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28 setembro 2009

AUTOMÓVEIS: EXCESSO E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Por Cristina Caldas

Recordes seguidos de recordes quando o assunto é automóvel. “A frota mundial de veículos atinge a marca de 1 bilhão de unidades”, “Brasília chega a 1 milhão de veículos e vê ‘nó' em trânsito” foram algumas das manchetes que nos acompanharam recentemente.

São Paulo registrou recorde histórico de congestionamento no dia 9 de maio deste ano, atribuído ao excesso de veículos e a acidentes, de acordo com a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). Nunca a cidade esteve tão engarrafada. Ao mesmo tempo, nunca foram vendidos tantos carros no Brasil. A produção de vendas em abril é também recorde histórico: pela primeira vez foi ultrapassada a marca de 300 mil veículos, segundo o relatório mais recente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Superados também foram os números de veículos novos licenciados: 261,2 mil unidades em abril, mais um recorde histórico. No acumulado, as vendas têm expansão de 35% (909,1 mil em 2008 versus 672,4 mil em 2007). De acordo com Jackson Schneider, presidente da Anfavea, as razões da expansão do mercado interno podem ser assim resumidas, conceitualmente: estabilidade macroeconômica, inflação sob controle, aumento do emprego e da renda, aumento da oferta de crédito para financiamento de veículos, expansão dos prazos de pagamento dos financiamentos, baixo nível de inadimplência. “Todo esse quadro – explica Schneider – cria um clima de confiança e anima o mercado. Vale dizer ainda que a ampla gama de oferta da indústria automobilística brasileira eleva a competição. Em resumo, a estabilidade e a expansão da economia, com fundamentos sólidos, chegam dessa forma ao consumidor”.

As conseqüências do consumo: poluição

Esse mercado em crescimento exponencial apresenta conseqüências que podem ser instantaneamente sentidas, principalmente nas grandes metrópoles. Economistas, engenheiros de transporte, urbanistas, antropólogos, sociólogos, engenheiros ambientais, arquitetos, profissionais de saúde são alguns dos especialistas envolvidos em estudos sobre os impactos na sociedade desse aumento sem precedentes na frota de veículos. E procuram trazer soluções. Indiscutivelmente, problemas como os altos índices de congestionamentos e acidentes de trânsito, por exemplo, não podem ser atribuídos exclusivamente aos “veículos vilões” - um transporte público ineficiente compõe o quadro.

No entanto, a poluição do ar e sonora decorrente da enorme frota é vivenciada diariamente pelos moradores das grandes cidades. Segundo o relatório de qualidade do ar no estado de São Paulo, publicado no ano passado pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), os veículos são responsáveis por 97% das emissões de monóxido de carbono, 97% de hidrocarbonetos, 96% de óxidos de nitrogênio, 40% de material particulado e 35% de dióxido de enxofre.

O problema de poluição de automóveis não é novo e, em função da necessidade de um programa nacional que controlasse as emissões atmosféricas de origem veicular, foi instituído, em 1986, o Proconve - Programa de Controle de Poluição do Ar por Veículos Auto-motores. Por meio da fixação dos limites máximos de emissão de poluentes e estabelecendo exigências tecnológicas para veículos, cuja comprovação é feita através de ensaios padronizados, o programa foi responsável por uma significativa redução nos níveis de emissão em veículos automotores. Estão em vigor atualmente os limites e instruções estabelecidos na Resolução Conama 315/02.

Os indesejáveis poluentes advêm não apenas do escapamento dos veículos, mas também de outras fontes de emissão de material particulado, como o desgaste dos componentes dos freios e dos pneus, além do atrito à superfície da estrada, como explica o guia de qualidade do ar da Organização Mundial de Saúde. O guia destaca que os veículos emitem partículas para o ar também por meio da suspensão de partículas presentes nas superfícies das ruas e estradas, dados difíceis de contabilizar e que não são normalmente levados em consideração nos inventários de emissão nos quais as legislações se baseiam. O material particulado, que envolve fumaça, partículas inaláveis e partículas totais em suspensão, possui grande importância em termos de saúde, pois penetram profundamente no aparelho respiratório, podendo desencadear ou agravar diversas doenças respiratórias. Além disso, o material particulado de pequeno diâmetro foi fortemente associado com o desenvolvimento de problemas cardiovasculares.

