JOSÉ POTYGUARA: INTÉRPRETE DA ALMA ACREANA
Isaac Melo
Blog Alma Acreana
No anfiteatro amazônico, dos fins do século XIX a início do XX, encenou-se talvez um dos maiores dramas, com misto de epopeia e tragédia, do Brasil: o ciclo da borracha. Que garantia, por um lado, luxo e riquezas a uns poucos, sob a opressão e exploração de uma centena de milhares de seringueiros, por outro. De repente, o que era apenas uma mancha verde, a estirar-se sem fim, metamorfoseia-se ao ver insurgir em seu meio modernas e sofisticadas cidades, com seus palacetes e teatros portentosos, a chamar a atenção do Brasil e do mundo para o novo rincão. É a partir desse pano de fundo que muitos escritores irão direcionar a sua pena: ora impressionados por aquilo que ouviram ou leram, ora por aquilo que viram e experenciaram.
Dentre tantos e importantes escritores que registraram essa época inscreve-se o nome de José Potyguara da Frota e Silva (1909-1991). Depois de formado em Direito deixou sua terra natal, a cidade de Sobral, no Ceará, e veio exercer o cargo de promotor público no Acre, então Território, mais precisamente na cidade de Tarauacá, na época, Seabra. Seus pais já residiam na região, Rita da Frota e Silva e Hipólito de Albuquerque Silva, este, um dos primeiros desbravadores dessa região, tendo sido também prefeito de Tarauacá em fins da década de 1920. Potyguara exerceu o cargo de promotor público em Tarauacá e Feijó até fins da década de 30 quando foi extinto esse Termo. Então mudou para o Rio de Janeiro, donde, anos depois retornou ao Acre, como promotor de justiça, agora, na capital, Rio Branco.
Potyguara promoveu uma verdadeira agitação na vida cultural acreana: publicou livros, escreveu várias peças teatrais, fundou revista, colaborou em jornais e exerceu o magistério num dos colégios mais tradicionais do Acre, o Colégio Acreano, que tem formado grandes nomes para a cultura brasileira. Foi um dos primeiros a voltar seus escritos para a temática acreana. Tornou-se, assim, um criador e agitador da alma acreana, intérprete de sua cultura e de sua gente.
De suas peças teatrais tem-se registro de duas: Alma Acreana, sua primeira peça, que no dia 10 de Dezembro 1930 era representada num palco improvisado do grupo escolar João Ribeiro, em Tarauacá, e versava sobre os costumes da região, com músicas orquestradas pelo maestro Mozart Donizetti, autor da música do Hino Acreano; a outra, Razões do Coração, um melodrama apresentada em 29 de janeiro de 1933 no Teatro Municipal de Tarauacá, após três dias de sua inauguração, que hoje leva seu nome.
Naqueles idos Tarauacá vivia uma efervescência cultural, com os famosos bailes promovidos pela Sociedade Esportiva e Dramática Tarauacaense, fundada em 16 de agosto de 1925, da qual José Potyguara participava ativamente. Uma pequena cidade que tinha o coração cultural no palco de seu teatro majestoso (para época e região). Ali se fazia representar desde peças teatrais a eventos beneficentes, em que ora o piano fazia-se ouvir, e os casais dançavam noite adentro nos animados bailes, ora escutava-se, nos saraus, vozes a declamar poesias.
A prosa de Potyguara não é extensa, ao todo, publicou quatro livros: Sapupema: contos amazônicos, Vidas Marcadas, Terra Caída e Do Seringal ao Asfalto. Destarte, se a produção é pequena, em nada deixou a desejar na qualidade. Como assertava João Felício dos Santos, a obra de José Potyguara, pela colorida descrição das paisagens e a fidelidade com que fotografa os tipos humanos, constitui valioso repositório dos costumes da região e autêntico documentário de uma era que passou e, todavia, continua a nos intrigar.
Sapupema: contos amazônicos marca a estreia literária de Potyguara, e veio à lume em 1942. É o único livro de contos do autor e o primeiro nesse gênero, no Acre, a ter em seu bojo exclusivamente a temática acreana. Na primeira edição o livro traz dez contos, porém, na segunda edição, em 1978, houve uma pequena modificação, o autor retirou um conto, por considerar ser mais crônica, e acrescentou dois outros, a somar onze. Como assinala Djalma Batista, no prefácio da última edição, Sapupema constitui um verdadeiro documentário da vida acreana. Os contos estão ambientados à região de Tarauacá e versam, com grande força telúrica, sobre eventos relacionados às alagações, cenas da vida cotidiana daqueles que viviam isolados na floresta, as histórias sobre índios, fatos relacionados à moral e tradição da época.
