COLLOR E O BLOQUEIO DO DINHEIRO
Vinte anos depois, Collor pede desculpas pelo bloqueio
Por Cezar Motta e Adriana Faria*
"Peço desculpas, as mais sentidas e as mais humildes, aos brasileiros que passaram por constrangimentos, traumas, medos, incertezas e dramas pessoais com o bloqueio do dinheiro. Lamento que tenha acontecido. Hoje, não faria de novo". Assim o senador Fernando Collor (PTB-AL) se manifesta hoje sobre o empréstimo compulsório que deixou apenas 50 mil cruzados novos (equivalente a R$ 6 mil) nas contas correntes, cadernetas de poupança e demais investimentos em 16 de março de 1990, dia posterior à posse do primeiro presidente eleito após o regime militar.
- Mas a minha agenda macroeconômica prevalece até hoje, quebrou tabus como a abertura da economia, a Lei da Informática, as reservas de mercado, as privatizações, o não-calote da dívida externa. Tudo isso era parte do plano de estabilização, mas hoje só falam no bloqueio do dinheiro - lamenta Collor.
O hoje senador, que renunciou à Presidência da República em dezembro de 1992, na reta final do processo de impeachment, garante que sua queda foi "orquestrada pelo grande empresariado", que não aceitou a perda de privilégios, reservas de mercado e não absorveu a competição com produtos estrangeiros decorrente da abertura de mercado.
- Minha queda começou na Avenida Paulista, ainda em 1990, pouco tempo depois da posse - disse Collor, que tem pronto um livro em que conta detalhes de todo o período, com conversas e conspirações, mas que não sabe ainda quando será lançado. Fernando Collor concedeu a seguinte entrevista à Agência Senado e à Rádio Senado:
Em que momento da campanha o senhor sentiu que a vitória era mais do que provável e, a partir daí, começou a montar uma equipe, escolher cada um, elaborar o Plano Brasil Novo, com uma inflação já de 84% ao mês?
Desde a campanha, sabíamos que os problemas na economia que iríamos enfrentar eram de uma magnitude nunca vista no Brasil do século passado. Por isso, pensamos em um plano que aproveitasse os erros e acertos do Plano Cruzado, para ter chances de êxito. Quando a candidatura começou a ganhar musculatura, a ter resposta nas ruas e nas pesquisas e o segundo turno parecia certo, iniciamos então a preparação do programa de governo, que teve a coordenação da economista Zélia Cardoso de Mello.
E como o senhor chegou ao nome da Zélia? Já a conhecia?
Sim, eu a conheci quando eu era governador de Alagoas e ela, assessora do então ministro da Fazenda Dílson Funaro, que a designou para acompanhar o meu governo, o ajuste fiscal e as reformas que fazíamos para equilibrar as contas do estado. Quando o ministro Funaro deixou o governo, a doutora Zélia continuou a trabalhar conosco, eu a contratei, ela formou uma equipe e nos prestou assessoria. Quando, já candidato a presidente, comecei a elaborar meu programa de governo, eu a convidei para coordenar o trabalho.
O senhor já tinha idéia, durante a campanha, do que iria fazer depois de eleito?
Sem dúvida. As contas públicas estavam absolutamente deterioradas, tudo estava indexado em uma ciranda realimentadora da inflação absurda, a dívida externa era insuportável, as reservas em moeda estrangeira estavam zeradas. Mas o pior de tudo era a inflação que impedia qualquer planejamento, tanto de governo quanto da vida das pessoas comuns. Era o pior dos impostos, o elemento mais cruel e concentrador de renda de uma economia, que castiga justamente os mais pobres, que não podem se defender. Esse era o problema mais imediato. Mas a agenda que implantamos permanece até hoje, e permitiu o sucesso do Plano Real dois anos depois. Era tabu, era proibido no país falar em abertura da economia, no fim das reservas de mercado como o da informática.
Diziam que abrir o mercado de informática permitiria que o capital internacional tivesse acesso à nossa inteligência, aos nossos segredos, ao nosso conhecimento.Diziam que a dívida externa não deveria ser paga, porque era ilegítima, fora contraída de forma irregular. Diziam que o Brasil deveria romper com o FMI. Tanto que o nosso programa, em entrevistas e debates, era o oposto dos outros candidatos. Nós já falávamos em estado menos pesado e mais eficiente, em abertura da economia. Os outros candidatos defendiam um estado que resolvesse todos os problemas do país; diziam que a abertura da economia iria quebrar a indústria brasileira, construída para substituir importações. Diziam que a indústria automobilística não poderia competir com os carros importados, iria fechar e provocar desemprego.
O único ponto em comum que todos tínhamos, e era um consenso na sociedade inteira, era a urgência de vencer a inflação. O resto eram falsos dilemas, que foram desmoralizados e não são levados mais a sério, o que demonstra que, há 20 anos, nossa visão estava correta. Infelizmente, não coube a mim estabilizar a economia, mas as bases, a semente do Plano Real foram lançadas com a nossa agenda macroeconômica.
E como se chegou à idéia de bloquear o dinheiro, os ativos financeiros, e como o senhor recebeu a idéia?
