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28 julho 2011

ANEL VIÁRIO, MEIO AMBIENTE E POLÍTICA

A integração da estrada Irineu Serra ao anel viário de Rio Branco é um caso de Política que contrapõe, de um lado, um grupo de pessoas que estão corretíssimas em pleitear o asfaltamento, pelo benefício individual e coletivo para a comunidade, e de outro um grupo, aparentemente menor, que não quer o asfaltamento com base no fundamento de que isto acarretará prejuízos ambientais e culturais, e uma corrida imobiliária especulativa com grande impacto sobre a Área de Proteção que preserva as margens do Igarapé São Francisco.

Jair Araújo Facundes*

A estrada Irineu Serra (antiga Custódio Freire) integra o anel viário de Rio Branco quando de sua concepção original, há mais de 18 anos. Está quase que completamente asfaltada, faltando pouco menos de 5 km. Trava-se na atualidade grande polêmica quanto a decisão de concluir seu asfaltamento, ou mesmo de duplicá-la. De um lado há os moradores da Vila Custódio Freire (localizada no final da estrada, no ponto de encontro com a BR 364) defendendo o asfaltamento, dispondo-se a fechar a BR 364 (que dá acesso ao município de Sena Madureira e outros), a enfrentar a polícia e o governo em prol de obra que, segundo relatam, trará inúmeros benefícios à comunidade; de outro, moradores da região conhecida como Alto Santo, lugar onde morou Raimundo Irineu Serra, criador da Doutrina religiosa que utiliza ayahuasca em seus rituais. Esse grupo, segundo anunciam, igualmente se dispõe à resistência civil, se necessário com fechamento da própria estrada para impedir o acesso das máquinas, com utilização de paredes humanas para impedir a obra. E também, claro, lançarem-se ao enfrentamento com a polícia.

Pitoresca e rara controvérsia. Pitoresca porque em cidade onde todos pedem calçamento, um grupo pede para não asfaltar. Rara porque há muito tempo não se vê mobilização cidadã no Acre. Então, de início, um aplauso e um reconhecimento. Um aplauso a todos que, largando a dormência, manifestam-se e exercem a cidadania, buscando participar das decisões que lhes afetam, mobilizando-se. Um reconhecimento: todos estão corretíssimos. Está correto quem pugna pelo asfaltamento que acabará com a poeira que enche os pulmões, que valorizará exponencialmente os imóveis, permitindo a venda com excepcionalíssimo lucro. Também estão corretos os que lutam pelo não-asfaltamento, ante as desvantagens daí resultantes e segundo as razões que elencam. Todos estão corretos porque lutam por aquilo que, segundo a perspectiva de cada um, traz benefícios, e todos têm o direito de lutar por seus objetivos individuais e coletivos.

Se todos estão corretos, como deve decidir o governo? Embates de tal natureza se resolvem com Política, não com polícia. Mas a que política me refiro? Falar em política no Brasil traz à lembrança mensalão, dinheiro apreendido em aeroporto nas calças de assessores de políticos; fraudes e corrupção no Ministério dos Transportes; troca-troca de partidos; compra de legenda e de parlamentares; compra de votos com dentadura, remédios, caixas d’águas e trinta moedas (ou mesmo uma moeda). Há vários outros sentidos de política, todos aplicáveis ao caso. Um raciocínio político (mãe daqueloutro) seria conjecturar qual o grupo quantitativamente maior, e assim “deixar que o povo decida”. Essa locução bem populista sempre calha bem, e ainda traz enormes dividendos políticos-eleitorais: se é para desagradar, que se desagrade quem tem menor poder de voto e de resposta nas eleições. Aristóteles, na Política, já se referia a uma forma degenerada da democracia, compreendida como a demagogia. O exemplo clássico é o julgamento de Cristo (para quem aprecia, há um livro ótimo sobre o tema: a crucificação e a democracia). Um exemplo mais brasileiro é a revolta da vacina, em 1904, no Rio de Janeiro, quando o povo se rebelou contra a campanha de vacinação para erradicara varíola; outro, mais dramático, é que o povo elegeu Hitler. O Min. Gilmar Mendes (STF), no julgamento do caso ficha limpa, afirmou que às vezes o povo precisa ser protegido de si mesmo. Imaginemos a hipótese de deixar que pessoas sem casa, sem terreno, decidam se uma área de proteção permanente deve ser distribuída entre... pessoas carentes.