Vidas Marcadas, de 1957, abre a trilogia romanesca de Potyguara. O romance inicia sua trama numa pequena cidade cearense e se desloca para o Acre, para, novamente, se encerrar no Ceará. E narra a sina de Fernando, jovem tesoureiro da coletoria de sua cidade, um dia acusado de roubo, depois que, numa noite, a coletoria foi invadida e roubada misteriosamente. Vai preso, porém, consegue fugir para o Acre e lá permanece até encontrar pistas que provem sua inocência. Nesse ínterim muitas vidas se cruzam, muitos eventos se entrecruzam como se fossem vidas marcadas pelo destino.
Terra Caída constitui-se talvez a obra mais conhecida e lida de Potyguara, uma vez que serviu de base para uma minissérie na televisão brasileira, em rede nacional (Amazônia: de Galvez a Chico Mendes, Rede Globo, 2007). Para a renomada novelista Glória Pérez, Terra Caída é um dos mais belos romances que já se escreveu sobre os seringais. O fio condutor da narrativa é a história de Chico Bento, seringueiro nordestino, à semelhança de centenas de outros, que impelidos pela seca e motivados pela ilusão de enriquecimento rápido, vão tentar a sorte na Amazônia, sobretudo, Acre, onde se desenrola a história. Aí trava-se a luta, ora do homem contra o homem, ora do homem contra a natureza. É de Euclides da Cunha que Potyguara empresta o tema de sua obra. Terras caídas, descritas por Euclides, são enormes desmoronamentos de terra que ocorrem às margens dos rios amazônicos.
Do Seringal ao Asfalto é praticamente uma continuação de Vidas Marcadas. É o último romance de Potyguara, tendo sido publicado em 1984, sete anos antes de sua morte ocorrida no Rio. Diana agora é a figura central do romance. Mantém as mesmas características pessoais reveladas no seringal de seu pai, agora, sob a influência do novo ambiente, o Rio de Janeiro. Como assinala João Felício dos Santos, sente-se que a personagem cresceu, agigantou-se, na luta que enfrenta para vencer e se impor numa cidade grande e cheia de perigos.
A prosa de José Potyguara, como bem acentuou Bení Carvalho, apresenta-nos a Amazônia num flagrante da vida e da tragédia que, ali, se desenrolou, no entrechoque terrível da selva e do homem. Ao falar do homem acreano, Potyguara revelou o ser humano como um todo e pintou-nos um dos quadros mais belos e trágicos de nossa história, em que o ser humano, duplamente, resistiu aos entraves da natureza e da perversidade humana.
Sua obra é um capítulo imprescindível para as letras amazônicas, de modo especial, para o Acre e merece uma reedição completa, como préstimo a um homem formidável e um ficcionista ímpar. Em 18 de dezembro de 1967, pelas mãos de outro ilustre agitador da cultura acreana, Jorge Kalume, José Potyguara recebia o título de Cidadão Acreano. Somou-se mais de vinte dois anos dedicados ao Acre, terra que adotou como sua e por ela deixou-se cativar. Mesmo quando separou-se dela, geograficamente, o seu amor permaneceu, pois a levava gravado em sua mente, em seu coração, em sua alma acreana.
FONTES E REFERÊNCIAS PARA APROFUNDAR:
- POTYGUARA, José. Sapupema: contos amazônicos. Rio de Janeiro: 1942.
- POTYGUARA, José. Vidas Marcadas. Edições Fundação Cultural do Acre: Rio Branco, 1986.
- POTYGUARA, José. Terra Caída. Rio de janeiro: Editora Livraria Sant’anna, 1961.
- POTYGUARA, José. Do Seringal ao Asfalto. Rio de Janeiro: Fundo Comunitário das Indústrias da Zona Franca de Manaus, 1984.
- FARIAS, Anastácio Rodrigues de. Diversos dados sobre o município de Seabra: 1905-1943. Rio Branco: Instituto Histórico e Geográfico do Acre, 1993.
