Google
Na Web No BLOG AMBIENTE ACREANO

16 abril 2010

A MÍDIA ACREANA E A QUESTÃO INDÍGENA (1977-1981)

...Quanto às populações indígenas, os editoriais do jornal 'O Rio Branco' quase não as mencionam, e as vezes que o fizeram referência, reproduziram a idéia dominante de que o índio é um “mal inevitável”, mas superável e de que o destino do índio é a “civilização” ou o extermínio...Para 'Varadouro', entretanto, a questão ambiental sempre esteve relacionada à luta pela terra, pois ao assumir sua linha editorial pela defesa do índio e do seringueiro, o jornal privilegiava também a defesa da floresta amazônica

A Amazônia e a questão indígena: duelos no discurso da mídia escrita acreana (1977-1981).

Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio¹
Olinda Batista Assmar²

Introdução

A imprensa é valioso material de pesquisa. Ela participa, produz e veicula representações da realidade, registra, comenta e acompanha o percurso dos homens através da história, sendo alvo dos interesses dos grupos de poder, que a adulam, vigiam e/ou controlam. Por seu poder de irradiação, a imprensa, durante a Ditadura Militar, sofreu várias investidas dos líderes militares do regime, tanto para endossar seu projeto de homogeneização de idéias, quanto para silenciar as vozes dissonantes que resistiam ao processo de cerceamento de liberdades imposto pelo regime.

Mais de 40 anos se passaram desde que surgiu no cenário nacional o regime ditatorial, entretanto, a análise das relações entre imprensa e poder neste período ainda constitui uma lacuna nos estudos sobre a sociedade acreana. Buscamos, portanto, contribuir para o aprofundamento dos estudos referentes às interfaces do regime ditatorial instaurado no Acre, investigando suas especificidades no contexto da história nacional.

A escolha do editorial como corpus constitutivo da pesquisa deve-se ao fato de esta tipologia jornalística expressar a linha de conduta do jornal, atuando como forma de reescrita da história, sendo permeados por uma série de imagens, de símbolos, que podem ser percebidos pelas suas próprias estratégias persuasivas utilizadas pelos donos do poder para dominar o imaginário social.

O fato de representar interesses antagônicos torna o editorial um discurso jornalístico de dupla competência, que mascara e desmascara, defendendo os interesses do jornal, ao mesmo tempo em que se arvora como porta-voz dos anseios dos grupos sociais. A opinião do editor atua como representação do grupo mantenedor da empresa jornal, trazendo o julgamento do grupo de elite do jornal sobre os problemas que o editorial aborda.

Investigar o imaginário sobre a Amazônia e a questão indígena, construído a partir do discurso da mídia acreana durante a Ditadura Militar, constitui-se, portanto, no objetivo traçado através do presente estudo. Para tanto, partiu-se da análise comparativa de editoriais dos jornais O Rio Branco e Varadouro, os quais tiveram circulação concomitante no período de 1977 a 1981. A escolha de se trabalhar com estes dois periódicos se deu pela distinção entre suas linhas editoriais: em O Rio Branco predomina o discurso de defesa do poder oficial e Varadouro segue uma linha alternativa. O foco buscado nesse estudo, pois, foi identificar que imagens esses dois jornais constroem sobre a Amazônia e a questão indígena e como a imprensa busca, através dessas imagens, estabelecer uma ordem, uma organização nos elementos que compõem o real na sociedade riobranquense do período em questão.

Durante as décadas de 1970 e 1980, as políticas públicas definidas pelos militares para a Amazônia estavam pautadas na incorporação dessa imensa faixa de terras ao conjunto da economia nacional, habilitando-a à exploração do capital forâneo. Entretanto, as estratégias para a “integração da Amazônia” foram fadadas ao insucesso, tendo em vista que apenas a ligação espacial não é suficiente para inserir a região na macro-economia da acumulação capitalista. A Amazônia e as diversas tribos indígenas que a habitavam no período da Ditadura Militar foram alvo de um intenso processo de legitimação do discurso capitalista. O poder ditatorial não apenas objetivava integrar o Brasil espacialmente, mas também ideologicamente. Para tanto, lançaram mão de um arquitetado sistema de dominação ideológica que teve nos meios de comunicação de massa grandes aliados para sua propagação.

