LÍNGUAS INDÍGENAS AMEAÇADAS NO BRASIL*
Em 500 anos sobraram apenas 175 das 1.200 línguas indígenas que existiam no país antes da chegada dos portugueses. Das línguas sobreviventes, cerca de 50 são faladas por menos de 100 pessoas. Nos últimos oito anos morreram os últimos falantes de cinco línguas e em 2006 e 2007 morreram dois dos três últimos falantes da língua Xetá, no Estado do Paraná
Aryon Rodrigues**
Parte 1
No Brasil são faladas, como línguas maternas (em alguns casos, paternas) de comunidades aqui estabelecidas por mais de três gerações, cerca de 200 línguas, das quais 175 são indígenas, isto é, línguas que já eram faladas aqui antes da chegada dos primeiros europeus.
Estas 175 línguas indígenas são apenas 15% das cerca de 1200 que se estima eram faladas há 500 anos no atual território do Brasil (Rodrigues 1993a, 1993b).
Ao longo de cinco séculos, a conquista deste território pelos europeus e seus descendentes ocasionou a eliminação de mais de 1000 povos indígenas e o desaparecimento das respectivas línguas.
Mesmo após essa drástica redução, as línguas dos povos sobreviventes ainda caracterizam o Brasil como uma das áreas de maior variedade lingüística no mundo.
Segundo o estado atual de nosso conhecimento científico, essas línguas pertencem a 43 famílias lingüísticas (Rodrigues 2005 e 2006) e, além de sua importância vital para os povos que as falam, representam um dos maiores conjuntos de diversidade lingüística da humanidade.
Apesar de sensível melhora nos últimos vinte anos nas relações do governo brasileiro com as minorias indígenas, tanto no que diz respeito à saúde e à educação, como no que importa à reserva de áreas legalmente definidas, o processo histórico de conquista do território continua ativo e violento, sobretudo na Amazônia, com graves conseqüências para muitos povos indígenas.
Hoje cerca de 50 línguas indígenas são faladas por menos de 100 pessoas, pequenas populações reduzidas pela invasão de seus territórios por estranhos que, além de ocupar seu espaço vital e disputar suas fontes de alimentação, são portadores de doenças infecciosas fatais para os indígenas.
Nos últimos oito anos morreram os últimos falantes de cinco línguas (duas no Pará, as outrasem Mato Grosso , no Amazonas e em Roraima – esta última sendo a única representante de sua família lingüística). Em 2006 e 2007 morreram dois dos três últimos falantes da língua Xetá no Estado do Paraná.
Às vezes ações governamentais ou não governamentais, embora bem intencionadas, como alguns programas educacionais ou ações missionárias, contribuem fortemente para a extinção das línguas nativas por privilegiarem o uso exclusivo da língua portuguesa, mesmo nas comunidades demograficamente mais fortes.
Patrimônio cultural
As línguas estão intrinsecamente ligadas às culturas e são os veículos naturais de transmissão e interpretação dos conhecimentos acumulados pelos povos sobre o mundo em que têm vivido, inclusive sobre a fauna e a flora e suas propriedades nutricionais e medicinais, assim como sobre os conhecimentos técnicos, desenvolvidos para utilização dessas propriedades em favor de sua sobrevivência e bem estar.
A interrupção na transmissão normal da língua de geração a geração acarreta o rompimento da transmissão da maior parte desses conhecimentos, que são patrimônio imaterial de cada povo.
Hoje firma-se, no mundo, a consciência de que todas as modalidades de conhecimento assim transmitido pela comunicação lingüística constituem patrimônio da humanidade e as nações são incentivadas pela Unesco a preservar tal patrimônio imaterial, o qual inclui as próprias línguas.
Também no Brasil buscamos hoje a forma mais adequada de preservação e fortalecimento das línguas indígenas enquanto patrimônio da nação, isto é, dos povos que constituem esta nação (ação em estudo no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Ministério da Cultura).
É claro que, se o Estado Brasileiro assumiu o domínio sobre todos os povos que vivem em seu território, todas as línguas e culturas indígenas integram seu patrimônio imaterial e, como tal, devem ser preservadas sob a responsabilidade do Estado.
