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05 outubro 2006

NO TEMPO EM QUE O ACRE NÃO TINHA ÍNDIOS...

Vale a pena ler sempre (*)

Vássia Vanessa da Silveira



O sertanista José Porfírio de Carvalho chegou ao Acre no final de 1974. Enviado pela Funai "para não fazer nada", Carvalho passou três anos no estado - é dele o primeiro levantamento que apontou a existência de índios no Acre. Nesse período, enfrentou fazendeiros, denunciou um general em plena ditadura e foi responsável pela prisão do lendário Pedro Biló, um matador profissional de índio.

Hoje, aos
55 anos, ele desenvolve projetos indigenistas em Roraima e no Pará. Casado com Maria José e pai de três filhos,
o sertanista esteve no começo de agosto em Rio Branco.
Ele veio a convite do governo do estado para discutir ações mitigadoras ao asfaltamento da BR-364, que passa em área Katukina, ocasião em que falou à outraspalavras.

Na
entrevista, Carvalho lembra como "tomou na marra" a fazenda de Diogo de Melo, fala das ameaças de morte que recebeu e da briga com setores da Igreja.
Primeira Parte
O senhor teve uma atuação muito forte aqui no Acre. Enfrentou fazendeiros, prendeu um matador de índio.....O Pedro Biló. Como foi essa experiência?
Eu vivi aqui momentos muito importantes. Tive a oportunidade de vir pro Acre numa época muito difícil, ainda na ditadura. Vim praticamente exilado porque o pessoal da Funai não me tolerava mais, era tido como um criador de problemas. Porque eu realmente defendia os direitos dos índios, sem arrodeios. Então eles me mandaram para o Acre para que eu não fizesse nada. Aqui era um local que não tinha índio, não tinha Funai e nunca tinha tido SPI, o governo estadual não reconhecia, a sociedade não reconhecia a existência de índios aqui no Acre. Oficialmente, aqui não existia índio.

O senhor foi a primeira pessoa a fazer o levantamento dos índios no Acre...
Primeiro eu tinha que dizer que existiam os índios, e eu não achava. Aqui na cidade eu andava nas ruas pra ver se achava alguém parecido e nada. Aí eu resolvi subir os rios. Olhava pro mapa e tinha o Peru com índios, o Amazonas com índios e o Acre não tinha. Eu subi todos os rios e os índios estavam lá. Só que eles não estavam aldeados, a maioria não estava. Eles estavam empregados, morando de "favores" nos seringais. Eram mão-de-obra barata e até quando iam vender o seringal diziam: "eu tenho lá tantas cabeças de índios". Então nós encontramos os índios e começamos a notificar, e aí criamos um certo problema aqui no Acre porque precisava definir as terras deles e isso ia de encontro a todo o interesse agrário que existia aqui. E naquela fase existiam os financiamentos do Banco da Amazônia, o BASA, para o plantio de seringueira e os sulistas estavam chegando aqui e comprando os seringais e pegando os financiamentos. Era um golpe, porque eles compravam o seringal por uma moeda que hoje seria como 10 mil reais e conseguiam 60 de financiamento. Ele não plantava a seringa e ia embora com o dinheiro. Isso era uma corrida doida e onde aparecesse índio eles não conseguiam mais financiamento porque precisavam de uma certidão negativa da Funai. E aí foi um problema, eu recebia muita pressão. Eu dizia que tinha índio e o pessoal dizia que não.

Como a Funai reagiu a essa notícia?
A Funai, no primeiro momento, reagiu contrária ao meu achamento. Eu tive que enfrentar a Funai. Mas fui preparando os primeiros relatórios, identificando as aldeias, incentivando os índios a se reagruparem e fomos tomando na marra algumas terras.

Antes desses relatórios da Funai terem saído, existiam outras organizações trabalhando com os índios?
Não, ninguém. Os índios não existiam mesmo. O único trabalho que tinha aqui era o do padre Paolino que subia o rio Purus fazendo desobriga, ele ia rezar pelas almas dos mortos, batizar os pagões, levar algum remédio. Mas não era um trabalho indigenista. Era um trabalho cristão que ele fazia tanto pra índios como não índios.

