HISTÓRIA DO ACRE: EVOLUÇÃO DA QUESTÃO INDÍGENA
DOS PRIMEIROS CONTATOS COM OS BRANCOS ATÉ A CRIAÇÃO E AFIRMAÇÃO DO MOVIMENTO INDÍGENA CONTEMPORÂNEO (1)
A História oculta da Floresta: Imaginário, conquista e povos indígenas no Acre
Parte 1 (6)
Por José Pimenta, Doutor em antropologia pela Universidade de Brasília, Professor do Departamento de Antropologia da UNB.
À semelhança do Brasil, o Acre compõe-se de uma grande diversidade de povos indígenas cujas situações frente à sociedade nacional também são muito variadas. Enquanto a grande maioria dos grupos se encontrarem em contato permanente ou regular com a população regional (mestiça ou branca), alguns ainda são classificados como “isolados” pelo ór gão indigenista.
Segundo Valle de Aquino e Iglesias (2000: 565), o Acre contaria com doze grupos indígenas identificados que representariam um total de cerca de 9 300 índios, ou seja, 1,4 % da população do Estado (2). A maior parte desse contingente é compos ta pelos Kaxinawá que representam cerca da metade da população indígena acreana, os outros grupos tendo geralmente uma população inferior a mil indivíduos cada um. As sociedades indígenas acreanas dividem-se de maneira desigual em duas grandes famílias lingüísticas: Pano e Arawak. Alguns desses povos encontramse também nas regiões peruanas e bolivianas fronteiriças ao Acre. Do ponto de vista da antropologia, o conhecimento sobre as sociedades indígenas do Estado é muito desigual. Se alguns povos, como os Kaxinawá ou os Ashaninka, atrairam o interesse de vários pesquisadores, as informações etnográficas disponiveis sobre a maior parte dos povos indígenas acreanos ainda são muito incipientes (3).
Os povos indígenas ocuparam um lugar marginal na histografia do Acre. Como no resto da Amazônia, o imaginário ocidental sobre a natureza e a alteridade humana projetou seus fantasmas na região acreana e nos seus primeiros habitantes indígenas. A “conquista do deserto ocidental” (Costa [1973] 1998) e a incorporação do Acre à nação revelam alguns mitos fundadores do pensamento ocidental e brasileiro sobre a Amazônia e os povos indígenas.
Focalizando o lugar do índio na historia acreana, este artigo mostra as mudanças ocorridas na situação das populações nativas, desde a chegada dos seringueiros nordestinos na região, na segunda metade do século XIX, até a afirmação étnico-política do movimento indígena contemporâneo.
A “invenção” do Acre como exemplo de brasilidade
A história da colonização do Acre está estreitamente ligada ao extrativismo da seringa. Até metade do século XIX, o atual Estado do Acre ainda era pouco conhecido e as populações indígenas da região viviam num relativo isolamento do mundo moderno. Organizadas em torno da coleta de drogas do sertão (cacau, salsaparrilha, etc.), as raras e tímidas penetrações brancas na região acreana durante o século XVIII não estabeleceram nenhum núcleo de povoamento.
Viajando pelas bocas dos rios Juruá e Purus no início do século XIX, os naturalistas alemães Spix e Martius ([1823-31] 1981) notaram em seus diários a presença de “índios selvagens” e a falta de “civilização” que, segundo os autores, caracterizava a região. Além da exploração da região e de suas riquezas naturais, as primeiras expedições oficiais ao Purus e ao Juruá, lideradas respectivamente por João Rodrigues Cametá e Romão José de Oliveira, em meados do século XIX, tinham como objetivo a atração e a pacificação dos índios.
Essas "entradas" permaneceram limitadas, subindo os rios apenas parcialmente, mas inauguraram uma série de explorações da região durante as décadas de 1850 e 1860. Entre essas expedições destaca-se a viagem, a mando da Royal Geographical Society de Londres, do geógrafo inglês William Chandless que subiu o Purus em 1864/65 e o Juruá em 1867. Todavia, a historiografia regional consagrou os nomes de Manoel Urbano, explorador do Purus em 1858, e João da Cunha Corrêa, que percorreu o Juruá em 1861, como os primeiros "desbravadores" e "descobridores" das terras acreanas.
A partir da década de 1870, a situação mudou paulatinamente com a chegada maciça de seringueiros de origem nordestina, vindos principalmente do Ceará. Com uma densidade elevada de hévea brasiliensis, a história do Acre foi profundamente marcada pela economia extrativista (3) da borracha. Em 1899, a região acreana produzia cerca de 60% da borracha amazonense, ou seja, mais de 12 mil toneladas (Costa [1973] 1998: 40). A ocupação da bacia do Purus, de acesso mais fácil a Manaus e Belém, precedeu de alguns anos à exploração de seringa no A lto Juruá. Segundo Oliveira (1992: 50), João Gabriel de Carvalho e Melo foi o primeiro colono a se estabelecer, em 1857, nas margens do Purus com 40 famílias e o fundador, em 1869, do primeiro seringal estável da região.
