada base material das sociedades industrializadas, ou seja, suas articulações internas, sua origem e leis de desenvolvimento, passo preliminar para a crítica da totalidade da sociedade burguesa, isto é, de seus aspectos econômicos, políticos, sociais e ideológicos que mantêm, entre si, relações de correspondência ou conexões de sentido.

No mesmo ano e na mesma cidade Charles Darwin publicou A origem das espécies, após uma hesitação de quinze anos nos quais meditou profundamente sobre sua experiência de naturalista a bordo do Beagle, no qual circunavegaria o globo nos anos 1930 no mesmo século. A obra tornou-se imediatamente reconhecida e divulgada de forma muito mais exitosa que a obra de Marx.

Darwin pretendia colocar as bases de uma teoria científica segundo a qual o desenvolvimento de todas as formas de vida se deu por meio de um processo lento de seleção natural, também conhecida como teoria da evolução; embora Darwin preferisse sempre o termo seleção natural ao termo evolução, pela conotação que este tem de progresso e finalidade. Essa teoria teve desdobramentos com as pesquisas de Mendel – que descobriu a transmissão hereditária de caracteres adquiridos através de genes –, bem como por pesquisas como a descoberta do DNA por Watson e Crick já na década de 1960 do século passado – que avançaram sobre o próprio mecanismo biológico de surgimento de características genéticas novas nos organismos vivos.

Sabe-se da admiração que imediatamente suscitou em Marx o livro de Darwin. Para ele, o naturalista havia descoberto para a natureza leis semelhantes às que descobrira para a história humana. Pensou mesmo em dedicar O capital a Darwin, o qual, entretanto, por sua constituição, não desejava que a sua obra tivesse impactos ainda maiores do que aqueles aos quais já dera origem. Em que sentido há leis semelhantes entre a natureza e a história, na visão de Marx?

Como se sabe, Marx começa sua longa carreira de pensador profícuo e rigoroso ainda na Alemanha como um dos críticos de Hegel, para o qual a história humana pode ser contada pelo desenvolvimento de um espírito que a percorre desde a sua gênese até a sua plena concretização na sociedade liberal e no Estado burguês. Os pós-hegelianos, que também seriam revistos por Marx, haviam dado prioridade, nessa história, ao homem e à sua produção ideológica, invertendo a posição entre o espírito divino e a produção concreta pelos homens de sua vida material. Eram, nesse sentido, críticos da religião, quando para Marx o importante era realçar que as produções ideológicas dos homens guardavam uma relação de subordinação frente à produção de sua vida material, que lhes é anterior. Nesse sentido, os pós-hegelianos são ainda como Hegel, idealistas, e Marx defendia uma posição materialista para investigar a história passada ou presente das sociedades.

Ora, Darwin também escreve em uma época em que as Sagradas Escrituras eram usadas como fonte de saber sobre a natureza. Havia cálculos da vida humana sobre a Terra baseados no livro do Gênese e na duração da vida dos patriarcas bíblicos, o que resultava em problemas sérios para a ciência natural como uma duração improvavelmente curta do universo e das espécies, em confronto com o que se sabia sobre geologia e a formação dos fósseis ou das espécies. Assim, também Darwin parte de um silêncio sobre o valor da verdade bíblica, o que lhe devia ser penoso dado seu passado de estudante de teologia destinado a ser pároco da Igreja Anglicana e diante do ambiente pietista dominante nas cabeças bem pensantes da Inglaterra vitoriana. Porém, por seu espírito retraído, Darwin evitava polêmicas, preferindo pacientemente continuar seu trabalho e avançar na sua história natural baseada na seleção natural. Mas havia uma ponte clara entre o materialismo diante da história de Karl Marx e a postura materialista diante das ciências da vida adotada por Darwin.

Ao estudar a história humana, Marx faz uma crítica à postura de individualismo metodológico adotada na economia política burguesa. Partia-se no exame do fazer humano do ser individual, que já conteria em si o potencial acumulado de conhecimento do conjunto da sociedade. Trata-se de um “robinsonada”, de uma recriação do mito de Robinson Crusoé. Para Marx, ao produzir a vida material, os homens entram em relações de produção determinadas socialmente, e tratava-se de ver a produção humana como social. Por outro lado, a essas relações correspondem, subordinadamente, forças produtivas dentro das quais se desenvolve o trabalho humano social. Essa articulação, entre relações sociais de produção e correspondentes forças produtivas, Marx denomina modo de produção, que forma grandes padrões de produção material caracterizando, com a sociedade, a política ou as ideologias articuladas em conexões de sentido com o modo de produção, os grandes períodos da história humana. Assim, temos o feudalismo e a servidão ou o capitalismo e o trabalho assalariado.

