Google
Na Web No BLOG AMBIENTE ACREANO

27 setembro 2006

A CULTURA, AS CIDADES E OS RIOS NA AMAZÔNIA

José Aldemir de Oliveira (*)
Cienc. Cult. v.58 n.3 São Paulo jul./set. 2006

Parte 2 (clique aqui para ler a parte 1)

DA PAISAGEM NATURAL AO ESPAÇO DA CULTURA
Na Amazônia as espacialidades urbanas, especialmente das cidades localizadas à margens dos rios, foram impostas, o que não significa reconhecer, de um lado, que estas formas não são homogêneas; de outro, que guardam resíduos de relações pretéritas como sinais de resistência. Na verdade, essas espacialidades revelam as diferentes estratégias dos diversos agentes produtores do espaço urbano que buscam, a partir das condições concretas, defender seus interesses, o que leva a compreender a paisagem como o resultado das determinações das políticas do Estado, das relações sociais de produção e, mais que isso, como depositária de vida, sentimentos e emoções traduzidas no cotidiano das pessoas. Tais relações concretizam-se em espacialidades real ou imaginária, quer as cidades estejam na beira do rio, na várzea, quer na terra firme.

A análise das pequenas cidades amazônicas deve levar em consideração a floresta e a água como ponto de partida e não de chegada. Nas pequenas cidades amazônicas, localizadas no meio da floresta e às margens dos rios, o habitante deste espaço pode ser levado inconscientemente a estabelecer a dimensão de espacialidade a partir do encantamento da realidade física.

Entretanto, a generosidade da paisagem natural esvai-se e o que fica é o construído artificialmente. É claro que o conjunto formado pelos sistemas naturais existentes numa região como a Amazônia ainda é muito importante e não pode nem deve ser desconsiderado, porém há que se concentrar as análises no que a elas acrescem os homens. Do ponto de vista geográfico, há uma existência natural, todavia, a existência real somente lhe é dada por causa das relações sociais (4).

AS PEQUENAS CIDADES: ESPACIALIDADES E CONTRADIÇÕES
Está em curso um processo visando tornar essas pequenas cidades da Amazônia cada vez mais iguais, com a tendência de que as suas formas escapem à história e à cultura do lugar, tornando os homens e as mulheres reféns da lógica de um mundo distante, das possibilidades ilimitadas como se fosse possível reinventar formas iguais em qualquer lugar. Busca-se projetar formas espaciais para unificar o ambiente simbólico, visando atender aos interesses de determinados segmentos da sociedade, conseqüentemente substituindo a especificidade histórica de cada lugar (5).

Essas novas temporalidades e espacialidades são alheias ao lugar, visto que o poder, a produção e a riqueza são projetados para o mundo enquanto a experiência, a vivência, a cultura e a história são enraizadas nos lugares. Em decorrência disso, pode-se ter acesso às mais avançadas tecnologias, que são vendidas como sinais de progresso e de crescimento, mas a maioria não tem sequer as necessidades básicas atendidas.

As pequenas cidades amazônicas apresentam essa contradição: são articuladas a relações pretéritas caracterizadas pela inércia e, ao mesmo tempo, articuladas a dinamicidades contemporâneas que as ligam ao mundo, especialmente a partir da biodiversidade e da sociodiversidade. Essa contradição, que de resto não é exclusiva da Amazônia, possibilita as simultaneidades nas inovações e sinais da modernização na paisagem (especialmente ligados à comunicação, mas também aos equipamentos).