O ritmo da colonização do Acre se acelerou a partir de 1877 em conseqüência das grandes secas do Nordeste. A imigração de milhares de seringueiros, em busca de melhores condições de vida, organiza -se a partir das casas aviadoras de Manaus e Belém apoiadas pelo capital internacional e é geralmente apresentada pelos historiadores, como Euclides da Cunha ([1909] 1998: 92) ou Ferreira Reis (1931: 216), como um movimento “fortuito”, “espontâneo” e sem “iniciativa oficial”.
A chegada dos seringueiros constitui, para usar a expressão de Ricoeur (1978: 40), o “evento fundador” da história oficial acreana. O Acre nasce com os seringueiros e a epopéia da borracha. A história da região na última década do século XIX e no início do século XX é complexa e movimentada. A “conquista do deserto ocidental” é apresentada ao leitor como um exemplo de patriotismo, um ímpeto de brasilidade e de orgulho nacional. Juntos com as figuras emblemáticas de Plácido de Castro e o Barão do Rio Branco, os seringueiros nordestinos, foram os pilares da incorporação da região ao Estado-nação brasileiro. Através da análise da historiografia regional, podemos desvendar alguns mitos que participam tanto da ideologia nacional brasileira, como da “invenção da Amazônia” (Gondim 1994).
Preocupado em destacar alguns desses mitos funda dores da história oficial acreana, opto aqui por não descrever os eventos e as disputas entre o Brasil e os países fronteiriços para a demarcação das fronteiras internacionais e a incorporação do Acre ao território nacional. Os conflitos do Brasil com a Bolívia e o Peru, as insurreições dos seringueiros, a formação do Estado independente do Acre dirigido por Galvez, a epopéia militar comandada por Plácido de Castro, as negociações diplomáticas lideradas pelo Barão do Rio Branco que levaram progressivamente a definição das fronteiras atuais, são alguns dos principais marcos da fascinante história do Acre cuja exposição seria fastidiosa e ultrapassaria os limites deste artigo. Como antropólogo e não historiador, o meu interesse é discutir o lugar atribuído aos povos indígenas pela historiografia oficial da região, desvendando alguns mitos fundadores da “invenção” do Acre.
Na historiografia brasileira, a integração do Acre à nação é apresentada como um exemplo (4) de patriotismo e de nacionalismo. Apesar das diferenças de interpretações, os historiadores acreanos concentram, geralmente, suas análises em torno da participação do povo seringueiro e dos grandes heróis da conquista: Plácido de Castro e o Barão do Rio Branco.
Encarregado dos trabalhos de fixação da nova fronteira através da “Comissão mista brasileira-peruana de reconhecimento do Alto Purus”, no início do século XX, Euclides da Cunha ([1909] 1998), por exemplo, em seus escritos sobre a Amazônia, salientou a coragem e o patriotismo dos seringueiros nordestinos. Vivendo em condições sub-humanas, prisioneiros do sistema do aviamento e da hostilidade da floresta, os seringueiros são, na visão do autor, um exemplo de miscigenação e os bastidores do novo caráter nacional. Encarregados de domesticar a natureza e de integrar a Amazônia, “terra sem história”, à Pátria, os anônimos seringueiros concentram as virtudes do povo brasileiro e expressam através de uma luta cotidiana os grandes desafios da nação.
A utilização do patriotismo e do nacionalismo aparece também na construção mítica dos heróis da história do Acre. À imagem da República que elegeu Tiradentes como símbolo nacional brasileiro (Carvalho 1990), a epopéia acreana construiu seus venerandos heróis: Plácido de Castro e o Barão do Rio Branco.
Clique aqui para ler a parte 2
Notas:
(1) Artigo publicado na Revista Linguagens Amazônicas, n°2, pp. 27-44, 2003.
(2) Esses dados, procedentes da Comissão Pró-Índio do Acre (CPI- Acre), são geralmente os mais citados, mas não incorporam os índios vivendo nas cidades e devem ser considerados com os devidos cuidados.
(3) Existem várias etnografias sobre os Kaxinawá e os Ashaninka que foram estudados tanto do lado brasileiro como peruano. Ver, por exemplo, os trabalhos realizados no Acre por Valle de Aquino (1977), Iglesias (1994), Lagrou(1998) com os Kaxinawá e Mendes (1991), Ioris (1996) e Pimenta (2002) com os Ashaninka. Para uma apresentação geral dos povos indígenas do Estado, ver Gonçalves (1991).