Todo presidente aprende com o antecessor, tanto com os erros quanto com os acertos. No Plano Cruzado, vimos que o congelamento de preços foi feito em um momento de liquidez, não excessiva, mas real. E quem tinha dinheiro na ciranda financeira, no overnight, até mesmo quem vivia de salário, correu às compras, para aproveitar os preços congelados. Quem pensava em comprar geladeira, máquina de lavar e televisão nova, em trocar de carro, em consumir mais, correu às lojas. E a indústria, naquele momento, não estava preparada para repor estoques, para atender à demanda. Veio o desabastecimento, as prateleiras ficaram vazias, as pessoas tinham o dinheiro mas não tinham o que comprar. A inflação voltou então forte, uma inflação de demanda.
Quando tomamos posse, havia ainda mais liquidez, o dinheiro aplicado na ciranda financeira se havia decuplicado, o quadro de dinheiro em circulação era incontrolável, e a moeda valia cada vez menos.Vimos então que um dos pressupostos básicos para estancar o processo, era um novo congelamento de preços. Mas não podíamos fazê-lo com todo aquele dinheiro disponível em bancos, em aplicações financeiras.
E aí veio a idéia do bloqueio do dinheiro...
No início, pensamos apenas em bloquear por tempo determinado os títulos ao portador, os títulos da dívida pública, do Tesouro. Mas o mercado, essa coisa intangível, sabe se defender muito bem. Quando então falamos em acabar a inflação com um tiro só, perceberam logo que vinha congelamento. E pensaram: vão congelar, mas não podem incorrer no mesmo erro do Plano Cruzado. Então, o bloqueio do dinheiro será muito mais amplo. E todos começaram a migrar dos investimentos para as contas correntes e para caderneta de poupança, houve até enormes saques em dinheiro. E nós, às vésperas da posse, estávamos monitorando todo esse movimento.
Ainda na campanha, o senhor garantiu que a poupança seria preservada.
Eu nunca afirmei isso. Ao contrário, em um dos debates eu disse que o meu adversário é que iria confiscar as poupanças, justamente para evitar que a pergunta me fosse feita. O fato é que, quando todos da minha equipe viram que as contas correntes e a poupança receberam enormes aportes, concluímos que não bastava bloquear os títulos, não seria suficiente. E posso garantir que todos os candidatos tinham a mesma intenção. O PT, o PMDB. Tanto é verdade que, dois dias depois, economistas e políticos do PT paulista, alguns ex-colegas da ministra Zélia na Universidade de São Paulo (USP), a procuraram e disseram: "Era este exatamente o programa que queríamos aplicar. Só que, no nosso caso, o governo cairia no dia seguinte". Então, todos trabalhavam com essa saída. A grande surpresa foi o volume dos ativos, ninguém esperava tanto. Mas nós precisávamos de um tempo para respirar e dar os passos seguintes, como renegociar a dívida externa; restabelecer a confiança dos credores internacionais, abalada com a moratória de 1987; reiniciar as linhas de crédito; acenar com o programa liberal, mas com preocupações sociais.
E como foi a reação do empresariado brasileiro com a abertura da economia?
A minha queda começou na Avenida Paulista, com a insatisfação dos que perderam suas reservas de mercado, seus privilégios. Mas a indústria brasileira deu um grande salto de produtividade e qualidade depois da abertura da economia. Criamos as câmaras setoriais para analisar cada setor, o que poderia ser feito para lhes garantir competitividade, como enfrentar a competição internacional. Depois da abertura, nossos carros melhoraram, nossos computadores deram um salto de qualidade - a gente tinha uma coisa impensável que chamavam de computador, mas que era três ou quatro gerações atrasada em relação ao que se encontrava em qualquer shopping norte-americano.
Não tínhamos celular, fizemos uma campanha sem qualquer memória em relação a eleições anteriores, coordenar uma logística nacional era uma coisa absurdamente difícil. Hoje, temos celulares, computadores de última geração, ninguém mais pensa em reservas de mercado, ninguém mais tem medo de privatizações, a dívida externa está equacionada, e o início foi ali, no meu governo. Meu negociador da dívida externa foi o embaixador Jório Dauster, que fez um extraordinário trabalho e reabriu as portas para o Brasil.
Voltando a falar do bloqueio de ativos: como se chegou ao valor de 50 mil cruzados novos? Há muita especulação, e chegou-se até a falar em sorteio com papeizinhos, que teria sido na base do improviso...
Decidimos com base na caderneta de poupança. Porque não queríamos atingir o pequeno poupador, o típico aplicador em caderneta, que vive de salário, pensão ou aposentadoria. Tiramos uma média e vimos que 50 mil cruzados novos (NR: o equivalente, na época, a US$ 1.300) era a média dos aplicadores em caderneta de poupança. No entanto, houve uma corrida para a poupança de grandes aplicadores.Hoje, quando se fala no Plano Brasil Novo, fala-se no bloqueio, fala-se em confisco, esquecendo-se de todo o conjunto do plano, e de que o dinheiro foi devolvido 18 meses depois, em 18 parcelas, com juros de 6%, acima do que pagava a poupança.Ao contrário de outros empréstimos compulsórios, como o das viagens ao exterior, no governo Geisel, e o da gasolina, nos anos 80, de que ninguém nunca mais teve notícia, não recebeu o dinheiro de volta e nem sabe quanto perdeu.
