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20 setembro 2009

"NO BRASIL, ACUMULAÇÃO DE CAPITAL ESTÁ DIRETAMENTE LIGADA À TERRA"

Entrevista com o professor Carlos Walter Porto-Gonçalves

Por Helciane Angélica e Renata Albuquerque, para a revista Fórum

“Quando a terra esta concentrada, o poder está concentrado. O Brasil não é um país pobre, é injusto, conseqüência dessa estrutura de poder”. De acordo com o Professor Doutor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Carlos Walter Porto-Gonçalves, a realização da Reforma Agrária é fundamental para garantia da democracia no Brasil.

Para o Professor, no Brasil, a luta pela Reforma Agrária assume características essencialmente anti-capitalistas, diferente de muitos países que já realizaram a Reforma Agrária e destaca que a estrutura concentrada do poder e de terra no país tem suas origens na própria formação do Estado Brasileiro. “O Brasil conforma uma sociedade onde a estrutura de poder das oligarquias está extremamente ligada à estrutura de poder do estado. E, desde o início, a estrutura montada para a acumulação do capital está diretamente ligada a terra.”

Sobre o debate da Reforma Agrária na atualidade, o Professor Carlos Walter destaca a questão da territorialidade como um importante elemento para os movimentos sociais de luta pela terra. “Quando falamos que queremos ser reconhecidos pela nossa territorialidade, não queremos só a terra, queremos um sentido determinado de estar na terra, queremos o respeito ao nosso modo específico de estar na terra”.

Em entrevista à Comissão Pastoral da Terra (CPT NE2), o Professor fala sobre a formação do Estado brasileiro, a importância do debate da territorialidade na luta pela terra, dos desafios e de novas perspectivas para o avanço da luta pela Reforma Agrária no país.

Confira, a seguir, a entrevista:

Muitos países já realizaram a Reforma Agrária, seja pela Via Cepalina, seja pela revolucionária ou capitalista. Historicamente, no Brasil, a Reforma Agrária não aconteceu por nenhuma das vias. Quais são os elementos que impedem o avanço da pauta e a realização da Reforma Agrária no país?

A formação do Brasil é caracterizada por uma estrutura muito própria. A concentração fundiária é associada com a própria forma como o estado se organizou no país. O estado Português, então dono do território brasileiro, concedia Sesmarias aos filhos do Rei. Desde o início temos um processo cruel de formação da sociedade brasileira, e que vai ter a sua expressão na própria formação do território brasileiro, que é essa mancomunação entre as oligarquias e as próprias estruturas do poder. O estado português fazia a concessão da terra e investia nos sesmeiros, na prerrogativa de que ele [o sesmeiro], afirmando produtivamente sua sesmaria, afirmava também o controle social da metrópole portuguesa sobre o território. Assim, havia um objetivo político – o controle territorial – comandando a concessão das sesmarias. O sucesso econômico da sesmaria cumpria, assim, um objetivo político de controle territorial. O sesmeiro latifundiário era, desde o início um herói da conquista e, para isso, matar e desmatar foram seus instrumentos de controle territorial contra os índios e depois contra todos que não fossem fidalgos (palavra que deriva de “filhos d´alguém”). De modo que gerou essa oligarquia truculenta, violenta, que até hoje vem comandando o nosso país. O Brasil conforma uma sociedade onde a estrutura de poder das oligarquias está extremamente ligada à estrutura de poder do estado. E, desde o início, a estrutura montada para a acumulação do capital está diretamente ligada à terra. À época colonial, o Brasil já exportava a principal manufatura que circulava no mercado mundial: o açúcar. Ao contrário do que nos ensinaram nas escolas, o Brasil (assim como Cuba e Haiti) não exportava matérias primas e, sim, o açúcar, que era um produto manufaturado nos engenhos. Nossas oligarquias sempre foram modernas. A ideologia da modernização no Brasil “bem vale uma missa”, parodio Marx. Por tudo isso, a luta pela Reforma Agrária no Brasil acaba sendo uma luta anti-capitalista, uma luta que confronta o capital. Por isso tanta dificuldade de fazer a Reforma Agrária no Brasil.