Inúmeros grupos de pesquisa estudam o impacto da poluição na saúde de sua população. Maria Regina Cardoso, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), coordena o projeto Chiado, procurando entender em que medida a poluição atmosférica gerada pelo tráfego de veículos influencia o desenvolvimento de problemas respiratórios na infância. Em um estudo realizado entre 1986 e 1998, Cardoso observou que os esforços dos programas de controle de poluição foram em parte neutralizados pelo aumento no número de carros. Além disso, a pesquisadora ressaltou que o controle de um único poluente não foi suficiente para proteger a saúde das crianças. Em um local onde tanto material particulado quanto dióxido de enxofre foram reduzidos, observou-se uma diminuição na prevalência de sintomas respiratórios. O mesmo grupo publicou um trabalho mostrando a perda da audição em trabalhadores expostos ao barulho do tráfego na cidade de São Paulo.

Com o intuito de quantificar o impacto da poluição do ar nos níveis de morbidade e mortalidade em sete cidades brasileiras, Nelson Gouveia e Izabel Marcilio, da Faculdade de Medicina da USP, estudaram o número de internações e mortes atribuídas à poluição. Observaram que nos grupos de idosos e de crianças com menos de 5 anos, 4,9% e 5,5% das mortes anuais por problemas respiratórios foram atribuídas à poluição, respectivamente.

Em outro estudo recente, Alfésio Luís Ferreira Braga, Paulo Saldiva e colaboradores, do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da Faculdade de Medicina da USP associaram uma maior procura ao pronto-socorro de arritmias cardíacas do Instituto do Coração, em São Paulo, aos aumentos diários nos níveis dos poluentes liberados por carros. Os pesquisadores destacaram que esse efeito foi observado mesmo quando as concentrações dos poluentes estavam abaixo do padrão de qualidade do ar. Somam-se a esses, os resultados publicados em maio pela Revista de Saúde Pública, liderado por Marisa Moura, onde foram encontradas associações entre indicadores de poluição atmosférica e o número de atendimentos pediátricos de emergência por motivos respiratórios em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro.

Investimento em P&D na indústria automobilística

E como a gigante indústria automobilística responde aos problemas ambientais e de saúde desencadeados pelo aumento da frota de veículos? Para Ruy Quadros e Rubia Quintão, do Instituto de Geociências, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), os investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) das montadoras e fabricantes de peças de automóveis brasileiras são direcionados principalmente para três alvos: eficiência energética, barateamento do produto e soluções para combustíveis alternativos. Especificamente sobre as emissões de poluentes, “a legislação de emissões é que orienta a P&D no setor”, afirma Quadros.

Os gastos em P&D pela indústria automobilística aumentaram 250%, passando de R$549 milhões em 2000 para R$1,9 bilhões em 2005, segundo os pesquisadores, o que significa ¼ do valor total de P&D investido na indústria manufatureira. Mas, salienta Quintão, “no Brasil existe muito mais D do que P”, ou seja, o investimento está muito mais voltado para o desenvolvimento de produtos e processos do que para pesquisa tecnológica. Não existem dados sobre o perfil de investimento em P&D da indústria automobilística, segundo os pesquisadores. “Esses dados precisam ainda ser gerados”, explica Quadros.

O motor “flex-fuel” desenvolvido pela filial brasileira da Bosch serve agora de modelo para outras subsidiárias ao redor do mundo. Partida a frio, start-stop (desligamento automático do motor quando o carro pára), biodiesel (leva à diminuição na emissão de partículas e de CO 2 ) e downsizing são algumas das apostas da indústria automobilística para diminuir a emissão de poluentes, como destacado por reportagem da revista Inovação Uniemp.

Por um consumo sustentável

Propagandas de automóveis são abundantes nos mais diversos veículos de comunicação. A revista Veja do dia 28 de maio deste ano, por exemplo, publicou vários anúncios onde figuravam chamadas como “Alcançamos a perfeição. Foi só combinar potência e estilo”, “Veja o mundo de cima”, “Sofisticação elevada à máxima potência”.

Para Renato da Silva Queiroz, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), “Os anúncios publicitários recriam e enfatizam emoções, desejos, paisagens, valores, imagens e sentimentos e os associam aos automóveis, procurando alcançar o ego dos consumidores (...)”. Em seu artigo “Os automóveis e seus donos ”, Queiroz defende que as propagandas terminam por envolver o carro em representações de liberdade, riqueza, poder, velocidade, sucesso, status, sofisticação, conquista, entre outros.

