ÍNDIOS: SITUAÇÃO SANITÁRIA E SOCIOAMBIENTAL AINDA É MUITO PRECÁRIA
Em uma área índigena da Amazônia, cerca de 90% das amostras de água analisadas estão contaminadas por coliformes fecais e os resíduos sólidos não têm nenhuma solução sanitariamente correta
Estudo realizado por pesquisadores da Fiocruz/Amazonas e de Universidades de São Paulo e do Amazonas indica que as condições sanitárias e socioambientais da comunidade indígena de Iauaretê, em São Gabriel da Cachoeira, Estado do Amazonas, são precaríssimas.
Das 65 amostras de água analisadas, 89,2% apresentaram presença de coliformes fecais. Em relação aos resíduos sólidos, foi verificado que não havia nenhuma solução sanitariamente correta. A pesquisa concluiu também que as práticas sanitárias dos indígenas eram preocupantes sob o ponto de vista de saúde pública e destoantes em relação ao relativo conhecimento dos mesmos.
Na área estudada residem 2.706 indígenas, distribuídos em dez vilas e 440 domicílios. Foram identificados representantes de quinze etnias, a maioria de origem Tariano ou Tukano. O crescimento demográfico da população é muito elevado, registrando um aumento de mais de 550% entre os anos de 1975 e 2002, quando a população passou de 408 para 2.659 habitantes.
Água contaminada
Durante o estudo foi observado que os moradores não efetuavam qualquer tratamento de água nos domicílios e que utilizavam áreas peridomiciliares, roça, igarapé e rio para suas necessidades fisiológicas, exceto no caso de pessoas que freqüentavam a Unidade Mista de Saúde, a escola e outras instituições onde havia sanitários. Para banho, os indígenas utilizavam o próprio rio Waupés e igarapés quando a moradia se distanciava do rio.
A água armazenada nos domicílios freqüentemente era colocada em recipientes abertos, provocando a deposição de resíduos. A retirada para consumo era feita com canecas ou cuias, propiciando contato com as mãos e contaminação.
Usualmente, alimentos eram trazidos da roça para o domicílio sem higienização, utensílios como terçado (facão), ralador de mandioca, caldeirões e cestarias não eram devidamente limpos, utilizando para o aprovisionamento de alimentos essas cestarias que permitiam o contato de vetores mecânicos como moscas, baratas e ratos com os alimentos.
Resíduos sólidos
Os membros da comunidade demonstraram preocupação com os problemas advindos da disposição inadequada dos resíduos sólidos, e para muitos deles isto é resultado da falta de um sistema de coleta, ao próprio descuido e à falta de orientação sobre o assunto.
O diagnóstico ambiental confirmou que os resíduos sólidos encontravam–se, na maioria das vezes, dispersos no ambiente de forma irregular, próximos de fontes de captação de água ou sobre o solo. Embora em pequenas quantidades, os resíduos encontrados eram constituídos de embalagens plásticas e metalizadas, latas, papel e alguns resíduos orgânicos.
Não havendo na época do estudo um sistema de coleta de resíduos, os moradores se viam obrigados a dar uma destinação precária para o material gerado que, na maioria das vezes, incluía a queima, o enterramento, o acúmulo sobre o solo e o despejo no rio ou igarapés
Doenças e mitologia
Para o surgimento das doenças, os indígenas atribuíam desde aspectos mitológicos até os relacionados à contaminação ambiental, conforme se pode inferir por alguns depoimentos: "Diarréia é feitiço, não passa nada"; "Os pajés que sabem quem assopra, aí dá dor de cabeça, vômito, tudo é sopro, veneno"; "Por causa do lixo, tá quase dominado, não tem sanitário, a gente faz as necessidades em todo lugar, cachorro faz sujeira na rua".
No tocante à prevenção e tratamento de doenças, faziam uso tanto de práticas tradicionais como da medicina moderna, demonstrando ainda priorizar as primeiras, conforme o relato de alguns entrevistados: "Primeiro procura benzedor, remédio caseiro, depois hospital"; "Levo no hospital, mas primeiro vai no pajé; o remédio é importante, usamos remédio caseiro".
Contradição entre o discurso e a prática
Em diversos momentos, ficou claro que a comunidade tinha conhecimentos pertinentes a respeito de transmissão de verminoses, causas de doenças diarréicas, contaminação de água, assim como conhecimento sobre o hipoclorito ou fervura para tratamento domiciliar de água, cuidados com alimentos, cuidados com resíduos e necessidade de afastamento de dejetos humanos.