É possível verificar essa violência histórica analisando os dados que a CPT colige todo ano. Por exemplo, no primeiro ano do governo Lula, em 2003, os índices de violência no campo aumentaram enormemente no Brasil. Os índices são comparáveis ao período da constituinte no final dos anos oitenta, quando a União Democrática Ruralista (UDR) atingiu seu auge. Naquele ano foram 73 assassinatos no país. Só no Pará foram 33. As elites partiram para a ofensiva, para a violência – seja pela milícia privada, seja pelo poder judiciário - temendo que Lula fizesse a Reforma Agrária. A violência naquele ano foi fruto da reação das oligarquias diante de um contexto que ela achava que seria favorável à Reforma Agrária. No período de debate da Constituinte, as elites partiram para violência no país inteiro porque achavam que se mexeria na estrutura da terra. Ou seja, nos anos em que a sociedade brasileira ousou ser mais democrática, foram os anos de maior violência no campo. Como Lula aderiu ao projeto agrário-financeiro das Oligarquias, a violência diminuiu nos anos seguintes. Ou seja, quem provoca a violência no Brasil não são os camponeses, não são os trabalhadores, é sempre uma violência protagonizada pelas oligarquias. Hoje, em pleno 2009, vivenciamos a mesma truculência de 500 anos atrás. Essa estrutura de poder profundamente desigual tem como base a concentração da propriedade da terra.

Como você avalia hoje a atuação do governo diante da Reforma Agrária?

Conversando com as pessoas que compõem o próprio Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Incra, elas dizem abertamente que o governo abandonou completamente a Reforma Agrária, e que está vivendo de apagar incêndio. Não precisa nem ser uma análise de alguém crítico ao governo. No Brasil, onde há mais demanda de terras é no Sudeste e Nordeste, entretanto, a maior parte dos assentamentos está na Amazônia. Há um descolamento entre a área onde há demanda de terra e onde o governo distribui a terra. Não há uma política de Reforma Agrária, no máximo, há uma política de colonização, o que acaba sendo o contrário da Reforma Agrária. E o Lula recebeu uma votação significativa, inclusive, pela sua trajetória política em defesa da Reforma Agrária. O Lula, até se eleger, jamais fez qualquer elogio ao agronegócio, ele jamais poderá alegar que já tinha simpatia pelo agronegócio antes de ser presidente. Ele acaba aderindo ao projeto das elites, das oligarquias, à lógica do agronegócio, e negando tudo o que ele disse ao longo de sua vida, ao contrário de FHC que fez no governo o que escreveu em seus livros (afinal, uma divergência importante de FHC com relação ao seu Mestre Florestan Fernandes é que em vez de romper com a dependência por meio da revolução democrático-socialista, como propunha Florestan, ele achava que deveria se aderir ao imperialismo como sócio subordinado. E foi isso que ele fez no seu governo).

