Medicina indígena no Acre une tradição e ciência
Por André Gardini 19/09/2006
A participação do conhecimento médico tradicional no sistema de saúde indígena é cada vez menor. Entre os inúmeros fatores que podem influenciar esse quadro destaca-se a falta de diálogo entre as ciências médicas e os conhecimentos tradicionais. “O conhecimento produzido pela medicina científica é excludente, pois é entendido como a verdade absoluta”, analisa Maria Evanizia, gerente de planejamento estratégico da Secretaria dos Povos Indígenas do Acre. A Secretaria aposta na valorização da medicina indígena como forma de enfrentar os problemas de saúde dos povos da região.
A legitimidade dos saberes médicos de índios e profissionais de saúde está em jogo nessa questão: “é muito complicado para um médico que passa 10 anos em uma universidade querer respeitar um pajé, por exemplo. Isso tem sido, de certa forma, um empecilho”, afirma Evanizia, e continua, “eu acredito que por conta disso, algumas comunidades e regiões têm se enfraquecido nos usos das práticas tradicionais, pois algumas pessoas preferem usar uma pílula do que ir à floresta e colher uma erva”. A medicina científica ganha ainda mais potência de verdade quando pensada no contexto da globalização econômica e do fortalecimento da indústria farmacêutica.
Evanizia conta que os problemas relacionados à saúde indígena são bastante discutidos. “No Acre somos 14 povos, cada um com uma realidade diferente, cada centro indígena com uma característica própria. Somos aproximadamente 15 mil indígenas só no estado”. Como uma integrante do povo Toyanawa, Evanizia destaca que as políticas públicas de saúde indígena do estado procuram trabalhar respeitando o conhecimento científico e o tradicional. Uma aposta no diálogo entre esses conhecimentos como forma de garantir a permanência das práticas tradicionais entre as comunidades. A união entre cultura e ciência poderia também minimizar a hierarquia que se estabelece entre esses saberes. “Nós entendemos que ambos são conhecimentos e se inter-relacionam, ou seja, o conhecimento científico depende do tradicional e o tradicional do científico”.
O Acre tem em sua história dados preocupantes. Em 2004, o estado registrou o maior número de mortalidade infantil entre os índios. Apenas o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do Alto Rio Juruá (AC) chegou a 115 mortes por mil nascidos vivos, enquanto no conjunto da população brasileira, o índice de mortalidade infantil fica em torno de 29 mortos em cada mil crianças nascidas vivas (Censo IBGE 2000).
A Fundação Nacional de Saúde (Funasa), desde 1999, é responsável pela atenção à saúde dos povos indígenas. Nesse sentido, Evanizia dispara algumas críticas quanto à forma de gerenciamento dos recursos pela Funasa. Ela explica que o programa de saúde usado pelos índios é o Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar da Funasa ter um recurso específico para a saúde dos povos indígenas, o atendimento aos índios é feito dentro do SUS. “Estamos sentindo um certo conflito, porque quando foram escolhidos os agentes de saúde para fazerem a capacitação dos agentes da comunidade, não foram levadas em consideração as estruturas que existiam nas aldeias. O pajé era um médico da aldeia, assim como as parteiras. Isso gerou um certo descontentamento dos pajés”, explica. Para ela, a saída para esses problemas é fortalecer a cultura indígena, desde o artesanato e a dança, até as práticas médicas tradicionais, e reconhecê-la como produtora de saberes legítimos. (Leia mais na reportagem Saúde: Índio quer controle social)
No Alto do Rio Negro
O estudo de caso feito na região do Alto Rio Negro pelo pesquisador Renato Athias, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), indica que as mortes entre os índios naquela região podem estar relacionadas à redução da transmissão de saberes médicos tradicionais entre eles. Em sua opinião, a união entre o saber tradicional e o saber científico é necessária e pode trazer benefícios para profissionais da saúde e povos indígenas. “Após todos esses anos de forte presença missionária, pode-se perceber que a medicina indígena não foi de todo destruída ou abandonada. Na realidade, convive até certo ponto pacificamente, e talvez, diríamos, complementa o sistema médico ocidental, isto é, o oficial e biomédico com os sistemas indígenas de cura”.
Athias, da Associação Saúde Sem Limites, informa que existe uma procura crescente dos remédios de farmácia (como medicação analgésica e para verminoses) entre os indígenas. A medicação mais procurada é a dipirona e o AAS. “Muitos dizem que preferem tomar os remédios dos brancos para passar a dor, do que utilizar o que normalmente usam, uma planta conhecida como pinu-pinu, um tipo de urtiga, que passando no corpo, sente-se um alivio das dores”.
A Funasa realizará entre os dias 22 a 24 de novembro (2006), em Brasília-DF, a 1° Mostra Nacional de Saúde Indígena. O objetivo, informa o site da fundação, é colocar em prática as propostas que surgiram da 4° Conferência Nacional de Saúde Indígena, que aconteceu em Rio Quente-GO, em março.
(*) Originalmente publicado na ComCiência - Revista Eletrônica de Jornalismo Científico
Nota do blog: agradecemos ao colaborador e leitor do blog Luis Soares pelo envio do artigo.
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