E por que deu errado? O impacto do bloqueio do dinheiro teria sido tão grande que levou a população a ficar contra o governo e o plano?
Não, a população não sabotou. Ao contrário, uma pesquisa logo depois do plano mostrou que tínhamos 67% de aprovação. Erramos em uma série de pequenas coisas, que se tornaram grandes. Por exemplo, na administração da liberação do dinheiro no que chamávamos de "torneiras". Todo dia nos deparávamos com uma surpresa. Nossas reservas cambiais eram atacadas no mercado, e nós precisávamos delas. Muitas frentes estavam abertas, mas a grande resistência veio da Avenida Paulista, como disse, dos grandes industriais e empresários brasileiros, que não gostaram de perder suas reservas de mercado. Em nenhum momento tivemos problemas com sindicatos de trabalhadores ou partidos de oposição, embora o PT já fosse uma oposição forte e ativa.
Quem sabotou foram os que queriam manter privilégios, aumentar preços e tarifas, a burocracia, os que se envolviam com a Cacex (Câmara de Comércio Exterior do Banco do Brasil, que estabelecia tarifas de importação e exportação). Enfim, era a mesma gente que me apoiou no segundo turno, que defendia a medidas que adotei. Mas logo percebi que defendiam as medidas em relação ao vizinho, mas não aceitavam que fossem adotadas em relação a eles próprios. Tanto que, quando o então presidente da CUT, Jair Meneguelli, foi ao Palácio falar sobre greves e movimentos contra o plano, eu lhe disse: "Não se preocupe, porque vocês, os trabalhadores, não desestabilizam o governo, mesmo com greves. Quem está realmente causando problemas são os seus patrões, os industriais".
E a perda do apoio congressual, principalmente no Senado?
Só mesmo depois de 1991, quando tomou posse um novo Congresso. Tanto que, em 1990, todas as medidas foram aprovadas no Congresso Nacional e até pelo Judiciário. A perda de apoio no Senado só aconteceu um ano depois, porque eu peguei na posse o Congresso anterior, do cruzado, foi uma eleição solteira para presidente da República. No ano seguinte, em 1990, aí sim, veio a eleição para o Congresso e, em 1991, tomou posse um Congresso Nacional que se defrontou com o desgaste do governo, renovou-se a Câmara dos Deputados e dois terços das cadeiras do Senado. E veio uma oposição forte, ainda sob os efeitos do segundo turno da eleição presidencial e do desgaste do governo com o plano econômico.
O bloqueio do dinheiro provocou dramas pessoais, mexeu com a vida de milhões debrasileiros, havia viúvas que viviam dos rendimentos da poupança, foi traumático. Como o senhor vê hoje de uma perspectiva histórica tudo isso?
Eu peço desculpas, as mais humildes e sentidas desculpas, a todas as pessoas e todas as famílias que sofreram constrangimentos, medos, inseguranças, contrariedades, viveram dramas pessoais, e tenho a dizer que lamento muito que isso tenha acontecido. Acho que, mais tarde, todos devem ter percebido que não tomei aquela medida por gosto, mas porque eu queria salvar o país e a população do flagelo da inflação, esse imposto draconiano que corroia salários. Eu lamento que tenha acontecido, foi um sacrifício muito maior do que eu teria imaginado.
O senhor disse que, na época, era tecnicamente inevitável, e que qualquer que fosse o eleito, faria o mesmo. De novo, com a distância histórica de hoje, faria o mesmo?
Não, é a única coisa que eu não faria de novo. Há instrumentos hoje que permitiriam medidas mais brandas. Se a situação se repetisse, seguramente eu não tomaria a mesma medida, não faria o bloqueio, encontraria fórmula mais criativa, menos traumática.
A gente vê hoje a foto da equipe econômica anunciando o plano econômico, todos muito jovens. Faltou maturidade à equipe, houve erros?
Sem dúvida, faltou maturidade, havia muito voluntarismo, o que leva a erros. Aquele ministério era o do idealismo. Éramos todos jovens, sonhadores, com vontade de fazer o melhor para o país, com vontade de realizar o que sonhávamos nas ruas, quando estudantes, em passeatas, em movimentos, nas universidades, combater o que criticávamos. E essa juventude leva ao voluntarismo, que por sua vez leva a decisões temerárias, a correr riscos. Mas sem essa juventude, não teríamos a coragem de fazer o que fizemos, e que era preciso fazer. O governador Leonel Brizola, gentilmente, em sua posse, disse que "estão tentando derrubar o Collor muito mais por suas qualidades do que por seus defeitos".
Vinte anos depois, o que o senhor pode contar daquele período, daquela crise, que não pôde contar então?