E é exatamente nessas representações que a União Européia (UE) pretende interferir. De acordo com o jornal Spiegel online, a UE irá restringir e regulamentar a publicidade de carros. Não serão aceitas referências à rapidez ou ao “prazer de dirigir” veiculadas nas propagandas de automóveis. A principal medida é obrigar que as propagandas apresentem dados sobre consumo e emissão de CO 2, o que já vem causando discussões entre legisladores, publicitários e representantes de montadoras. Com isso, os legisladores da UE esperam que as pessoas comecem a se desinteressar pelos carros grandes e optem por modelos mais econômicos.

Esse movimento de migração para carros de pequeno porte parece ter começado nos Estados Unidos. Segundo o jornal The New York Times, as vendas dos S.U.V. (sigla inglês para veículo esporte utilitário), em abril deste ano, foram menores do que no mesmo período do ano passado. A reportagem destaca que, por exemplo, as vendas do Chevrolet Malibu, de médio porte, aumentaram 40%, em contraste com a queda de 73% nas vendas da longa e popular S.U.V. Chevrolet TrailBlazer. No entanto, não é possível dizer ainda se essa é uma mudança permanente no perfil do consumidor ou se é apenas uma conseqüência temporária das altas nos preços da gasolina e crise econômica.

Mas será que uma mudança nas propagandas refletirá em alterações nos hábitos dos consumidores? Nelsom Marangoni, CEO do Ibope Inteligência, acha que não. "O automóvel tem apelos ainda muito significativos para a população brasileira, tem sinalizadores de status, de prestígio, de poder, além evidentemente do aspecto funcional da locomoção”. Marangoni acredita ser muito difícil que qualquer informação sobre emissão de CO 2 vá interferir na escolha do modelo, principalmente tratando-se de uma categoria de produto que demanda muito investimento. “O preço, qualidade e marca são critérios muito importantes, as pessoas não são ligadas à questão ambiental”, completa.

Em pesquisa realizada no ano passado, liderada por Marangoni, o Ibope entrevistou mil pessoas acima de 16 anos, em todo o Brasil, para avaliar a percepção das classes A, B e C sobre assuntos ligados ao tema sustentabilidade. Foram entrevistados também 537 executivos de 381 grandes empresas nacionais. Os pesquisadores observaram um distanciamento entre a crença e a prática de ações de preservação ambiental. Por exemplo, 85% dos entrevistados concordaram que pilhas e baterias são prejudiciais ao meio ambiente, no entanto 32% deles declaram jogar esses resíduos em lixo comum, ao invés de separá-los e descartá-los de forma ecologicamente correta. Os resultados apontaram também que apenas 25% dos empresários afirmaram que suas empresas investirão em projetos de preservação ambiental.

Para Marangoni, existe a percepção da importância, mas as pessoas ainda não incorporaram e nem tampouco definiram um valor interno à questão ambiental. Quando o consumidor pensa e sente o congestionamento e poluição, ele tende a pensar muito mais na responsabilidade da prefeitura e do estado, não relaciona com seu próprio automóvel. As campanhas publicitárias de automóveis que porventura se interessassem em vender veículos que emitem menos poluentes devem mostrar que as pessoas terão benefícios imediatos e não apenas no futuro.

O meio empresarial também precisa desenvolver esse valor, pois as ações nas questões sociais e ambientais ainda são muito pontuais, ou seja, com verbas destinadas para alguns programas e ações, com objetivo de marketing, de agregar valor à imagem da empresa. “A empresa só vai fazer algo para proteção do meio ambiente ou para evitar problemas sociais na medida em que ela perceber que o negócio dela está em risco”, acredita Marangoni. ”A maior parte dos empresários que entrevistamos fazem ações pontuais e não estratégicas. Por isso o investimento ainda é pequeno”.

Artigo originalmente publicado na revista ComCiência No. 99

1 Comments:

Blogger lindomarpadilha.blogspot said...

Caro Evandro,

Neste momento em que volta, ainda que para permanecer na imprensa, a ideia de exploração de petróleo e gás natural no Acre, se torma inda mais pertinente esse debate. A relação brasileira com os automóveis chega a causar espanto. O governo reconhece o problema mas continua insentivando a produção e, naturalmente, o comercio. Até onde vamos, não sei.

Bom trabalho

Lindomar Padilha

29/09/2009, 12:46  

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