Tendo sido identificadas algumas interpretações dos indígenas sobre saúde e meio ambiente, foi observado que estes reconheciam situações de causa e efeito de doenças pela inexistência de saneamento; porém, não incorporaram ainda este conhecimento na sua vida cotidiana, ou seja, o conhecimento adquirido ainda não se transformou em prática, o que poderia contribuir muito para a melhoria da qualidade de vida dessa população.
Apesar de, até o momento, quase inexistir em Iauaretê a infra–estrutura obrigatória e necessária para a prevenção de doenças e a proteção da saúde pública, como água encanada nos domicílios, banheiros, sistema de tratamento de esgoto e de resíduos, outras alternativas, como isolar as fezes ou os resíduos do contato humano, cuidados com a água ou com os alimentos eram muitas vezes ignorados no cotidiano.
Como explicar então, essa discordância entre o discurso e a prática? Na psicologia social, esta situação é denominada de dissonância cognitiva, ou seja, ocorre quando as cognições de um indivíduo, incluindo suas crenças, opiniões, conhecimentos sobre o ambiente e sobre suas ações e sentimentos são incompatíveis, dissonantes entre si30.
Explicação antropológica
Todavia, sob uma abordagem antropológica, deve–se considerar que, apesar do longo contato com a sociedade envolvente, prevalecem ainda entre os indígenas de Iauaretê, crenças mitológicas que interferem diretamente no seu comportamento cotidiano, conforme pode se observar em relação às explicações que dão para o surgimento de determinadas doenças, bem como em suas práticas de medicina tradicional de cura.
Embora os povos indígenas do alto rio Negro tenham bastante familiaridade com idéias e conceitos biomédicos veiculados em interações diversas com as agências de contato, como os serviços de saúde, as relações comerciais, veículos de comunicação de massa e o processo de capacitação dos agentes indígenas de saúde, as formas de apropriação dessas idéias caracterizam–se como bricolage, pautadas pela lógica do pensamento mítico, que promove considerável ressignificação do sentido original com que foram enunciados no discurso científico.
A análise desta situação permite inferir que a discordância entre as atuais práticas e o conhecimento sanitário oferecido pela sociedade envolvente reflete uma situação conflitante entre as concepções e regras de conduta impostas e os valores tradicionais culturais, que certamente são a referência para as práticas cotidianas dos indígenas de Iauaretê.
O artigo foi publicado na revsita Ciência e Saúde Coletiva, Volume 12, Número 6, em dezembro de 2007. Clique aqui para ler o artigo na íntegra.
Estudo realizado por pesquisadores da Fiocruz/Amazonas e de Universidades de São Paulo e do Amazonas indica que as condições sanitárias e socioambientais da comunidade indígena de Iauaretê, em São Gabriel da Cachoeira, Estado do Amazonas, são precaríssimas.
Das 65 amostras de água analisadas, 89,2% apresentaram presença de coliformes fecais. Em relação aos resíduos sólidos, foi verificado que não havia nenhuma solução sanitariamente correta. A pesquisa concluiu também que as práticas sanitárias dos indígenas eram preocupantes sob o ponto de vista de saúde pública e destoantes em relação ao relativo conhecimento dos mesmos.
Na área estudada residem 2.706 indígenas, distribuídos em dez vilas e 440 domicílios. Foram identificados representantes de quinze etnias, a maioria de origem Tariano ou Tukano. O crescimento demográfico da população é muito elevado, registrando um aumento de mais de 550% entre os anos de 1975 e 2002, quando a população passou de 408 para 2.659 habitantes.
Água contaminada
Durante o estudo foi observado que os moradores não efetuavam qualquer tratamento de água nos domicílios e que utilizavam áreas peridomiciliares, roça, igarapé e rio para suas necessidades fisiológicas, exceto no caso de pessoas que freqüentavam a Unidade Mista de Saúde, a escola e outras instituições onde havia sanitários. Para banho, os indígenas utilizavam o próprio rio Waupés e igarapés quando a moradia se distanciava do rio.
A água armazenada nos domicílios freqüentemente era colocada em recipientes abertos, provocando a deposição de resíduos. A retirada para consumo era feita com canecas ou cuias, propiciando contato com as mãos e contaminação.