Como foi aglutinar outras pessoas na luta em defesa dos direitos dos índios?
Eu recorri à universidade e iniciamos um processo de discussão nas escolas. Fizemos um boletim informativo. Tinha uma pessoa, o Gregório, que me ajudou muito. O Elson Martins. Foram pessoas que ajudaram na divulgação desse trabalho: existia índios e nós precisávamos de uma política indigenista e essa política tinha que ser calcada na defesa da terra e dos direitos dos índios. Foi quando o Cimi fez a primeira assembléia aqui. Aí nós trouxemos o primeiro funcionário da Funai, que funcionava dentro da minha casa, o José Meirelles. Começamos a identificar as primeiras terras, tivemos a primeira briga com os fazendeiros, a primeira tomada de terras.

E a primeira briga com os fazendeiros?
Foi na área do Kamikuã. A história do Kamikuã é belíssima e eu me sinto privilegiado por ter participado dela. Eu encontrei os índios dispersos em Boca do Acre e não tinha um espaço para os índios, tudo era seringal. Só existia uma área ali que tinha mato, uma nesga de terra que daria uns 40 mil hectares. Eu conheci o dono daquele seringal, era um homem chamado Mário Diogo de Melo, escritor. E esse homem me deu de presente um livro dele. E esse livro contava a história do pai dele, o título do livro era De Uruburetama às barrancas do Acre. Ele contava com muito detalhe a chegada do navio naquele local, onde era o seringal dele, e que lá naquela praia tinha um índio em pé com um penacho na cabeça, seu cocar. E aquele índio chamava-se Kamicuã e recebeu o pai dele de braços abertos e abrigou, deixou o pai dele descarregar e montar o seringal, que era , naquela época, a casa dele. Só que ele não fala mais no livro dos índios, ele não conta no final porque os índios não estavam mais lá. Então ao encontrar aquela situação, que era uma confissão de que aquela terra pertencia aos índios, eu tive uma idéia: transformar aquele seringal na primeira terra indígena do Acre. E eu tinha que tomar dele, ele tinha título, tinha registrado. Aí nós fomos conversando com os índios Apurinã. Eu conversei com 52 famílias espalhadas por vários seringais. Não estavam lá no seringal dele não, lá não tinha um índio. E nosso plano era o seguinte: num dia "x", todas as 52 famílias iriam romper com o passado, sair dos seringais, tocar fogo na sua própria casa pra poder não voltar mais e ir lá pro Seringal Mário Diogo de Melo que, mais tarde, eu coloquei o nome de terra indígena Kamicuã. E aconteceu, naquele dia que nós marcamos. Foi a coisa mais linda que eu já vivi. Eu vi vários índios, mulheres, crianças, caminhando, colocando fogo em suas próprias casas pra não voltar e lá nós fundamos a República do Kamicuã e hoje lá funciona o Posto Indígena Kamicuã.

Essa terra hoje é demarcada?
Demarcada, homologada, registrada.

E a terra do João Sorbini?
Daí nós fomos pra lá. No 45 foi também uma história interessante porque o João Sorbini tinha invadido a terra indígena Apurinã, loteado e vendido a terra. Montou um hotel que era pra poder alojar os colonos que ele ia trazer do Paraná e fez uma pista de pouso - ele tinha avião, ônibus... E reservou pra ele uma área de 40 mil hectares e o resto ele ia vendendo. A terra dos índios! Ele fez uma maracutaia e registrou no cartório as terras que ele tinha ocupado, que tinha roubado dos índios. E deu alguns lotes para os índios! Você imagina, como ele era sabido: tomou 200 hectares dos índios e dava dez hectares pra cada família. E dava um título, era um homem muito bondoso... Compadre dos índios!Um dia, ele me convidou e eu fui lá. Ele disse "Carvalho, quero dar uns títulos para os índios e quero que você vá me ajudar, quero que você assine também recebendo os títulos". Aí eu fui no avião dele. Chego lá, ele me coloca dentro de uma caminhonete e me leva pra casa de um índio: tá aqui o índio. Fala pra ele, índio, como é que eu lhe trato. Aí o índio respondeu "ele me trata muito bem, me deu esse lote de terra, comprou máquina de costura, me financiou, fez o desmatamento aqui, me fez plantar". O índio tava morto de feliz. Fomos com outro índio: a mesma coisa. Aí na saída eu passo pela porta da casa de um índio e pergunto: e aquele ali" "Ah, aquele não gosta de mim". Mas eu quero falar com ele. Quando eu chego lá, o homem me recebeu mal. Disse que eu estava vendido, estava andando com fazendeiro, que eu era igual aos outros. Eu disse "eu sou da Funai"e ele respondeu: pois é ladrão igual aos outros. E me acompanhava nesse dia uma pessoa que eu tinha levado, que me acompanhava icógnita, que era o presidente da Funai, o general Smarth de Oliveira. Aí ele contou toda a história, que o homem tinha chegado, tinha tomado tudo. E o presidente da Funai escutando. Aí ele contou que ele tinha tentado derrubar a casa dele, e aí o general se identificou: eu sou o presidente da Funai e isso vai acabar. Tá vendo esse homem barbudo aqui" ele tem um prazo até outubro - nós estávamos em julho - pra retomar a terra de vocês. Se ele não fizer isso até lá está aqui o meu telefone, o endereço. Mas general, como é que eu vou retomar isso aqui" Está registrado em cartório... E o general: não sei, se vire. É certo que eu tomei mesmo. Eu e os índios. Nós nos armamos de espingarda e tivemos ajuda clandestina da polícia federal. Houve troca de tiros mas não morreu ninguém, felizmente.