Pesquisa e formação de pesquisadores
As instituições apropriadas para formar os pesquisadores que estudam cientificamente as línguas e se preparam para documentá-las, analisá-las, descrevê-las e classificá-las, de modo a produzir conhecimento sobre sua natureza e sobre sua história, são as Universidades, em geral em seus departamentos de lingüística.
No Brasil, porém, poucas Universidades têm departamentos de lingüística, mas alguns programas de pós-graduação contribuem para a formação e incentivo à pesquisa em lingüística descritiva (Unicam, USP, Unesp, UnB, UFG, UFMG, Ufal, UFPE, UFPA, Unir).
Nos comitês assessores do CNPq e da Capes, entretanto, os projetos de trabalho com línguas indígenas são freqüentemente julgados não prioritários em confronto com os dedicados à língua portuguesa ou à lingüística teórica.
Um programa especial de investimento na formação de pesquisadores para as línguas indígenas foi mantido por alguns poucos anos no CNPq (o PPCLIB, Programa de Pesquisa Científica das Línguas Indígenas Brasileiras), mas foi suspenso durante o governo Collor e nunca mais foi restabelecido.
Tem-se recorrido também a doutorados no exterior, às vezes com bolsas do CNPq e da Capes, mas ultimamente mais com bolsas de outros países (Holanda, França, EUA).
O mentor norte-americano do setor lingüístico de um das mais importantes institutos de pesquisa da Amazônia, o Museu Paraense Emílio Goeldi, propala no exterior que as Universidades brasileiras pouco produzem sobre as línguas indígenas porque seus professores “vivem fazendo greve e só seu programa no Goeldi tem qualidade e merece financiamento”.
Com essa retórica em causa própria, atrai mais financiamento para seu grupo e procura desmoralizar o trabalho de seus colegas brasileiros.
[Artigo continua...]
*Texto originalmente publicado no Jornal da Ciência Hoje como parte de uma carta do autor ao Ministro da Ciência e Tecnologia denunciando a falta de controle e de investimentos na realização de estudos da linguagem indígena no Brasil. O link para a carta nos foi enviado pelo professor Alceu Ranzi.
**Aryon Rodrigues é o mais renomado pesquisador e conhecedor das Línguas Indígenas no Brasil. Possui trabalhos publicados desde o início da década de 1940 e é o principal pesquisador e responsável pela sistematização de conhecimentos acerca de classificação genética das línguas brasileiras, sobretudo do Tronco tupi.
Crédito da imagem: Instituto Socioambiental
Aryon Rodrigues**
Parte 1
No Brasil são faladas, como línguas maternas (em alguns casos, paternas) de comunidades aqui estabelecidas por mais de três gerações, cerca de 200 línguas, das quais 175 são indígenas, isto é, línguas que já eram faladas aqui antes da chegada dos primeiros europeus.
Estas 175 línguas indígenas são apenas 15% das cerca de 1200 que se estima eram faladas há 500 anos no atual território do Brasil (Rodrigues 1993a, 1993b).
Ao longo de cinco séculos, a conquista deste território pelos europeus e seus descendentes ocasionou a eliminação de mais de 1000 povos indígenas e o desaparecimento das respectivas línguas.
Mesmo após essa drástica redução, as línguas dos povos sobreviventes ainda caracterizam o Brasil como uma das áreas de maior variedade lingüística no mundo.
Segundo o estado atual de nosso conhecimento científico, essas línguas pertencem a 43 famílias lingüísticas (Rodrigues 2005 e 2006) e, além de sua importância vital para os povos que as falam, representam um dos maiores conjuntos de diversidade lingüística da humanidade.
Apesar de sensível melhora nos últimos vinte anos nas relações do governo brasileiro com as minorias indígenas, tanto no que diz respeito à saúde e à educação, como no que importa à reserva de áreas legalmente definidas, o processo histórico de conquista do território continua ativo e violento, sobretudo na Amazônia, com graves conseqüências para muitos povos indígenas.
Hoje cerca de 50 línguas indígenas são faladas por menos de 100 pessoas, pequenas populações reduzidas pela invasão de seus territórios por estranhos que, além de ocupar seu espaço vital e disputar suas fontes de alimentação, são portadores de doenças infecciosas fatais para os indígenas.