Tudo isso está contado em um livro que repousa docemente em dois disquetes, ainda nem pus em CD. Um livro que comecei a escrever logo depois da minha queda. Eu sei o que vocês querem que eu conte agora, mas não posso fazê-lo. Eventualmente, quando há alguma provocação, alguma informação errada, eu conto o que realmente houve. Recentemente, por exemplo, o Delfim Netto disse que não foi consultado na época do plano por ninguém da equipe. Realmente, ninguém da equipe o procurou, mas ele esteve comigo. Ele desmente e diz que, convenientemente, escolho só testemunhas já mortas. Mas há as esposas que estavam presentes. Este encontro foi na casa do ex-deputado Amaral Neto, e a d. Ângela, mulher dele, estava lá, um final de tarde, com o então deputado Ricardo Fiúza e o senador Roberto Campos. Eu os consultei sobre a situação da economia, e todos foram unânimes: com essa liquidez, nenhum plano anti-inflação dará certo. Disseram que seria decisiva a escolha do presidente do Banco Central. Era preciso um nome capaz, que o mercado respeitasse. Eu mencionei alguns nomes, e quando citei Ibrahim Eris, Delfim vibrou: "extraordinário nome, extraordinário nome, perfeito!". Já Roberto Campos não gostou: "Esse não pode, Delfim, é um fiscalista, seria um erro".
E depois da posse e do plano apresentado?
Logo depois, o Delfim foi ao Planalto, lépido e fagueiro, com aquele cabelo sempre bem penteado, bem barbeado, sorridente, e disse: "genial presidente, genial!! Nem eu com o AI-5 teria condições de fazer isso. Parabéns!" Hoje ele nega o encontro. Mas houve, e dou mais um detalhe da conversa. Ele me perguntou: "Mas esse dinheiro não vai ser devolvido, não é?" E eu respondi: "Sim, vai ser devolvido e com juros". Ele riu e duvidou: "Ah, mas isso eu quero estar vivo pra assistir".Pois o dinheiro foi devolvido e Deus permitiu a ele estar vivo para testemunhar. Ele desmente o encontro, mas explicou que apenas propôs o pagamento em títulos. Ou seja, sem querer, confirmou.
E quando o livro com as histórias dos bastidores da época será lançado?
Não sei ainda. Tenho contado alguns dos episódios aos poucos, à medida que a necessidade se apresenta. Aqui mesmo no Senado contei o episódio do jornalista Roberto Pompeu de Toledo que, uma vez, pediu uma audiência a um ministro do Supremo Tribunal Federal a pretexto de uma entrevista e lhe propôs: ministro, condene o Collor que eu lhe garanto tantas páginas da Veja, além da capa, com o título "O homem que condenou o caçador de marajás", alguma coisa assim. Isso não é coisa que um jornalista faça. E o ministro do Supremo está vivo...
Não sei quando vou lançar o livro, mas é prematuro. Uma vez, em 1993, procurei meu querido amigo Thales Ramalho, então ministro do TCU, homem de grande experiência e sabedoria, infelizmente já falecido, e lhe mostrei o texto. Ele lia e balançava a cabeça... Lia e balançava a cabeça, em negação.Até que me disse: "Presidente, isto é um livro de memórias, coisa que só pode ser lançada por quem, como eu, está na ante-sala da morte. O senhor é jovem, mais cedo ou mais tarde vai retomar sua vida política, não pode fazer isso agora. A maioria dessas pessoas está viva, tem filhos, família, netos, não seria bom."E eu respondi, mas o senhor sabe que tudo o que está aí é verdade, não é? E ele respondeu que sim, e me contou uma passagem, que conto no livro, em que ele foi convidado em 1990 para um jantar com um líder de um setor empresarial de São Paulo. Eu tinha tomado posse havia pouco tempo.O empresário, então, sentou-se à mesa com convidados e disse: vamos então retomar o assunto que iniciamos na semana passada. O doutor Thales perguntou: "Que assunto?" E o empresário: "A queda do Collor, temos que afastá-lo da Presidência". O doutor Thales disse então: "Vocês estão loucos? Acabamos de eleger um presidente da República depois de vinte anos, o país não agüenta mais golpes, vocês querem mergulhar em outra aventura?" Eles, então, esfriaram ali a conversa. Thales disse que nem me contou depois porque achou aquilo um verdadeiro delírio.Mas a minha queda começou a ser tramada na Avenida Paulista ainda em 1990.
Houve mesmo um acordo para que o então senador Fernando Henrique Cardoso assumisse o Itamaraty em 1991?
Sim, sim, fechamos o acordo com o presidente do PSDB, o então deputado Franco Montoro, o partido nos apoiaria no Congresso, o Fernando Henrique seria chanceler e o José Serra seria o ministro da Fazenda. Viajei com tudo acertado, e quando voltei soube que o senador Mário Covas havia vetado tudo, anulado o acordo. Soube ainda de outra tentativa de golpe quando formei uma comissão, coordenada pelo ministro da Justiça, Jarbas Passarinho, para trabalhar a opinião pública em favor do parlamentarismo, no plebiscito de 1993. Por campanha educativa, mostraríamos que o nosso presidencialismo era arcaico, imperfeito, disfuncional. Passarinho, que era presidencialista, me procurou um dia e disse: "presidente, uma comissão de parlamentares está preparando tudo para, uma vez vitorioso no plebiscito, o parlamentarismo seja implantado imediatamente, ainda no seu mandato".