Material e Métodos

Essa investigação foi realizada em duas etapas: a primeira refere-se à pesquisa bibliográfica, baseando-se no pensamento Michel Foucault, acerca do discurso como espaço atravessado pelas relações de poder. Para a análise dos editoriais foi estabelecido o diálogo com o pensamento de Stuart Hall e suas discussões sobre a identidade. A discussão sobre o imaginário apóia-se no pensamento de Bronislaw Backzo, discutindo de maneira mais específica o imaginário amazônico a partir das concepções de João de Jesus Paes Loureiro.

A segunda etapa do estudo corresponde à pesquisa de campo, realizada através da visita aos acervos do C.D.I.H. da UFAC e do Museu da Borracha. O corpus da pesquisa compõe-se de editoriais pertencentes aos jornais mencionados, os quais foram analisados tendo como foco as imagens construídas pela imprensa sobre a Amazônia e a questão indígena. Para a análise dos editoriais utilizou-se o método de abordagem hipotético-dedutivo, associado ao método histórico, aliado às ciências afins. Para a conjugação e precisão de dados sobre o imaginário riobranquense foi utilizado o método de procedimento analítico-comparativo, contrapondo as posturas ideológicas dos editoriais às leituras teóricas.

A análise dos editoriais foi realizada segundo o método de abordagem hipotético-dedutivo, aliado às ciências afins para a conjugação e precisão de dados sobre o imaginário riobranquense. Como método de procedimento, definimos o método histórico, pois partimos do princípio de que as atuais formas de vida social, as instituições e os costumes têm origem no passado, sendo relevante pesquisar suas raízes, para compreender sua natureza e função (LAKATOS; MARCONI, 1988).

Como fonte de pesquisa complementar utilizou-se o acervo contido no banco de dados do Projeto “Amazônia: os vários olhares”, Arquivo Geral do Estado, C.D.I.H. da UFAC, Museu da Borracha e Biblioteca Pública Estadual, além de livros que contêm, ainda que parcialmente, informações relevantes, bem como obras de referência histórica sobre a Amazônia e Acre, escrita por autores como: Tocantins (2001), Oliveira (1982), e Becker (1998).

No que concerne à seleção e organização do material para análise, o corpus deste trabalho foi estudado à luz dos postulados teóricos da Análise do Discurso, tendo como base o pensamento de Michel Foucault acerca do discurso e das relações de poder. A análise foi direcionada segundo uma linha metodológica qualitativa de avaliação, abordando a constitutividade dos processos e estratégias discursivas circunscritos na concepção teórica da Análise do Discurso.

O critério utilizado para a escolha dos editoriais analisados foi a amostragem, através da qual foi realizado o levantamento acerca da representação, postura, investigação e a classificação dos editoriais, tendo como base os fundamentos teóricos da Análise do Discurso.

Após a análise das temáticas mais recorrentes, procedeu-se a uma análise contrastiva entre os textos dos dois jornais pesquisados que enfocavam os mesmos assuntos, buscando observar como se posicionavam frente aos fatos que noticiavam e como as relações de poder interferiam na construção do discurso. O contraste de editoriais de Varadouro e O Rio Branco possibilitou perceber quais as estratégias discursivas utilizadas na produção dos editoriais. Além disso, convém lembrar que o foco dos textos escolhidos para análise foi selecionar aqueles editoriais que enfatizaram as experiências dos sujeitos sociais que atuaram no processo histórico pelo qual passou o Acre no contexto da passagem da década de 1970 para a década de 1980.

A partir da análise dos editoriais, buscou-se desvelar como as imagens da Amazônia e dos índios foram construídas nos editoriais dos jornais pesquisados e como esses textos articulavam as relações de poder durante a Ditadura Militar e qual influência desses textos na sociedade de hoje, tendo em vista que as instituições alcançaram sua forma atual através de alterações de suas partes constitutivas, ao longo do tempo, influenciadas pelo contexto cultural particular de cada época.

Resultados e Discussão

O imaginário sobre a Amazônia e a questão indígena, construído a partir do discurso da mídia acreana durante a Ditadura Militar, é regido pela idéia de domesticação da natureza. A construção do imaginário sobre a Amazônia através dos jornais O Rio Branco e Varadouro se faz sobre aquela imagem arquitetada desde as primeiras décadas do século XX, baseada na dicotomia paraíso/inferno. As populações indígenas, por serem consideradas elementos constituintes dessa natureza, também tiveram suas imagens construídas baseando-se na oposição barbárie/civilização.