Muitos dizem que a Reforma Agrária já não é mais necessária, que deveria ser feita nos anos 50, 60 quando o país estava se desenvolvendo. Muitos pensam que a Reforma Agrária está relacionada unicamente a questão econômica. A Reforma Agrária tem que ser vista, não como uma questão econômica, e sim como uma questão de democracia. Significa dizer que quando a terra está concentrada, o poder está concentrado. É claro que em um país que faz a distribuição de terras, a potencialidade e possibilidade da riqueza econômica também estará democratizada, mais isso seria uma conseqüência. O objetivo maior da Reforma Agrária é mexer na estrutura concentrada do poder. O Brasil não é um país pobre, é injusto, conseqüência dessa estrutura de poder. No Brasil, a Wolksvagem é proprietária de terra, assim como o Bradesco, o Itaú, o Daniel Dantas etc. E o que acontece nesses casos é que a terra fica improdutiva e serve apenas como moeda de troca pra receber financiamento (reserva de valor). Não sabemos se a Sadia ou a Perdigão são grupos agrários. Declarações do próprio presidente da Sadia afirmam que 80% dos lucros da empresas vêm do mercado financeiro, mas elas recebem financiamento do BNDES destinado à agricultura e com respaldo da sociedade. Para elas, o agro é só mais um negócio. É claro que se informarmos a sociedade brasileira que a Sadia, ou a Aracruz ou a Votorantin pedem dinheiro ao BNDES para simplesmente ganhar mais dinheiro no mercado financeiro elas não teriam o apoio que apregoam que o agronegócio tem. Mas elas dizem que é para produzir alimentos e aí saem abençoadas. Como se vê o agro é só um negócio!

Entre as experiências de Reforma Agrária, quais vêm se destacando e que poderiam ser um referencial pro Brasil?

Temos várias experiências de Reforma Agrária em curso no mundo. Cuba é um exemplo. O país hoje passa por uma Reforma Agrária dentro da Reforma Agrária. Lá, mesmo com realização da Reforma Agrária depois da Revolução, o monocultivo da cana continuou forte, pois a princípio não foi pensado um modelo de agricultura camponesa, de diversificação produtiva, de soberania alimentar e sustentabilidade. Agora, depois da queda da União Soviética, os cubanos estão vendo o valor da soberania alimentar e de encontrar um modelo agrícola e agrário em outras bases sociais e tecnológicas. Esse processo está sendo muito interessante. Também tem experiências importantes em curso na Bolívia, com um componente interessante que é o reconhecimento dos territórios indígenas. Na Bolívia, 62% da população falam línguas indígenas - Quéchua, o Aimara e o Guarani. Estamos falando da maioria da população. Nesse país, em 1952, houve uma Reforma Agrária em que a esquerda dividiu os territórios comunitários indígenas em parcelas camponesas, porque achava que os índios representavam o atraso. Esse processo atual com Evo Morales à frente é uma Reforma Agrária que reconhece a territorialidade indígena e não tenta fatiá-la em propriedades camponesas. Essas questões obrigam a esquerda a repensar sua própria forma de pensar o mundo, muitas vezes marcadas por uma visão também colonial.

Mas uma coisa é importante ser dita: não existem modelos de Reforma Agrária passíveis de ser transferido, copiado para qualquer outro país. Os países têm suas especificidades. O Brasil, por exemplo, tem uma diversidade ecossistêmica muito grande. Não poderíamos pensar em um modelo único de Reforma Agrária sequer para todo o nosso país. Além do Brasil ter uma enorme diversidade biológica, temos também uma enorme diversidade de povos e de formações camponesas muito singulares (fundo de pasto, faxinais, o complexo seringueiro, os retireiros do Araguaia, as quebradeiras de coco de babaçu, etc...). No Brasil se fala mais de 180 línguas indígenas, isso implica uma diversidade cultural enorme, isso implica populações que embora sejam pequenas, ocupam territórios que são relevantes. Essas populações são patrimônios culturais da humanidade, tem o direito a viver da maneira que querem viver e de decidir o que de nossa cultura querem e não querem. A Reforma Agrária está sempre associada a um projeto nacional que tanto pode ser um projeto que quer negar tudo isso em nome do progresso (como é o caso do agronegócio), como pode (e deve) ser um projeto que toma em conta toda essa diversidade social, cultural, política que o país possui. Chico Mendes, por exemplo, deu visibilidade a luta dos seringueiros e tinha essa compreensão. Ele propôs a Reserva Extrativista, que segundo ele era a reforma agrária tal como vista pelos seringueiros, que tem por trás e no fundo um projeto de nação, pois ele entendeu que para defender a Amazônia, tinha que preservar os seringueiros e os demais povos. Não há defesa da floresta sem os povos da floresta, como ele dizia. Aliás, Chico Mendes propôs no Congresso dos Trabalhadores Rurais realizado em Brasília, em 1984, que a reforma agrária deveria respeitar os contextos sociais e culturais, e eu diria, também geográficos, específicos. E essa tese foi aprovada.