A teoria política contemporânea tem um mundo de divergência, mas possui alguns consensos que nos levam de volta a quem primeiro praticou algo que pode ser chamado de democracia: os gregos. Simplificando (e com todos os riscos que isso implica) a concepção antiga via a política como a discussão pública dos assuntos públicos, assuntos que afetam a vida das pessoas, da cidade, da polis. Esse já é um bom conceito e por si já merece ser resgatado. A modernidade deu um passinho a mais, ao considerar Política como a arena pública onde se discutem os princípios que devem reger as deliberações públicas. Esse pequeno acréscimo é crucial e distingue a democracia de sua versão degenerada, a demagogia. Democracia deixa assim de ser tão-só o governo da maioria, ou do povo (vox Populi, vox Dei): a vontade do povo é limitada por princípios. Isso impede, por exemplo, que uma maioria decida excluir uma minoria, como os nazistas fizeram com os judeus, ou que um grupo com maior poder (de fato, econômico ou social) exclua outro grupo, como os negros foram excluídos nos EUA e África do Sul, ou como as mulheres tiveram negados direitos políticos (no Brasil e EUA, entre outros), através de leis “democraticamente” aprovadas.

Essa noção de Política incomoda, por várias razões. Entre outras, porque as decisões deixam de ser um mero cálculo utilitário acerca do maior número de beneficiários; segundo porque as decisões exigem, para ser justificadas, a apresentação de princípios públicos, o que afasta aqueles cálculos políticos-eleitorais que estima quantos votos se ganham na próxima eleição e quantos se perdem com as alternativas “a” e “b”. Terceiro, que as decisões saem do capricho ou boa vontade dos governantes, dado que exige a participação da sociedade, incentivando a cidadania e rompendo com o paternalismo. Mas há vantagens. Várias. Reconhece que as pessoas têm o direito de pleitear aquilo que compreendem como positivo para suas vidas e comunidade. Insiste que as decisões que envolvem recursos e políticas públicas devem necessariamente ter a participação de quem é afetado por elas, estimulando a cidadania e a participação popular. Afasta o “canto das sereias” demagógico e populista (um livro sobre os riscos da “vontade da maioria” é Ulisses Liberto).

O “caso Irineu Serra” então é um caso de Política. Visto sob essa perspectiva, o que temos? Primeiro, temos sim um grupo de pessoas que estão corretíssimas em pleitear o asfaltamento, pelo benefício individual e coletivo para a comunidade; segundo, temos sim um outro grupo, aparentemente menor, que não quer o asfaltamento, ao fundamento de que isto acarretará prejuízos ambientais e culturais, uma corrida imobiliária especulativa com grande impacto sobre a Área de Proteção que preserva as margens do Igarapé São Francisco.

Se essas premissas são verdadeiras, permitem alguns desdobramentos. Como a questão afeta o meio ambiente, deixa de ser pertinente apenas aos grupos em debate: afeta e diz respeito a cada cidadão de Rio Branco e ao projeto de cidade que hoje e no futuro queremos. Todos são então legitimados para opinar, pois a decisão final diz respeito àpolis. Exemplifico: a margem esquerda do Igarapé São Francisco é repleta de invasões, desmoronamento, desmatamento. A margem direita ao longo da APA, e, em especial, nos limites do Alto Santo, é preservada, tem cobertura vegetal, tem fauna e flora. Essa preservação não beneficia apenas o Alto Santo, cujos moradores seriam beneficiados com a valorização de suas terras em razão do asfaltamento: beneficia a todos que usufruem do Igarapé, todos que querem que aquela encosta não desbarranque, levando casas e a própria estrada. Na própria estrada Irineu Serra há um exemplo emblemático: logo após o cemitério, e imediatamente antes da APA, houve seguidos desbarrancamentos advindos de moradias irregulares e desmates, exigindo que o Poder Público recuperasse, com grande custo, a estrada.