Esses padrões não são arbitrários. O capitalismo, por exemplo, pressupõe um certo desenvolvimento do comércio, da técnica, um trabalhador livre como um pássaro, um capital acumulado na usura, no comércio ou na manufatura, que fazem com que ele tenha nascido a partir de certo ponto da história e não de outro anterior. Mas não há aí um determinismo histórico, no sentido de que a história sofre avanços, mas, também, recuos e crises, e não se pode manter metodologicamente uma postura teoricista, nem historicista, quando se trata de investigá-la. Além disso, esses padrões podem dar origem a outros no futuro. Para Marx, o grande desenvolvimento do trabalho coletivo nas grandes unidades produtivas que são as fábricas e o grande avanço nas forças produtivas sob o capital permite que se desenhe no horizonte das sociedades modernas o modo de produção socialista. Não, porém, de forma inelutável. Essa passagem, que é para Marx passagem do homem de sua alienação para sua liberdade e o desenvolvimento de todo seu potencial individual ancorado na sociedade socialista, pode não se dar. Daí a importância da luta política de que Marx sempre participou, sofrendo suas desventuras e suas alegrias.

Ao mesmo tempo, não há em Marx nenhuma indicação de que a passagem de um a outro padrão civilizacional represente um avanço ético ou ideológico, como se pudéssemos comparar a Antiguidade com a Idade Moderna e decidir sobre a superioridade de uma delas. O único sentido em que se pode falar em avanço é no do desenvolvimento das forças produtivas, incrivelmente maiores sob o capital e o trabalho assalariado. É, aliás, esse avanço que permite a esperança de libertação do homem de suas necessidades e a conquista de sua liberdade sob um modo de produção que possa liberar ainda mais intensamente a capacidade produtiva social do trabalho.

As deformações que o materialismo histórico sofreu ao longo do tempo criaram, porém, a convicção de que haveria uma sequência necessária de modos de produção, inscrevendo-se o socialismo no próximo horizonte. Além disso, essa sequência representaria sempre um avanço em termos humanos ou morais, garantindo por tabela a humanidade e a moralidade das sociedades socialistas. Esse evolucionismo não é alheio a outras escolas filosóficas ou teóricas. A sociedade vitoriana de Marx e Darwin julgava-se superior a todas as suas antecessoras, assim como para Hegel o momento culminante da história era o capitalismo liberal. O evolucionismo ganhou importância com Spencer, Dilthey e outros sábios, e está inscrito na nossa bandeira republicana: Ordem e Progresso.

Da mesma forma, olhar a história natural de uma ótica evolucionista, no sentido aqui empregado, implica em assumir uma superioridade da espécie humana sobre as demais, justifica o uso utilitário e cruel da vida animal e do ambiente e, no passado, serviu para supostamente validar uma ciência de medida do homem que embasaria comparações entre grupos humanos, decidindo a superioridade do homem branco de origem européia sobre os demais e a validade de sua ação no mundo dos que lhe são inferiores. Felizmente, o desenvolvimento da ecologia e da genética destruiu essas fantasias perversas e abriu parâmetros científicos decidindo a igualdade da espécie humana e a solidariedade das espécies na Terra. O desenvolvimento das ciências da natureza e do homem deu, pois, razão à recusa de Marx e Darwin em assumir uma postura evolucionista em ambas, destruiu arraigados preconceitos de “raça”, classe e gênero que apenas subsistem no domínio da ignorância ou da conveniência.

Finalmente, acredito ter apontado como Karl Marx e Charles Darwin, partindo de domínios do saber e de posições sociais e políticas diversas, ao usarem com honestidade sua postura materialista e científica, puderam abrir os olhos da sua geração e das gerações futuras sobre a possibilidade e necessidade de novas formas de sociabilidade humana e de relacionamento com o vasto mundo que nos envolve e nos originou.

Igor Zanoni Constant Carneiro Leão é professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná. E-mail: igor@ufpr.br.

*Artigo originalmente publicado na revista ComCiência No. 104