Como você vê o cenário, o mapa atual da violência no campo no Brasil hoje?

Temos nos últimos dois anos um declínio nos conflitos no campo no Brasil. As razões podem ser múltiplas. Uma delas é essa questão dos programas sociais e seu poder apaziguador de conflitos, como é o caso do Bolsa Família, Bolsa Escola etc. Embora não seja só isso, isso é um componente importante que interfere no poder de mobilização da sociedade para lutar. De outro lado, as oligarquias estão satisfeitas com Lula. Elas baixaram o ímpeto de violência que tinham no início do governo, já que Lula aderiu ao projeto do agronegócio. O desenho novo que está aparecendo é o aumento significativo das comunidades tradicionais, entre os envolvidos nos conflitos no campo. Em 2007, 43% dos envolvidos nos conflitos eram comunidades tradicionais e, em 2008, esse número proporção passou a 53%. Isso significa que o capital está avançando e entrando em áreas que são tradicionalmente ocupadas por populações como essas.

Temos que ficar atentos que essas áreas são riquíssimas em biodiversidade. Então quando afirmamos que há o aumento do envolvimento das comunidades tradicionais atingidas pelo ímpeto da expropriação de terra pelo capital e envolvidas nos conflitos de terra, estamos falando também do avanço contra a riqueza de biodiversidade e diversidade cultural do país. Isso indica um elemento muito grave: a expansão do capital para novas áreas se dá muitas vezes por expulsão dessas populações. Por exemplo, a cana-de-açúcar vem se expandindo e entrando nas áreas onde antes havia o gado. Nesse caso, não há troca de um cultivo pelo outro. Nesse caso há troca de uma área de pastagem por uma de cana. Resta uma pergunta, pra onde vai o gado? O gado se expande... Vai pro interior da Bahia, pro Sertão do São Francisco, pra Amazônia. O gado aumenta a tensão nas comunidades tradicionais.

Qual a importância política da territorialidade no projeto de Reforma Agrária defendido pelos movimentos sociais?

A partir dos anos 70, passamos a ter um componente novo no debate político da questão agrária no mundo, onde o movimento indígena começa a colocar explicitamente no debate algo que historicamente sempre o caracterizou, a questão territorial. O debate territorial muda a qualidade do debate da Reforma Agrária, porque significa introduzir um componente de novo tipo na discussão, o da cultura. Quando falamos que queremos ser reconhecidos pela nossa territorialidade, não queremos só a terra, queremos um sentido determinado de estar na terra, queremos o respeito ao nosso modo específico de estar na terra. Estamos reivindicando a territorialidade distinta, exigindo o reconhecimento das diferenças. Isso acaba denunciando o caráter colonial com sua proposta de progresso levando à homogeneização inclusive da leitura do país. O país não era e não é homogêneo. As populações começam a reivindicar as reservas extrativistas, os fundos de pastos, não é mais uma questão só indígena e quilombola. O Brasil é repleto de diferentes “campesinidades”, que se criam a partir das condições diversas do ambiente, onde as comunidades vão criativamente se amoldando ao que os ambientes oferecem. Essas comunidades não são determinadas pelo ambiente, mas elas sempre partem do potencial produtivo da natureza. É uma cultura com a natureza e não contra a natureza. Isso é o novo bebendo na melhor de nossa tradição cultural. Nem tudo que é velho é bom, mas nem tudo que é novo também o é. É preciso abandonar qualquer fundamentalismo seja da tradição, seja do novo.

* Com informações do MST.

(Envolverde/Revista Fórum)