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14 setembro 2006

MANUELA CARNEIRO DA CUNHA

Apresentamos abaixo uma entrevista que a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha deu ao jornal Folha de São Paulo em 03 de setembro passado. Para os que não a conhecem, ela tem importante atuação junto a extrativistas do vale do juruá, trabalhando em conjunto com o pesquisador acreano Mauro Almeida.

Entrevista com a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha - Faroeste caboclo
Originalmente publicada na Folha de S. Paulo, Mais - 03/09/2006

Professora na Universidade de Chicago, Manuela Carneiro da Cunha afirma que governo e iniciativa privada subestimam potencial econômico da preservação da floresta

ERNANE GUIMARÃES NETO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, professora na Universidade de Chicago, é especialista em Amazônia e um dos principais nomes em sua área em âmbito internacional. Ex-presidente da Associação Brasileira de Antropologia, ela diz que a preservação da floresta não é incompatível com a presença humana nem, em certa medida, com um modo de vida contemporâneo. A Amazônia de fato estaria ameaçada, mas porque as autoridades não dão atenção às prioridades da região, disse à Folha na entrevista abaixo.

FOLHA - Até que ponto é possível modernidade na Amazônia?
MANUELA CARNEIRO DA CUNHA - Acho que viver na floresta e modernidade não são incompatíveis. Os índios ashaninkas, no Acre, se comunicam por e-mail. É possível finalmente juntar uma série de amenidades que as pessoas desejam, como televisão, comunicação fácil via internet, telefone, embora ainda esteja para ser achada uma solução energética adaptada aos lugares de floresta. As que existem são relativamente caras. Isso não resolve uma série de outros problemas, como o escoamento da produção, que sempre foi feito por rio, e muito bem feito. Antigamente, o escoamento da produção era mais viável, por várias razões, entre outras porque havia muito comércio nos rios, muitos barcos subindo e descendo. Isso é um serviço público que deveria ser implementado.

FOLHA - Mas a facilidade de acesso não acelera o processo de destruição?
CUNHA - Há o famoso arco do desmatamento, que é o arco da soja, um ciclo que começa com grilagem, madeireiros, depois tem arroz ou outras coisas e depois a soja ou o pasto. Ocupa Rondônia, norte de Mato Grosso, sul do Pará, sul do Amazonas e está se espalhando. É um quadro muito preocupante. Precisa-se pensar, antes de mais nada, em ciência e tecnologia para a floresta em pé. A Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária] foi no passado extremamente importante e útil para que a soja pudesse ser plantada no cerrado. A Embrapa está toda a serviço da agricultura e da pecuária, então precisaríamos de uma Embrapa da floresta. Há uma enorme riqueza que pode ser obtida na floresta.

FOLHA - Se se investisse na exploração de produtos e patentes da Amazônia, cresceria o interesse pela preservação?
CUNHA - Ciência e tecnologia para os produtos da floresta, para os saberes tradicionais, é uma mina que não está sendo explorada e que pode estar sendo irremediavelmente perdida se prosseguir o modelo atual de exploração. Há o projeto da rodovia BR-319, de Manaus a Porto Velho. Ela irá atravessar áreas intocadas e indígenas, extremamente importantes para a conservação. Como é possível e por que uma estrada dessas? Deve se justificar por questões políticas, acredito. Por um lado, o Brasil está em posição vantajosa para negociar compensações pela conservação da floresta (o Ministério do Meio Ambiente parece estar negociando isso) e, por outro, o governo como um todo não tem uma política clara de prioridades. Há conservação com gente e sem gente. No Brasil, o modelo é o de conservar com gente, tradicional e "neotradicional" -pessoas que têm o compromisso de usar a floresta de modo não-predatório- e isso é perfeitamente possível. Um exemplo foi a extração da borracha, que, quando dava dinheiro, conservou a floresta. Volto à questão inicial: a maior modernidade é pensar na produção que a floresta pode ter, de biodiversidade e substâncias ainda mal conhecidas. É preciso fazer um grande investimento em ciência e tecnologia para viabilizar uma "Embrapa da floresta em pé", viabilizar uma outra economia, compatível com a conservação e que mantenha as populações. Não tem o menor sentido expulsá-las de uma área que têm manejado bem.

FOLHA - O que pode ser feito para conter a entrada de pessoas não comprometidas com a conservação na região amazônica?
CUNHA - É uma política do governo. Acho que só se devem permitir as atividades neotradicionais, que têm compromisso explícito de que certas atividades não serão desenvolvidas.

FOLHA - Os governantes estão perdendo a oportunidade de lucrar com o potencial da biodiversidade em favor de outras atividades?
CUNHA - Estão vendo alternativas de curto prazo, com tecnologia que já existe e não foi desenhada para a Amazônia. A Amazônia está sendo destruída sem que tenhamos alternativa tecnológica de exploração de seus recursos.

FOLHA - O que a sra. pensa de governantes que acusam as regulamentações ambientais de bloquearem o desenvolvimento?
CUNHA - Há mil retóricas que são usadas. Por exemplo, alguns Estados do Norte se queixam de que não podem fazer políticas adequadas porque grande parte das terras são da União. É em larga medida uma questão retórica. É preciso fazer um pacto em que se analise a importância dos vários fatores de que estamos falando. Existem reclamos; por exemplo, a questão do escoamento da produção de lá é legítima. Há que encontrar soluções. O que tenho visto é o contrário. Ficou patente na questão da BR-163, Cuiabá-Santarém. Deve acontecer o mesmo na BR-319: anuncia-se uma obra e, já então, se deslancha um processo irreversível de grilagem generalizada. Começa a violência contra as populações locais, que são expulsas. Começa um faroeste inadmissível.

FOLHA - Como fica a relação entre a população local e os recém-chegados?
CUNHA - Tenho visto muita expulsão da população local, de várias maneiras. Compram as posses, pressionam... Isso é muito conhecido no Brasil. E criam-se cidades extremamente violentas. Estive em Novo Progresso (PA) há um ano e meio, e estava em situação de desobediência civil. Espero que a situação tenha mudado. Falta presença do Estado, da Polícia Federal, da Justiça, do Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária]. Há iniciativas pontuais, que muitas vezes não têm seqüência. O Ministério do Meio Ambiente tem tentado se articular com outros ministérios para ações conjuntas, mas ainda estamos longe do ideal.

FOLHA - Com a invasão da soja ou do gado e das novas cidades, a Amazônia tende a desaparecer?
CUNHA - Será outra Amazônia.

FOLHA - O que a sra. acha da proposta de comprar terrenos na Amazônia para preservá-la [como fez o sueco Johan Eliasch, presidente da empresa de material esportivo Head e dono de 160 mil hectares de floresta no Amazonas]?
CUNHA - Acho ridículo por várias razões. É muito válido comprar para preservar, desde que não se ponha a população para fora. Mas esse tipo de visão é uma visão sem gente. Querem preservar tirando as pessoas. Isso é um absurdo. Mas as empresas que já têm grandes extensões da Amazônia têm responsabilidade de conservação. Sou contra a idéia de uma conservação sem a população.

(http://www.ecodebate.com.br/)