De acordo com Paes Loureiro (1995: 97), ao longo dos primeiros séculos do processo de desenvolvimento brasileiro, bem como até a de 1970, a Amazônia permaneceu como a imagem de um lugar remoto, desconhecido e impenetrável. Devido suas condições geográficas e a dificuldade de acesso, a região foi se constituindo um segredo e um lugar envolvido por mistérios e uma atmosfera lúdica.

A velocidade das mudanças nas elaborações imaginárias acerca da Amazônia acentuou-se no período militar, principalmente através da propaganda de ocupação. A partir de uma série de imagens veiculadas na mídia, conceitos como “vazio demográfico” e “terras sem homens” ocuparam o imaginário coletivo, estabelecendo estreitas relações entre as metas de ocupação dos militares e os desejos das populações rurais.

O ideário de incorporação dessa imensa faixa de terras ao conjunto da economia nacional movimentou os interesses de investidores do Brasil e exterior, sendo estimulados através da disponibilização por parte do governo federal de crédito rápido e fácil nos estabelecimentos bancários públicos, bem como uma série de incentivos fiscais, objetivando promover o deslocamento de migrantes, capitalistas nacionais e estrangeiros, dispostos a contribuir com o projeto de ocupação fomentado na Amazônia.

O retorno à imagem da Amazônia como um “Eldorado” ou como “paraíso” utilizado pela imprensa escrita serviu, diante do isolamento em relação às demais regiões brasileiras, como a alternativa encontrada pelos governantes do período da Ditadura, para propagar a imagem de uma região paradisíaca e propiciadora de vantagens econômicas.

Enquanto em O Rio Branco o discurso sobre a defesa da Amazônia apresenta-se velado, em Varadouro ele aparece declarado. Nos editoriais do jornal Varadouro, a questão ambiental sempre esteve relacionada à luta pela terra, pois ao assumir sua linha editorial pela defesa do índio e do seringueiro, o jornal privilegiava também a defesa da floresta amazônica.

O discurso ambientalista, a partir do qual a Amazônia é definida como reserva ecológica mundial e grande “pulmão do mundo” ganhou fôlego na década de 1970. Os meios de comunicação, desde essa época investiram na veiculação de um discurso pautado de defesa da natureza amazônica frente à destruição das riquezas da fauna e flora e da necessidade de sua preservação.

Se o imaginário projetado pelos jornais sobre a Amazônia aponta para um intricado jogo de interesses, as imagens dos índios na mídia também trazem as marcas do ideário de desenvolvimento do país traçado pelos governos militares. A ênfase do discurso dos jornais O Rio Branco e Varadouro quando tratam da Amazônia recai sobre o perigo de destruição das florestas e a necessidade de sua preservação. Ao tratar da questão indígena, entretanto, notamos ora a imagem do índio como empecilho ao avanço do progresso ora como sujeito atuante no processo de transformação pelo qual passava o Acre nas décadas de 1970 e 1980.

O jornal Varadouro dedicou atenção especial à temática indígena, enfatizando o processo de expulsão dos índios de suas terras com a chegada dos fazendeiros sulistas. Este fato ocasionou uma mudança muito grande na estrutura populacional do Estado. Os seringueiros e índios, expulsos de suas terras foram obrigados a se dirigirem à zona urbana, principalmente à cidade de Rio Branco, ocasionando o surgimento de várias “ocupações” na capital, que, posteriormente, constituiriam os bairros periféricos. Alguns índios se mudaram para outras áreas; outros, porém, permaneceram nas fazendas, tornando-se “peões”.

A chegada dos “paulistas” e a “demarcação” das fronteiras ocasionaram um processo de readequação das populações indígenas em sua relação com a terra. Tanto seringueiros como índios e seringalistas tinham uma relação de posseiros com a terra, com a regulamentação das posses, os primeiros foram obrigados a emigrar por não disporem de condições econômicas para comprar a área em que viviam durante vários anos.

Os discursos dos jornais Varadouro e O Rio Branco estão permeados de representações das imagens dos atores envolvidos no processo de chegada dos investidores do Centro-Sul do país e a instauração da era da pecuária no Acre, sendo os principais sujeitos envolvidos nas tramas discursivas os “carius”, os “caboclos”, os “seringueiros” e os “paulistas”. Os jornais esboçam várias categorias identitárias e posicionamentos dos sujeitos discursivos acerca do Outro.