Publicado originalmente na Agência Senado.
Por Cezar Motta e Adriana Faria*
"Peço desculpas, as mais sentidas e as mais humildes, aos brasileiros que passaram por constrangimentos, traumas, medos, incertezas e dramas pessoais com o bloqueio do dinheiro. Lamento que tenha acontecido. Hoje, não faria de novo". Assim o senador Fernando Collor (PTB-AL) se manifesta hoje sobre o empréstimo compulsório que deixou apenas 50 mil cruzados novos (equivalente a R$ 6 mil) nas contas correntes, cadernetas de poupança e demais investimentos em 16 de março de 1990, dia posterior à posse do primeiro presidente eleito após o regime militar.
- Mas a minha agenda macroeconômica prevalece até hoje, quebrou tabus como a abertura da economia, a Lei da Informática, as reservas de mercado, as privatizações, o não-calote da dívida externa. Tudo isso era parte do plano de estabilização, mas hoje só falam no bloqueio do dinheiro - lamenta Collor.
O hoje senador, que renunciou à Presidência da República em dezembro de 1992, na reta final do processo de impeachment, garante que sua queda foi "orquestrada pelo grande empresariado", que não aceitou a perda de privilégios, reservas de mercado e não absorveu a competição com produtos estrangeiros decorrente da abertura de mercado.
- Minha queda começou na Avenida Paulista, ainda em 1990, pouco tempo depois da posse - disse Collor, que tem pronto um livro em que conta detalhes de todo o período, com conversas e conspirações, mas que não sabe ainda quando será lançado. Fernando Collor concedeu a seguinte entrevista à Agência Senado e à Rádio Senado:
Em que momento da campanha o senhor sentiu que a vitória era mais do que provável e, a partir daí, começou a montar uma equipe, escolher cada um, elaborar o Plano Brasil Novo, com uma inflação já de 84% ao mês?
Desde a campanha, sabíamos que os problemas na economia que iríamos enfrentar eram de uma magnitude nunca vista no Brasil do século passado. Por isso, pensamos em um plano que aproveitasse os erros e acertos do Plano Cruzado, para ter chances de êxito. Quando a candidatura começou a ganhar musculatura, a ter resposta nas ruas e nas pesquisas e o segundo turno parecia certo, iniciamos então a preparação do programa de governo, que teve a coordenação da economista Zélia Cardoso de Mello.
E como o senhor chegou ao nome da Zélia? Já a conhecia?
Sim, eu a conheci quando eu era governador de Alagoas e ela, assessora do então ministro da Fazenda Dílson Funaro, que a designou para acompanhar o meu governo, o ajuste fiscal e as reformas que fazíamos para equilibrar as contas do estado. Quando o ministro Funaro deixou o governo, a doutora Zélia continuou a trabalhar conosco, eu a contratei, ela formou uma equipe e nos prestou assessoria. Quando, já candidato a presidente, comecei a elaborar meu programa de governo, eu a convidei para coordenar o trabalho.
O senhor já tinha idéia, durante a campanha, do que iria fazer depois de eleito?
Sem dúvida. As contas públicas estavam absolutamente deterioradas, tudo estava indexado em uma ciranda realimentadora da inflação absurda, a dívida externa era insuportável, as reservas em moeda estrangeira estavam zeradas. Mas o pior de tudo era a inflação que impedia qualquer planejamento, tanto de governo quanto da vida das pessoas comuns. Era o pior dos impostos, o elemento mais cruel e concentrador de renda de uma economia, que castiga justamente os mais pobres, que não podem se defender. Esse era o problema mais imediato. Mas a agenda que implantamos permanece até hoje, e permitiu o sucesso do Plano Real dois anos depois. Era tabu, era proibido no país falar em abertura da economia, no fim das reservas de mercado como o da informática.
Diziam que abrir o mercado de informática permitiria que o capital internacional tivesse acesso à nossa inteligência, aos nossos segredos, ao nosso conhecimento.Diziam que a dívida externa não deveria ser paga, porque era ilegítima, fora contraída de forma irregular. Diziam que o Brasil deveria romper com o FMI. Tanto que o nosso programa, em entrevistas e debates, era o oposto dos outros candidatos. Nós já falávamos em estado menos pesado e mais eficiente, em abertura da economia. Os outros candidatos defendiam um estado que resolvesse todos os problemas do país; diziam que a abertura da economia iria quebrar a indústria brasileira, construída para substituir importações. Diziam que a indústria automobilística não poderia competir com os carros importados, iria fechar e provocar desemprego.
O único ponto em comum que todos tínhamos, e era um consenso na sociedade inteira, era a urgência de vencer a inflação. O resto eram falsos dilemas, que foram desmoralizados e não são levados mais a sério, o que demonstra que, há 20 anos, nossa visão estava correta. Infelizmente, não coube a mim estabilizar a economia, mas as bases, a semente do Plano Real foram lançadas com a nossa agenda macroeconômica.
E como se chegou à idéia de bloquear o dinheiro, os ativos financeiros, e como o senhor recebeu a idéia?