Todavia, há resistências, e, como conseqüência, essas pequenas cidades representam, neste início de século XXI, uma das mais raras permanências, refletindo e iluminando miticamente a cultura. Cultura que, como assinala o poeta João Paes Loureiro, continuará a ser uma luz brilhando, e que persistirá mesmo com as chamas das queimadas nas florestas, com a extração dos recursos naturais, com a poluição dos rios e com a mudança das relações dos homens entre si. Nas pequenas cidades amazônicas ainda há um tempo para a vivência de uma forma ilimitada, "com seres sobrenaturais, porque somente a imaginação consegue ultrapassar os horizontes. Foi a boiúna que, ao agitar-se, fez o barranco ruir; o curupira fez o caçador perder-se na mata; a iara fez afogar-se de sedução aquele que, aparentemente, não tinha razões para morrer no rio; a tristeza não veio da alma, mas do canto da acauã"(6). Há nesses aglomerados a inércia caracterizada pelos tempos lentos e, concomitante, a dinamicidade dos tempos rápidos (7), que caracteriza a inserção da Amazônia no mundo. A análise desses dois aspectos (a inércia e a dinamicidade), ao mesmo tempo antagônicos e complementares, necessita de pesquisas de campo acuradas, porque elas podem clarear o papel das cidades ribeirinhas e, especialmente, se esse novo momento da Amazônia representa um processo caracterizado pela dinamicidade ou se, ao contrário, significa a permanência na inércia.

Outra questão a ser considerada é que as estruturas e as dimensões socioespaciais na Amazônia hoje são compartilhadas de modo diferente ao que era até então. Novos sujeitos, indígenas, movimentos sociais, empresas, ONG’s e mídia produzem espacialidades diversas e articulam as estruturas preexistentes quase sempre locais às dimensões globais. No curso dessa articulação, o poder se dilui entre os vários sujeitos, grupos de indivíduos, minorias étnicas, pacifistas, instituições que não se articulam apenas ao Estado nacional e, em alguns casos, já atingiram um grau de relações supranacionais.

Aqui as pequenas cidades amazônicas imersas numa inércia de tempos lentos ganham papel relevante, visto que comportam elementos da natureza ainda não conhecidos e, como esse processo ainda necessita de uma base logística, estas cidades podem representar essa base, visto que estão ligadas ao mundo, por exemplo, pelas telecomunicações. Compreender esse processo em curso, e verificar se ele se conclui, significa a busca de desvendar a Amazônia.

AS PEQUENAS CIDADES COMO ESPAÇO DA ESPERANÇA
As pequenas cidades amazônicas não são apenas produtos do nosso tempo, mas de tempos pretéritos cristalizados na paisagem. Por seu turno, a paisagem urbana não se resume ao conjunto de objetos, pois contém modos de vida os quais, como os primeiros, são resultantes das relações de produção continuamente produzidas, reproduzidas, criadas e recriadas, contendo as dimensões da sociedade de cada tempo. Essa paisagem urbana também comporta as coisas da natureza. As cidades de hoje são lugares bem diversos das cidades pretéritas, não só porque o conjunto arquitetônico e a infra-estrutura foram profundamente modificados. Foram mudados também a terra, a floresta e os rios, mas, sobretudo, e de modo considerável, a cultura, quer pela dinamicidade, quer pela estagnação.

Para compreender esse processo é preciso considerar a paisagem para além do aparente. Para tanto, é preciso atravessar o rio, pois, do outro lado, há sempre a esperança. A complexidade contemporânea não permite compreender as novas cidades apenas relacionando-as à crise, emersa nos diagnósticos das carências, mas também como virtualidades, como possibilidades.

Por isso, é necessária a superação de formas simplistas de interpretações e de intervenções, reconhecendo que essas práticas são engendradas a partir de condições objetivas e estão mediadas pelas contradições e conflitos da sociedade. É preciso apontar para outra visão de Amazônia que não seja apenas naturalizar o que é social, tampouco desconhecer as suas características imanentes, considerando social o que é natural. Ora, esse equívoco foi o que norteou o modo de intervenção na Amazônia que predomina até hoje. Tal intervenção leva à adoção de estratégias para a resolução de questões que, na maioria dos casos, não são as mesmas das populações locais. Concebida dessa forma, a política de Estado ou de governos define, orienta e estabelece mecanismos operativos para a Amazônia, fincados em estratégias que visam ao crescimento econômico, mas não contribuem para o desenvolvimento de sua população, pois que desrespeitam a natureza da Amazônia e principalmente a cultura dos amazônidas.