A História oculta da Floresta: Imaginário, conquista e povos indígenas no Acre
Parte 1 (6)
Por José Pimenta, Doutor em antropologia pela Universidade de Brasília, Professor do Departamento de Antropologia da UNB.
À semelhança do Brasil, o Acre compõe-se de uma grande diversidade de povos indígenas cujas situações frente à sociedade nacional também são muito variadas. Enquanto a grande maioria dos grupos se encontrarem em contato permanente ou regular com a população regional (mestiça ou branca), alguns ainda são classificados como “isolados” pelo ór gão indigenista.
Segundo Valle de Aquino e Iglesias (2000: 565), o Acre contaria com doze grupos indígenas identificados que representariam um total de cerca de 9 300 índios, ou seja, 1,4 % da população do Estado (2). A maior parte desse contingente é compos ta pelos Kaxinawá que representam cerca da metade da população indígena acreana, os outros grupos tendo geralmente uma população inferior a mil indivíduos cada um. As sociedades indígenas acreanas dividem-se de maneira desigual em duas grandes famílias lingüísticas: Pano e Arawak. Alguns desses povos encontramse também nas regiões peruanas e bolivianas fronteiriças ao Acre. Do ponto de vista da antropologia, o conhecimento sobre as sociedades indígenas do Estado é muito desigual. Se alguns povos, como os Kaxinawá ou os Ashaninka, atrairam o interesse de vários pesquisadores, as informações etnográficas disponiveis sobre a maior parte dos povos indígenas acreanos ainda são muito incipientes (3).
Os povos indígenas ocuparam um lugar marginal na histografia do Acre. Como no resto da Amazônia, o imaginário ocidental sobre a natureza e a alteridade humana projetou seus fantasmas na região acreana e nos seus primeiros habitantes indígenas. A “conquista do deserto ocidental” (Costa [1973] 1998) e a incorporação do Acre à nação revelam alguns mitos fundadores do pensamento ocidental e brasileiro sobre a Amazônia e os povos indígenas.
Focalizando o lugar do índio na historia acreana, este artigo mostra as mudanças ocorridas na situação das populações nativas, desde a chegada dos seringueiros nordestinos na região, na segunda metade do século XIX, até a afirmação étnico-política do movimento indígena contemporâneo.
A “invenção” do Acre como exemplo de brasilidade
A história da colonização do Acre está estreitamente ligada ao extrativismo da seringa. Até metade do século XIX, o atual Estado do Acre ainda era pouco conhecido e as populações indígenas da região viviam num relativo isolamento do mundo moderno. Organizadas em torno da coleta de drogas do sertão (cacau, salsaparrilha, etc.), as raras e tímidas penetrações brancas na região acreana durante o século XVIII não estabeleceram nenhum núcleo de povoamento.
Viajando pelas bocas dos rios Juruá e Purus no início do século XIX, os naturalistas alemães Spix e Martius ([1823-31] 1981) notaram em seus diários a presença de “índios selvagens” e a falta de “civilização” que, segundo os autores, caracterizava a região. Além da exploração da região e de suas riquezas naturais, as primeiras expedições oficiais ao Purus e ao Juruá, lideradas respectivamente por João Rodrigues Cametá e Romão José de Oliveira, em meados do século XIX, tinham como objetivo a atração e a pacificação dos índios.
Essas "entradas" permaneceram limitadas, subindo os rios apenas parcialmente, mas inauguraram uma série de explorações da região durante as décadas de 1850 e 1860. Entre essas expedições destaca-se a viagem, a mando da Royal Geographical Society de Londres, do geógrafo inglês William Chandless que subiu o Purus em 1864/65 e o Juruá em 1867. Todavia, a historiografia regional consagrou os nomes de Manoel Urbano, explorador do Purus em 1858, e João da Cunha Corrêa, que percorreu o Juruá em 1861, como os primeiros "desbravadores" e "descobridores" das terras acreanas.
A partir da década de 1870, a situação mudou paulatinamente com a chegada maciça de seringueiros de origem nordestina, vindos principalmente do Ceará. Com uma densidade elevada de hévea brasiliensis, a história do Acre foi profundamente marcada pela economia extrativista (3) da borracha. Em 1899, a região acreana produzia cerca de 60% da borracha amazonense, ou seja, mais de 12 mil toneladas (Costa [1973] 1998: 40). A ocupação da bacia do Purus, de acesso mais fácil a Manaus e Belém, precedeu de alguns anos à exploração de seringa no A lto Juruá. Segundo Oliveira (1992: 50), João Gabriel de Carvalho e Melo foi o primeiro colono a se estabelecer, em 1857, nas margens do Purus com 40 famílias e o fundador, em 1869, do primeiro seringal estável da região.