Há mais: como amazônida é constrangedor saber que as cidades mais arborizadas do Brasil estão no Centro-Oeste (Goiânia e seus parques), Nordeste (João Pessoa), ou que cidades densamente povoadas como Porto Alegre tenham mais parques e áreas de preservação urbanas do que Rio Branco. A decisão então diz respeito a que projeto de cidade, de plano diretor queremos para Rio Branco: queremos uma cidade que se esparrama sem parques e áreas de preservação, ou queremos, hoje e amanhã, uma cidade que tenha vários parques e áreas de preservação ambiental? A questão assim não se restringe aos moradores de um e outro lugar: afeta o lugar onde todos moramos e moraremos amanhã.

Diz-se que “o povo do Daime” é contra o asfaltamento, referindo-se à circunstância de que efetivamente ali se encontra grande comunidade ayahuasqueira. Esse é o pior dos argumentos, por preconceituoso. De fato as religiões ayahuasqueiras tradicionais não vêem o meioambiente como algo distinto do ser humano, haja vista que o núcleo da religião liga-se irremediavelmente à floresta e relaciona umbilicalmente homem, divindade e meioambiente. Isto pode ser um devaneio. Ou uma verdade atual e urgente, retratada metaforicamente na cultura de massa como “Avatar”. Pouco importa. É completamente indiferente se eles querem preservar por uma questão de cultura religiosa ou por elevado senso de humanidade e preservação: importa, para uma decisão política e necessariamente pública, se essa preservação e o princípio que lhe subjaz são do interesse de todos.

Um último argumento, igualmente recorrente: custa mais caro preservar aquela área, pois é possível fazer um outro traçado, passando ao largo da área em questão. Cabível aqui, mais do que qualquer outro, a Política: preservar o meioambiente, por princípio, custa menos que destrata-lo, a curto prazo. Atente-se: é mais “barato” jogar esgoto no rio, pois estações de tratamento d’água custam uma fortuna; mas, a curto prazo, falta água para abastecer a cidade, como o Rio Acre e o Igarapé São Francisco nos mostram. Ou, ainda: é mais “barato” fazer “lixões”, pois estações de tratamento de lixo custam caro; mas os “lixões” contaminam os depósitos naturais de água no subsolo. Um último exemplo: é mais “barato” deixar que as margens dos rios e igarapés sejam ocupados: ocorre que o desmatamento daí resultante implica desmoronamento, como os bairros “da Base”, “Cidade Nova” e “Aeroporto Velho” alertam (além dos morros cariocas, no RJ, com as ocupações das encostas).

A Política,no sentido de discussão pública das questões que interessam a todos, deve ser resgatada enquanto diálogo público com os cidadãos e partes interessadas na busca dos melhores princípios que devem informar nossa vida política, para que, ainda que percamos em um ou em outro objetivo, sejamos capazes de acreditar que a decisão proveio de razões e princípios que todos nós podemos compartilhar, ainda que não nos beneficiemos diretamente. Afinal, dividimos um mesmo espaço, e sofreremos com nossas escolhas que afetam a água, o ar, a Terra.

* Jair Araújo Facundes. Nascidoe e criado no Alto Santo, quando se podia pescar e nadar no igarapé São Francisco. Atualmente em Brasília, mas com saudades do Acre. Teve como parteira Peregrina Gomes Serra, viúva de Raimundo Irineu Serra.