Todo presidente aprende com o antecessor, tanto com os erros quanto com os acertos. No Plano Cruzado, vimos que o congelamento de preços foi feito em um momento de liquidez, não excessiva, mas real. E quem tinha dinheiro na ciranda financeira, no overnight, até mesmo quem vivia de salário, correu às compras, para aproveitar os preços congelados. Quem pensava em comprar geladeira, máquina de lavar e televisão nova, em trocar de carro, em consumir mais, correu às lojas. E a indústria, naquele momento, não estava preparada para repor estoques, para atender à demanda. Veio o desabastecimento, as prateleiras ficaram vazias, as pessoas tinham o dinheiro mas não tinham o que comprar. A inflação voltou então forte, uma inflação de demanda.
Quando tomamos posse, havia ainda mais liquidez, o dinheiro aplicado na ciranda financeira se havia decuplicado, o quadro de dinheiro em circulação era incontrolável, e a moeda valia cada vez menos.Vimos então que um dos pressupostos básicos para estancar o processo, era um novo congelamento de preços. Mas não podíamos fazê-lo com todo aquele dinheiro disponível em bancos, em aplicações financeiras.
E aí veio a idéia do bloqueio do dinheiro...
No início, pensamos apenas em bloquear por tempo determinado os títulos ao portador, os títulos da dívida pública, do Tesouro. Mas o mercado, essa coisa intangível, sabe se defender muito bem. Quando então falamos em acabar a inflação com um tiro só, perceberam logo que vinha congelamento. E pensaram: vão congelar, mas não podem incorrer no mesmo erro do Plano Cruzado. Então, o bloqueio do dinheiro será muito mais amplo. E todos começaram a migrar dos investimentos para as contas correntes e para caderneta de poupança, houve até enormes saques em dinheiro. E nós, às vésperas da posse, estávamos monitorando todo esse movimento.
Ainda na campanha, o senhor garantiu que a poupança seria preservada.
Eu nunca afirmei isso. Ao contrário, em um dos debates eu disse que o meu adversário é que iria confiscar as poupanças, justamente para evitar que a pergunta me fosse feita. O fato é que, quando todos da minha equipe viram que as contas correntes e a poupança receberam enormes aportes, concluímos que não bastava bloquear os títulos, não seria suficiente. E posso garantir que todos os candidatos tinham a mesma intenção. O PT, o PMDB. Tanto é verdade que, dois dias depois, economistas e políticos do PT paulista, alguns ex-colegas da ministra Zélia na Universidade de São Paulo (USP), a procuraram e disseram: "Era este exatamente o programa que queríamos aplicar. Só que, no nosso caso, o governo cairia no dia seguinte". Então, todos trabalhavam com essa saída. A grande surpresa foi o volume dos ativos, ninguém esperava tanto. Mas nós precisávamos de um tempo para respirar e dar os passos seguintes, como renegociar a dívida externa; restabelecer a confiança dos credores internacionais, abalada com a moratória de 1987; reiniciar as linhas de crédito; acenar com o programa liberal, mas com preocupações sociais.
E como foi a reação do empresariado brasileiro com a abertura da economia?
A minha queda começou na Avenida Paulista, com a insatisfação dos que perderam suas reservas de mercado, seus privilégios. Mas a indústria brasileira deu um grande salto de produtividade e qualidade depois da abertura da economia. Criamos as câmaras setoriais para analisar cada setor, o que poderia ser feito para lhes garantir competitividade, como enfrentar a competição internacional. Depois da abertura, nossos carros melhoraram, nossos computadores deram um salto de qualidade - a gente tinha uma coisa impensável que chamavam de computador, mas que era três ou quatro gerações atrasada em relação ao que se encontrava em qualquer shopping norte-americano.
Não tínhamos celular, fizemos uma campanha sem qualquer memória em relação a eleições anteriores, coordenar uma logística nacional era uma coisa absurdamente difícil. Hoje, temos celulares, computadores de última geração, ninguém mais pensa em reservas de mercado, ninguém mais tem medo de privatizações, a dívida externa está equacionada, e o início foi ali, no meu governo. Meu negociador da dívida externa foi o embaixador Jório Dauster, que fez um extraordinário trabalho e reabriu as portas para o Brasil.
Voltando a falar do bloqueio de ativos: como se chegou ao valor de 50 mil cruzados novos? Há muita especulação, e chegou-se até a falar em sorteio com papeizinhos, que teria sido na base do improviso...
Decidimos com base na caderneta de poupança. Porque não queríamos atingir o pequeno poupador, o típico aplicador em caderneta, que vive de salário, pensão ou aposentadoria. Tiramos uma média e vimos que 50 mil cruzados novos (NR: o equivalente, na época, a US$ 1.300) era a média dos aplicadores em caderneta de poupança. No entanto, houve uma corrida para a poupança de grandes aplicadores.Hoje, quando se fala no Plano Brasil Novo, fala-se no bloqueio, fala-se em confisco, esquecendo-se de todo o conjunto do plano, e de que o dinheiro foi devolvido 18 meses depois, em 18 parcelas, com juros de 6%, acima do que pagava a poupança.Ao contrário de outros empréstimos compulsórios, como o das viagens ao exterior, no governo Geisel, e o da gasolina, nos anos 80, de que ninguém nunca mais teve notícia, não recebeu o dinheiro de volta e nem sabe quanto perdeu.