O ritmo da colonização do Acre se acelerou a partir de 1877 em conseqüência das grandes secas do Nordeste. A imigração de milhares de seringueiros, em busca de melhores condições de vida, organiza -se a partir das casas aviadoras de Manaus e Belém apoiadas pelo capital internacional e é geralmente apresentada pelos historiadores, como Euclides da Cunha ([1909] 1998: 92) ou Ferreira Reis (1931: 216), como um movimento “fortuito”, “espontâneo” e sem “iniciativa oficial”.
A chegada dos seringueiros constitui, para usar a expressão de Ricoeur (1978: 40), o “evento fundador” da história oficial acreana. O Acre nasce com os seringueiros e a epopéia da borracha. A história da região na última década do século XIX e no início do século XX é complexa e movimentada. A “conquista do deserto ocidental” é apresentada ao leitor como um exemplo de patriotismo, um ímpeto de brasilidade e de orgulho nacional. Juntos com as figuras emblemáticas de Plácido de Castro e o Barão do Rio Branco, os seringueiros nordestinos, foram os pilares da incorporação da região ao Estado-nação brasileiro. Através da análise da historiografia regional, podemos desvendar alguns mitos que participam tanto da ideologia nacional brasileira, como da “invenção da Amazônia” (Gondim 1994).
Preocupado em destacar alguns desses mitos funda dores da história oficial acreana, opto aqui por não descrever os eventos e as disputas entre o Brasil e os países fronteiriços para a demarcação das fronteiras internacionais e a incorporação do Acre ao território nacional. Os conflitos do Brasil com a Bolívia e o Peru, as insurreições dos seringueiros, a formação do Estado independente do Acre dirigido por Galvez, a epopéia militar comandada por Plácido de Castro, as negociações diplomáticas lideradas pelo Barão do Rio Branco que levaram progressivamente a definição das fronteiras atuais, são alguns dos principais marcos da fascinante história do Acre cuja exposição seria fastidiosa e ultrapassaria os limites deste artigo. Como antropólogo e não historiador, o meu interesse é discutir o lugar atribuído aos povos indígenas pela historiografia oficial da região, desvendando alguns mitos fundadores da “invenção” do Acre.
Na historiografia brasileira, a integração do Acre à nação é apresentada como um exemplo (4) de patriotismo e de nacionalismo. Apesar das diferenças de interpretações, os historiadores acreanos concentram, geralmente, suas análises em torno da participação do povo seringueiro e dos grandes heróis da conquista: Plácido de Castro e o Barão do Rio Branco.
Encarregado dos trabalhos de fixação da nova fronteira através da “Comissão mista brasileira-peruana de reconhecimento do Alto Purus”, no início do século XX, Euclides da Cunha ([1909] 1998), por exemplo, em seus escritos sobre a Amazônia, salientou a coragem e o patriotismo dos seringueiros nordestinos. Vivendo em condições sub-humanas, prisioneiros do sistema do aviamento e da hostilidade da floresta, os seringueiros são, na visão do autor, um exemplo de miscigenação e os bastidores do novo caráter nacional. Encarregados de domesticar a natureza e de integrar a Amazônia, “terra sem história”, à Pátria, os anônimos seringueiros concentram as virtudes do povo brasileiro e expressam através de uma luta cotidiana os grandes desafios da nação.
A utilização do patriotismo e do nacionalismo aparece também na construção mítica dos heróis da história do Acre. À imagem da República que elegeu Tiradentes como símbolo nacional brasileiro (Carvalho 1990), a epopéia acreana construiu seus venerandos heróis: Plácido de Castro e o Barão do Rio Branco.
Clique aqui para ler a parte 2
Notas:
(1) Artigo publicado na Revista Linguagens Amazônicas, n°2, pp. 27-44, 2003.
(2) Esses dados, procedentes da Comissão Pró-Índio do Acre (CPI- Acre), são geralmente os mais citados, mas não incorporam os índios vivendo nas cidades e devem ser considerados com os devidos cuidados.
(3) Existem várias etnografias sobre os Kaxinawá e os Ashaninka que foram estudados tanto do lado brasileiro como peruano. Ver, por exemplo, os trabalhos realizados no Acre por Valle de Aquino (1977), Iglesias (1994), Lagrou(1998) com os Kaxinawá e Mendes (1991), Ioris (1996) e Pimenta (2002) com os Ashaninka. Para uma apresentação geral dos povos indígenas do Estado, ver Gonçalves (1991).
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