As novas ações postas para a Amazônia, e especialmente para as pequenas cidades, deveriam contribuir para superar a visão funcional e caricatural de que a Amazônia é só fronteira e fonte de recursos inesgotáveis. A Amazônia é muito mais do que isso; é, em todos os cantos, o lugar de encantos. É uma realidade complexa e contraditória, ultrapassando a paisagem natural ou artificial aparente, para circunscrever-se em sentimentos e emoções.

As ações deveriam buscar as condições da urbanidade, o que significa articular as políticas públicas, visando remir os espaços coletivos como signo da nova cidade, não só como funcionalidade da produção e da circulação, mas como lugar das pessoas. Além disso, deve-se perseguir a busca de um tempo para os encontros que ultrapassassem o encontro para a troca. É preciso criar tempos e espaços para a vida em toda a sua dimensão. Isto passa pelo resgate da cidadania que exige a concretude de uma vida decente, que pressupõe o acesso às condições dignas de vivência. Ainda que a ausência de bens e serviços seja abominável, também são intoleráveis a falta de tempo, de lazer, de informação para os que moram nas pequenas cidades dos beiradões. "Uma vez que o espaço não é o reflexo da sociedade, é sua expressão"(8), as mudanças só ocorrerão a partir das transformações da sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este é um texto sem conclusão, pois pesquisas necessitam ser feitas e, mesmo quando concluídas, revelarão uma verdade, não a verdade. O único ponto a destacar é que as pequenas cidades amazônicas revelam espacialidades que não coincidem com o inventário dos objetos no espaço nem do discurso sobre a sua representação. Neste sentido, pode-se concluir que a espacialidade oculta as conseqüências, o que indica a construção de pesquisas que considerem a Amazônia não apenas como uma área a ser conhecida, mas como conhecimento do lugar, capaz de revelar formas e conteúdos espaciais que foram transformados e/ou permaneceram. Compreender a Amazônia a partir das pequenas cidades é muito mais do que analisar a forma das cidades, significa compreender a vida das pessoas simples, de onde brotam dimensões de espacialidades que quase sempre são desconsideradas, pois estão eivadas por coisas simples, transmutadas numa sensação de extrema obviedade, pela freqüência do estar sempre por aí. Neste sentido, para além das formas das cidades, há homens e mulheres para os quais a história e a geografia das cidades amazônicas é feita e não esperada. Há outro jeito de fazer e outro modo de esperar. Há outros tempos-espaços mediados por outra ordem, outra razão e outros sentimentos.

Nas pequenas cidades amazônicas, a natureza é importante. Porém, muito mais do que pelo fatalismo de uma vida governada pela determinação da natureza, há a cultura amazônica que se estrutura como lógica e como razão, mas também como sonho, esperança e resistência.

(*) José Aldemir de Oliveira é geógrafo, professor titular do Depto. de Geografia da Universidade Federal do Amazonas, líder do Grupo de Pesquisas e Estudos das Cidades na Amazônia Brasileira, bolsista do CNPq.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. Calvino. I. Cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
2. Amorim Filho, O. "Evolução e perspectivas do papel das cidades médias no planejamento urbano e regional". In: Andrade, T.A. e Serra, R. V. Cidades médias brasileiras. Rio de Janeiro: IPEA, 2001. pp. 1-34.
3. Ribeiro, M. A. C. A complexidade da rede urbana amazônica: três dimensões de análise. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998. (Tese de Doutorado).
4. Santos M. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1997, p. 51.
5. Castells, M. A sociedade em rede. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999. p. 441.
6. Loureiro J. P. "Tradição, tradução, transparências". Somanlu Revista de Estudos Amazônicos. Manaus. PPGSCA – UFAM, ano 2, n. 2. pp 117-126. 2002.
7. Santos M. op. cit. pp 266-267. 1997. 8. Castells, M. op. cit. p. 435. 1999.