E por que deu errado? O impacto do bloqueio do dinheiro teria sido tão grande que levou a população a ficar contra o governo e o plano?
Não, a população não sabotou. Ao contrário, uma pesquisa logo depois do plano mostrou que tínhamos 67% de aprovação. Erramos em uma série de pequenas coisas, que se tornaram grandes. Por exemplo, na administração da liberação do dinheiro no que chamávamos de "torneiras". Todo dia nos deparávamos com uma surpresa. Nossas reservas cambiais eram atacadas no mercado, e nós precisávamos delas. Muitas frentes estavam abertas, mas a grande resistência veio da Avenida Paulista, como disse, dos grandes industriais e empresários brasileiros, que não gostaram de perder suas reservas de mercado. Em nenhum momento tivemos problemas com sindicatos de trabalhadores ou partidos de oposição, embora o PT já fosse uma oposição forte e ativa.
Quem sabotou foram os que queriam manter privilégios, aumentar preços e tarifas, a burocracia, os que se envolviam com a Cacex (Câmara de Comércio Exterior do Banco do Brasil, que estabelecia tarifas de importação e exportação). Enfim, era a mesma gente que me apoiou no segundo turno, que defendia a medidas que adotei. Mas logo percebi que defendiam as medidas em relação ao vizinho, mas não aceitavam que fossem adotadas em relação a eles próprios. Tanto que, quando o então presidente da CUT, Jair Meneguelli, foi ao Palácio falar sobre greves e movimentos contra o plano, eu lhe disse: "Não se preocupe, porque vocês, os trabalhadores, não desestabilizam o governo, mesmo com greves. Quem está realmente causando problemas são os seus patrões, os industriais".
E a perda do apoio congressual, principalmente no Senado?
Só mesmo depois de 1991, quando tomou posse um novo Congresso. Tanto que, em 1990, todas as medidas foram aprovadas no Congresso Nacional e até pelo Judiciário. A perda de apoio no Senado só aconteceu um ano depois, porque eu peguei na posse o Congresso anterior, do cruzado, foi uma eleição solteira para presidente da República. No ano seguinte, em 1990, aí sim, veio a eleição para o Congresso e, em 1991, tomou posse um Congresso Nacional que se defrontou com o desgaste do governo, renovou-se a Câmara dos Deputados e dois terços das cadeiras do Senado. E veio uma oposição forte, ainda sob os efeitos do segundo turno da eleição presidencial e do desgaste do governo com o plano econômico.
O bloqueio do dinheiro provocou dramas pessoais, mexeu com a vida de milhões debrasileiros, havia viúvas que viviam dos rendimentos da poupança, foi traumático. Como o senhor vê hoje de uma perspectiva histórica tudo isso?
Eu peço desculpas, as mais humildes e sentidas desculpas, a todas as pessoas e todas as famílias que sofreram constrangimentos, medos, inseguranças, contrariedades, viveram dramas pessoais, e tenho a dizer que lamento muito que isso tenha acontecido. Acho que, mais tarde, todos devem ter percebido que não tomei aquela medida por gosto, mas porque eu queria salvar o país e a população do flagelo da inflação, esse imposto draconiano que corroia salários. Eu lamento que tenha acontecido, foi um sacrifício muito maior do que eu teria imaginado.
O senhor disse que, na época, era tecnicamente inevitável, e que qualquer que fosse o eleito, faria o mesmo. De novo, com a distância histórica de hoje, faria o mesmo?
Não, é a única coisa que eu não faria de novo. Há instrumentos hoje que permitiriam medidas mais brandas. Se a situação se repetisse, seguramente eu não tomaria a mesma medida, não faria o bloqueio, encontraria fórmula mais criativa, menos traumática.
A gente vê hoje a foto da equipe econômica anunciando o plano econômico, todos muito jovens. Faltou maturidade à equipe, houve erros?
Sem dúvida, faltou maturidade, havia muito voluntarismo, o que leva a erros. Aquele ministério era o do idealismo. Éramos todos jovens, sonhadores, com vontade de fazer o melhor para o país, com vontade de realizar o que sonhávamos nas ruas, quando estudantes, em passeatas, em movimentos, nas universidades, combater o que criticávamos. E essa juventude leva ao voluntarismo, que por sua vez leva a decisões temerárias, a correr riscos. Mas sem essa juventude, não teríamos a coragem de fazer o que fizemos, e que era preciso fazer. O governador Leonel Brizola, gentilmente, em sua posse, disse que "estão tentando derrubar o Collor muito mais por suas qualidades do que por seus defeitos".
Vinte anos depois, o que o senhor pode contar daquele período, daquela crise, que não pôde contar então?