Blog Alma Acreana
No anfiteatro amazônico, dos fins do século XIX a início do XX, encenou-se talvez um dos maiores dramas, com misto de epopeia e tragédia, do Brasil: o ciclo da borracha. Que garantia, por um lado, luxo e riquezas a uns poucos, sob a opressão e exploração de uma centena de milhares de seringueiros, por outro. De repente, o que era apenas uma mancha verde, a estirar-se sem fim, metamorfoseia-se ao ver insurgir em seu meio modernas e sofisticadas cidades, com seus palacetes e teatros portentosos, a chamar a atenção do Brasil e do mundo para o novo rincão. É a partir desse pano de fundo que muitos escritores irão direcionar a sua pena: ora impressionados por aquilo que ouviram ou leram, ora por aquilo que viram e experenciaram.
Dentre tantos e importantes escritores que registraram essa época inscreve-se o nome de José Potyguara da Frota e Silva (1909-1991). Depois de formado em Direito deixou sua terra natal, a cidade de Sobral, no Ceará, e veio exercer o cargo de promotor público no Acre, então Território, mais precisamente na cidade de Tarauacá, na época, Seabra. Seus pais já residiam na região, Rita da Frota e Silva e Hipólito de Albuquerque Silva, este, um dos primeiros desbravadores dessa região, tendo sido também prefeito de Tarauacá em fins da década de 1920. Potyguara exerceu o cargo de promotor público em Tarauacá e Feijó até fins da década de 30 quando foi extinto esse Termo. Então mudou para o Rio de Janeiro, donde, anos depois retornou ao Acre, como promotor de justiça, agora, na capital, Rio Branco.
Potyguara promoveu uma verdadeira agitação na vida cultural acreana: publicou livros, escreveu várias peças teatrais, fundou revista, colaborou em jornais e exerceu o magistério num dos colégios mais tradicionais do Acre, o Colégio Acreano, que tem formado grandes nomes para a cultura brasileira. Foi um dos primeiros a voltar seus escritos para a temática acreana. Tornou-se, assim, um criador e agitador da alma acreana, intérprete de sua cultura e de sua gente.
De suas peças teatrais tem-se registro de duas: Alma Acreana, sua primeira peça, que no dia 10 de Dezembro 1930 era representada num palco improvisado do grupo escolar João Ribeiro, em Tarauacá, e versava sobre os costumes da região, com músicas orquestradas pelo maestro Mozart Donizetti, autor da música do Hino Acreano; a outra, Razões do Coração, um melodrama apresentada em 29 de janeiro de 1933 no Teatro Municipal de Tarauacá, após três dias de sua inauguração, que hoje leva seu nome.
Naqueles idos Tarauacá vivia uma efervescência cultural, com os famosos bailes promovidos pela Sociedade Esportiva e Dramática Tarauacaense, fundada em 16 de agosto de 1925, da qual José Potyguara participava ativamente. Uma pequena cidade que tinha o coração cultural no palco de seu teatro majestoso (para época e região). Ali se fazia representar desde peças teatrais a eventos beneficentes, em que ora o piano fazia-se ouvir, e os casais dançavam noite adentro nos animados bailes, ora escutava-se, nos saraus, vozes a declamar poesias.
A prosa de Potyguara não é extensa, ao todo, publicou quatro livros: Sapupema: contos amazônicos, Vidas Marcadas, Terra Caída e Do Seringal ao Asfalto. Destarte, se a produção é pequena, em nada deixou a desejar na qualidade. Como assertava João Felício dos Santos, a obra de José Potyguara, pela colorida descrição das paisagens e a fidelidade com que fotografa os tipos humanos, constitui valioso repositório dos costumes da região e autêntico documentário de uma era que passou e, todavia, continua a nos intrigar.
Sapupema: contos amazônicos marca a estreia literária de Potyguara, e veio à lume em 1942. É o único livro de contos do autor e o primeiro nesse gênero, no Acre, a ter em seu bojo exclusivamente a temática acreana. Na primeira edição o livro traz dez contos, porém, na segunda edição, em 1978, houve uma pequena modificação, o autor retirou um conto, por considerar ser mais crônica, e acrescentou dois outros, a somar onze. Como assinala Djalma Batista, no prefácio da última edição, Sapupema constitui um verdadeiro documentário da vida acreana. Os contos estão ambientados à região de Tarauacá e versam, com grande força telúrica, sobre eventos relacionados às alagações, cenas da vida cotidiana daqueles que viviam isolados na floresta, as histórias sobre índios, fatos relacionados à moral e tradição da época.