O senhor recebeu ameaças de morte?
Várias vezes. Não só ameaça de morte como também tiro. E eu também ameacei os outros. O cabeça branca, o João Sorbini, quis me matar. Me ameaçava todo dia. Todo finalzinho de tarde ele ligava pra onde era a sede, o telefone tocava e ele dizia assim: "barbudo, hoje tu não chega em casa. Te mato antes de tu chegar em casa". E o que aconteceu" Aquilo foi enchendo a minha paciência. Eu não tinha medo, a polícia federal botava gente nos quatro cantos aqui pra me defender do ataque. Eu fui enchendo a paciência, porque a polícia não podia ficar a vida toda me protegendo. Aí uma vez cheguei no aeroporto, abri a porta e estava o cabeça branca dizendo: "no dia que eu encontrar o barbudo eu mato ele". Ele tava dizendo isso, e eu bem atrás dele. Sabe o que eu fiz" Dei-lhe a mão no pé do ouvido dele, ele caiu, eu me agarrei com ele. Eu também disse pra ele: "eu corto tua orelha". Nunca cortei a orelha de ninguém, mas ameacei. Aí ele continuou querendo me matar e teve um outro dia que ele me encheu muito a paciência. Nesse tempo eu já tinha comprado uma caminhonete pra Funai - uma rural - e nós tínhamos apreendido umas armas e eu nunca usei armas. E lá na sede tinha um rifle 44 e era um sexta-feira e o cabeça branca me ligou umas três vezes nesse dia: "hoje tu vai chegar em casa no caixão". Aí eu sabia de um bar que ele sempre freqüentava lá. Sabe o que eu fiz? Perdi a cabeça, peguei o rifle 44 cheio de bala e disse "quem vai matar o cabeça branca hoje, sou eu". Entrei na caminhonete e fui lá pro bar matar ele. De longe eu cheguei e avistei o cara com o chapéu branco. Tava lá o homem. Eu nem encostei o carro, parei no meio da rua e desci com o rifle na mão. Engatei logo a bala pensando em dar um tiro bem no meio do peito dele. Quando o pessoal viu eu descer com o rifle na mão, nego corria pra tudo quanto era lado. Todo mundo sabia da minha briga com ele. Mas não era ele. Era outro homem. Quando o dono do bar me viu, gritou: "não é o cabeça branca!" (risos)

E se fosse?
Eu matava, acho que matava. E naquela hora eu vi que estava entrando em parafuso. Aí pedi desculpas e entrei no carro. Naquele dia foi um dia muito ruim pra mim, eu podia ter morto ele. No outro dia eu fui na Polícia Federal e denunciei ele mais uma vez.

O senhor já era casado nessa época?
Já. A minha casa era a Funai. Eu estava lembrando hoje que eu trouxe um menino com um pau enfiado no meio da barriga e esse menino veio pro hospital. Depois de tirado esse pau, eu não tinha onde deixar o menino e levei lá pra casa. E ele pegou sarampo e a minha filha, que estava recém-nascida, pegou também sarampo. Então eu e minha mulher cuidamos de dois.

Entrevista continua...

(*) Artigo originalmente publicado na versão on-line da revista cultural "Outras Palavras", Edição 7. "Outras Palavras" é, para mim, a melhor revista cultural já publicada no Acre. Quando apareceu eu não estava no Brasil. Vim tomar conhecimento dela cerca de um ano atrás. Se puder vou juntar todos os números publicados para fazer uma coleção encadernada.