De acordo com Valle (1977:112) as identidades “cariu” e “cabocla” só podem ser definidas mutuamente, pois representam termos complementares quanto à significação. O termo “cariu” refere-se a todos os brasileiros que mantinham vínculo com a extração da borracha e o termo “caboclo” é usado para designar, indiscriminadamente todos os indígenas.

O caboclo, identidade imposta pelo branco aos grupos indígenas que trabalham na extração da borracha, se distingue do “brabo” - o índio “selvagem” com traços animalescos. O “caboclo” acreano é caracterizado por um conjunto de atributos negativos, tais como ladrão, preguiçoso, vagabundo, irresponsável e traidor, que marcam sua inferioridade em relação ao branco (VALLE, 1977, p. 116).

Mesmo “civilizados” ou “amansados”, através da imagem do “caboclo”, os índios continuam considerados como representantes de uma sub-humanidade. Nos seringais, muitas populações indígenas sobreviventes partilharam um destino funesto com os seringueiros nordestinos, seus inimigos históricos. Na condição de mão de obra servil no sistema escravista e paternalista da borracha, os índios acreanos reprimiram durante décadas sua identidade étnica e continuaram sofrendo os preconceitos da sociedade envolvente.

Diante das representações acerca do índio e da Amazônia produzidas pelo discurso midiático, é interessante notar que os meios de comunicação conectam vários sujeitos ao construir uma cadeia de códigos compartilhados e reconhecidos que são constitutivos das representações sociais. Por isso, o conteúdo discursivo veiculado pela mídia constitui uma importante fonte de pesquisa.

Conclusões

A produção discursiva dos jornais que circularam em rio Branco durante a Ditadura Militar acerca da Amazônia demonstrava a intenção dos grupos dominantes de promover a legitimação do modelo de desenvolvimento elaborado pelos militares para a região. Quanto às populações indígenas, os editoriais do jornal O Rio Branco quase não as mencionam, e as vezes que o fizeram referência, reproduziram a idéia dominante de que o índio é um “mal inevitável”, mas superável e de que o destino do índio é a “civilização” ou o extermínio. Ao veicular notícias informativas sobre os índios, esse periódico contribuiu para a afirmação da dicotomia entre o índio “civilizado” ou “manso” e o índio “brabo”. Para Varadouro, entretanto, a questão ambiental sempre esteve relacionada à luta pela terra, pois ao assumir sua linha editorial pela defesa do índio e do seringueiro, o jornal privilegiava também a defesa da floresta amazônica. Diante disso, no Acre, os jornais O Rio Branco e Varadouro desempenharam importante papel na construção dessas imagens, atuando ora questionando ora reiterando o discurso produzido em tempos passados sobre a região e a população indígena.

Agradecimentos: a Deus, pela presença e auxílio constantes, aos servidores do Museu da Borracha, CDIH da UFAC e Memorial dos Autonomistas, que tão prestativamente nos atenderam, a nossos familiares.

Referências Bibliográficas

BACKZO, Bronislaw. Imaginação Social. In: Enciclopédia Einaudi, V. 5. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Editora Portuguesa, 1985.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
__________. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2002.
__________.Microfísica do Poder. Org. e trad. de Roberto Machado. 18 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003.
__________. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1998.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade; tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro – 9. ed. – Rio de Janeiro: DP7A, 2004.
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia do trabalho científico. 4 ed. São Paulo. Atlas, 1998.
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura Amazônica: uma poética do imaginário. Belém: CEJUP. 1995.
TOCANTINS, Leandro. Formação Histórica do Acre. v. II. 4 ed. Brasília: Senado Federal, 2001.
VALLE DE AQUINO, Terri. Kaxinawá: de seringueiros "caboclos" a "peão" acreano, Dissertação de Mestrado em Antropologia, Universidade de Brasília, 1977.

----------------------------------------
¹ Mestranda em Letras – Linguagem e Identidade/UFAC; Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Sobre Terras e Gentes: Amazônia em foco; e-mail: iracildabonifacio@yahoo.com.br

²Profª do Departamento de Letras e do Mestrado em Letras – Linguagem e Identidade; Líder do Grupo de Pesquisa Amazônia: os vários olhares; e-mail: assmaro@ibest.com.br

Foto: Editada a partir de material disponível na Agência de notícias do Acre - clique aqui para ver a foto original