Tudo isso está contado em um livro que repousa docemente em dois disquetes, ainda nem pus em CD. Um livro que comecei a escrever logo depois da minha queda. Eu sei o que vocês querem que eu conte agora, mas não posso fazê-lo. Eventualmente, quando há alguma provocação, alguma informação errada, eu conto o que realmente houve. Recentemente, por exemplo, o Delfim Netto disse que não foi consultado na época do plano por ninguém da equipe. Realmente, ninguém da equipe o procurou, mas ele esteve comigo. Ele desmente e diz que, convenientemente, escolho só testemunhas já mortas. Mas há as esposas que estavam presentes. Este encontro foi na casa do ex-deputado Amaral Neto, e a d. Ângela, mulher dele, estava lá, um final de tarde, com o então deputado Ricardo Fiúza e o senador Roberto Campos. Eu os consultei sobre a situação da economia, e todos foram unânimes: com essa liquidez, nenhum plano anti-inflação dará certo. Disseram que seria decisiva a escolha do presidente do Banco Central. Era preciso um nome capaz, que o mercado respeitasse. Eu mencionei alguns nomes, e quando citei Ibrahim Eris, Delfim vibrou: "extraordinário nome, extraordinário nome, perfeito!". Já Roberto Campos não gostou: "Esse não pode, Delfim, é um fiscalista, seria um erro".
E depois da posse e do plano apresentado?
Logo depois, o Delfim foi ao Planalto, lépido e fagueiro, com aquele cabelo sempre bem penteado, bem barbeado, sorridente, e disse: "genial presidente, genial!! Nem eu com o AI-5 teria condições de fazer isso. Parabéns!" Hoje ele nega o encontro. Mas houve, e dou mais um detalhe da conversa. Ele me perguntou: "Mas esse dinheiro não vai ser devolvido, não é?" E eu respondi: "Sim, vai ser devolvido e com juros". Ele riu e duvidou: "Ah, mas isso eu quero estar vivo pra assistir".Pois o dinheiro foi devolvido e Deus permitiu a ele estar vivo para testemunhar. Ele desmente o encontro, mas explicou que apenas propôs o pagamento em títulos. Ou seja, sem querer, confirmou.
E quando o livro com as histórias dos bastidores da época será lançado?
Não sei ainda. Tenho contado alguns dos episódios aos poucos, à medida que a necessidade se apresenta. Aqui mesmo no Senado contei o episódio do jornalista Roberto Pompeu de Toledo que, uma vez, pediu uma audiência a um ministro do Supremo Tribunal Federal a pretexto de uma entrevista e lhe propôs: ministro, condene o Collor que eu lhe garanto tantas páginas da Veja, além da capa, com o título "O homem que condenou o caçador de marajás", alguma coisa assim. Isso não é coisa que um jornalista faça. E o ministro do Supremo está vivo...
Não sei quando vou lançar o livro, mas é prematuro. Uma vez, em 1993, procurei meu querido amigo Thales Ramalho, então ministro do TCU, homem de grande experiência e sabedoria, infelizmente já falecido, e lhe mostrei o texto. Ele lia e balançava a cabeça... Lia e balançava a cabeça, em negação.Até que me disse: "Presidente, isto é um livro de memórias, coisa que só pode ser lançada por quem, como eu, está na ante-sala da morte. O senhor é jovem, mais cedo ou mais tarde vai retomar sua vida política, não pode fazer isso agora. A maioria dessas pessoas está viva, tem filhos, família, netos, não seria bom."E eu respondi, mas o senhor sabe que tudo o que está aí é verdade, não é? E ele respondeu que sim, e me contou uma passagem, que conto no livro, em que ele foi convidado em 1990 para um jantar com um líder de um setor empresarial de São Paulo. Eu tinha tomado posse havia pouco tempo.O empresário, então, sentou-se à mesa com convidados e disse: vamos então retomar o assunto que iniciamos na semana passada. O doutor Thales perguntou: "Que assunto?" E o empresário: "A queda do Collor, temos que afastá-lo da Presidência". O doutor Thales disse então: "Vocês estão loucos? Acabamos de eleger um presidente da República depois de vinte anos, o país não agüenta mais golpes, vocês querem mergulhar em outra aventura?" Eles, então, esfriaram ali a conversa. Thales disse que nem me contou depois porque achou aquilo um verdadeiro delírio.Mas a minha queda começou a ser tramada na Avenida Paulista ainda em 1990.
Houve mesmo um acordo para que o então senador Fernando Henrique Cardoso assumisse o Itamaraty em 1991?
Sim, sim, fechamos o acordo com o presidente do PSDB, o então deputado Franco Montoro, o partido nos apoiaria no Congresso, o Fernando Henrique seria chanceler e o José Serra seria o ministro da Fazenda. Viajei com tudo acertado, e quando voltei soube que o senador Mário Covas havia vetado tudo, anulado o acordo. Soube ainda de outra tentativa de golpe quando formei uma comissão, coordenada pelo ministro da Justiça, Jarbas Passarinho, para trabalhar a opinião pública em favor do parlamentarismo, no plebiscito de 1993. Por campanha educativa, mostraríamos que o nosso presidencialismo era arcaico, imperfeito, disfuncional. Passarinho, que era presidencialista, me procurou um dia e disse: "presidente, uma comissão de parlamentares está preparando tudo para, uma vez vitorioso no plebiscito, o parlamentarismo seja implantado imediatamente, ainda no seu mandato".
Publicado originalmente na Agência Senado.
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