Vidas Marcadas, de 1957, abre a trilogia romanesca de Potyguara. O romance inicia sua trama numa pequena cidade cearense e se desloca para o Acre, para, novamente, se encerrar no Ceará. E narra a sina de Fernando, jovem tesoureiro da coletoria de sua cidade, um dia acusado de roubo, depois que, numa noite, a coletoria foi invadida e roubada misteriosamente. Vai preso, porém, consegue fugir para o Acre e lá permanece até encontrar pistas que provem sua inocência. Nesse ínterim muitas vidas se cruzam, muitos eventos se entrecruzam como se fossem vidas marcadas pelo destino.
Terra Caída constitui-se talvez a obra mais conhecida e lida de Potyguara, uma vez que serviu de base para uma minissérie na televisão brasileira, em rede nacional (Amazônia: de Galvez a Chico Mendes, Rede Globo, 2007). Para a renomada novelista Glória Pérez, Terra Caída é um dos mais belos romances que já se escreveu sobre os seringais. O fio condutor da narrativa é a história de Chico Bento, seringueiro nordestino, à semelhança de centenas de outros, que impelidos pela seca e motivados pela ilusão de enriquecimento rápido, vão tentar a sorte na Amazônia, sobretudo, Acre, onde se desenrola a história. Aí trava-se a luta, ora do homem contra o homem, ora do homem contra a natureza. É de Euclides da Cunha que Potyguara empresta o tema de sua obra. Terras caídas, descritas por Euclides, são enormes desmoronamentos de terra que ocorrem às margens dos rios amazônicos.
Do Seringal ao Asfalto é praticamente uma continuação de Vidas Marcadas. É o último romance de Potyguara, tendo sido publicado em 1984, sete anos antes de sua morte ocorrida no Rio. Diana agora é a figura central do romance. Mantém as mesmas características pessoais reveladas no seringal de seu pai, agora, sob a influência do novo ambiente, o Rio de Janeiro. Como assinala João Felício dos Santos, sente-se que a personagem cresceu, agigantou-se, na luta que enfrenta para vencer e se impor numa cidade grande e cheia de perigos.
A prosa de José Potyguara, como bem acentuou Bení Carvalho, apresenta-nos a Amazônia num flagrante da vida e da tragédia que, ali, se desenrolou, no entrechoque terrível da selva e do homem. Ao falar do homem acreano, Potyguara revelou o ser humano como um todo e pintou-nos um dos quadros mais belos e trágicos de nossa história, em que o ser humano, duplamente, resistiu aos entraves da natureza e da perversidade humana.
Sua obra é um capítulo imprescindível para as letras amazônicas, de modo especial, para o Acre e merece uma reedição completa, como préstimo a um homem formidável e um ficcionista ímpar. Em 18 de dezembro de 1967, pelas mãos de outro ilustre agitador da cultura acreana, Jorge Kalume, José Potyguara recebia o título de Cidadão Acreano. Somou-se mais de vinte dois anos dedicados ao Acre, terra que adotou como sua e por ela deixou-se cativar. Mesmo quando separou-se dela, geograficamente, o seu amor permaneceu, pois a levava gravado em sua mente, em seu coração, em sua alma acreana.
FONTES E REFERÊNCIAS PARA APROFUNDAR:
- POTYGUARA, José. Sapupema: contos amazônicos. Rio de Janeiro: 1942.
- POTYGUARA, José. Vidas Marcadas. Edições Fundação Cultural do Acre: Rio Branco, 1986.
- POTYGUARA, José. Terra Caída. Rio de janeiro: Editora Livraria Sant’anna, 1961.
- POTYGUARA, José. Do Seringal ao Asfalto. Rio de Janeiro: Fundo Comunitário das Indústrias da Zona Franca de Manaus, 1984.
- FARIAS, Anastácio Rodrigues de. Diversos dados sobre o município de Seabra: 1905-1943. Rio Branco: Instituto Histórico e Geográfico do Acre, 1993.
1 Comments:
Bom dia, como faço para conseguir esse documento, Rio Branco: Instituto Histórico e Geográfico do Acre, 1993.?
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