Nos últimos oito anos morreram os últimos falantes de cinco línguas (duas no Pará, as outras
Às vezes ações governamentais ou não governamentais, embora bem intencionadas, como alguns programas educacionais ou ações missionárias, contribuem fortemente para a extinção das línguas nativas por privilegiarem o uso exclusivo da língua portuguesa, mesmo nas comunidades demograficamente mais fortes.
Patrimônio cultural
As línguas estão intrinsecamente ligadas às culturas e são os veículos naturais de transmissão e interpretação dos conhecimentos acumulados pelos povos sobre o mundo em que têm vivido, inclusive sobre a fauna e a flora e suas propriedades nutricionais e medicinais, assim como sobre os conhecimentos técnicos, desenvolvidos para utilização dessas propriedades em favor de sua sobrevivência e bem estar.
A interrupção na transmissão normal da língua de geração a geração acarreta o rompimento da transmissão da maior parte desses conhecimentos, que são patrimônio imaterial de cada povo.
Hoje firma-se, no mundo, a consciência de que todas as modalidades de conhecimento assim transmitido pela comunicação lingüística constituem patrimônio da humanidade e as nações são incentivadas pela Unesco a preservar tal patrimônio imaterial, o qual inclui as próprias línguas.
Também no Brasil buscamos hoje a forma mais adequada de preservação e fortalecimento das línguas indígenas enquanto patrimônio da nação, isto é, dos povos que constituem esta nação (ação em estudo no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Ministério da Cultura).
É claro que, se o Estado Brasileiro assumiu o domínio sobre todos os povos que vivem em seu território, todas as línguas e culturas indígenas integram seu patrimônio imaterial e, como tal, devem ser preservadas sob a responsabilidade do Estado.
Pesquisa e formação de pesquisadores
As instituições apropriadas para formar os pesquisadores que estudam cientificamente as línguas e se preparam para documentá-las, analisá-las, descrevê-las e classificá-las, de modo a produzir conhecimento sobre sua natureza e sobre sua história, são as Universidades, em geral em seus departamentos de lingüística.
No Brasil, porém, poucas Universidades têm departamentos de lingüística, mas alguns programas de pós-graduação contribuem para a formação e incentivo à pesquisa em lingüística descritiva (Unicam, USP, Unesp, UnB, UFG, UFMG, Ufal, UFPE, UFPA, Unir).
Nos comitês assessores do CNPq e da Capes, entretanto, os projetos de trabalho com línguas indígenas são freqüentemente julgados não prioritários em confronto com os dedicados à língua portuguesa ou à lingüística teórica.
Um programa especial de investimento na formação de pesquisadores para as línguas indígenas foi mantido por alguns poucos anos no CNPq (o PPCLIB, Programa de Pesquisa Científica das Línguas Indígenas Brasileiras), mas foi suspenso durante o governo Collor e nunca mais foi restabelecido.
Tem-se recorrido também a doutorados no exterior, às vezes com bolsas do CNPq e da Capes, mas ultimamente mais com bolsas de outros países (Holanda, França, EUA).
O mentor norte-americano do setor lingüístico de um das mais importantes institutos de pesquisa da Amazônia, o Museu Paraense Emílio Goeldi, propala no exterior que as Universidades brasileiras pouco produzem sobre as línguas indígenas porque seus professores “vivem fazendo greve e só seu programa no Goeldi tem qualidade e merece financiamento”.
Com essa retórica em causa própria, atrai mais financiamento para seu grupo e procura desmoralizar o trabalho de seus colegas brasileiros.
[Artigo continua...]
*Texto originalmente publicado no Jornal da Ciência Hoje como parte de uma carta do autor ao Ministro da Ciência e Tecnologia denunciando a falta de controle e de investimentos na realização de estudos da linguagem indígena no Brasil. O link para a carta nos foi enviado pelo professor Alceu Ranzi.
**Aryon Rodrigues é o mais renomado pesquisador e conhecedor das Línguas Indígenas no Brasil. Possui trabalhos publicados desde o início da década de 1940 e é o principal pesquisador e responsável pela sistematização de conhecimentos acerca de classificação genética das línguas brasileiras, sobretudo do Tronco tupi.
Crédito da imagem: Instituto Socioambiental
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