Usualmente, alimentos eram trazidos da roça para o domicílio sem higienização, utensílios como terçado (facão), ralador de mandioca, caldeirões e cestarias não eram devidamente limpos, utilizando para o aprovisionamento de alimentos essas cestarias que permitiam o contato de vetores mecânicos como moscas, baratas e ratos com os alimentos.
Resíduos sólidos
Os membros da comunidade demonstraram preocupação com os problemas advindos da disposição inadequada dos resíduos sólidos, e para muitos deles isto é resultado da falta de um sistema de coleta, ao próprio descuido e à falta de orientação sobre o assunto.
O diagnóstico ambiental confirmou que os resíduos sólidos encontravam–se, na maioria das vezes, dispersos no ambiente de forma irregular, próximos de fontes de captação de água ou sobre o solo. Embora em pequenas quantidades, os resíduos encontrados eram constituídos de embalagens plásticas e metalizadas, latas, papel e alguns resíduos orgânicos.
Não havendo na época do estudo um sistema de coleta de resíduos, os moradores se viam obrigados a dar uma destinação precária para o material gerado que, na maioria das vezes, incluía a queima, o enterramento, o acúmulo sobre o solo e o despejo no rio ou igarapés
Doenças e mitologia
Para o surgimento das doenças, os indígenas atribuíam desde aspectos mitológicos até os relacionados à contaminação ambiental, conforme se pode inferir por alguns depoimentos: "Diarréia é feitiço, não passa nada"; "Os pajés que sabem quem assopra, aí dá dor de cabeça, vômito, tudo é sopro, veneno"; "Por causa do lixo, tá quase dominado, não tem sanitário, a gente faz as necessidades em todo lugar, cachorro faz sujeira na rua".
No tocante à prevenção e tratamento de doenças, faziam uso tanto de práticas tradicionais como da medicina moderna, demonstrando ainda priorizar as primeiras, conforme o relato de alguns entrevistados: "Primeiro procura benzedor, remédio caseiro, depois hospital"; "Levo no hospital, mas primeiro vai no pajé; o remédio é importante, usamos remédio caseiro".
Contradição entre o discurso e a prática
Em diversos momentos, ficou claro que a comunidade tinha conhecimentos pertinentes a respeito de transmissão de verminoses, causas de doenças diarréicas, contaminação de água, assim como conhecimento sobre o hipoclorito ou fervura para tratamento domiciliar de água, cuidados com alimentos, cuidados com resíduos e necessidade de afastamento de dejetos humanos.
Tendo sido identificadas algumas interpretações dos indígenas sobre saúde e meio ambiente, foi observado que estes reconheciam situações de causa e efeito de doenças pela inexistência de saneamento; porém, não incorporaram ainda este conhecimento na sua vida cotidiana, ou seja, o conhecimento adquirido ainda não se transformou em prática, o que poderia contribuir muito para a melhoria da qualidade de vida dessa população.
Apesar de, até o momento, quase inexistir em Iauaretê a infra–estrutura obrigatória e necessária para a prevenção de doenças e a proteção da saúde pública, como água encanada nos domicílios, banheiros, sistema de tratamento de esgoto e de resíduos, outras alternativas, como isolar as fezes ou os resíduos do contato humano, cuidados com a água ou com os alimentos eram muitas vezes ignorados no cotidiano.
Como explicar então, essa discordância entre o discurso e a prática? Na psicologia social, esta situação é denominada de dissonância cognitiva, ou seja, ocorre quando as cognições de um indivíduo, incluindo suas crenças, opiniões, conhecimentos sobre o ambiente e sobre suas ações e sentimentos são incompatíveis, dissonantes entre si30.
Explicação antropológica
Todavia, sob uma abordagem antropológica, deve–se considerar que, apesar do longo contato com a sociedade envolvente, prevalecem ainda entre os indígenas de Iauaretê, crenças mitológicas que interferem diretamente no seu comportamento cotidiano, conforme pode se observar em relação às explicações que dão para o surgimento de determinadas doenças, bem como em suas práticas de medicina tradicional de cura.
Embora os povos indígenas do alto rio Negro tenham bastante familiaridade com idéias e conceitos biomédicos veiculados em interações diversas com as agências de contato, como os serviços de saúde, as relações comerciais, veículos de comunicação de massa e o processo de capacitação dos agentes indígenas de saúde, as formas de apropriação dessas idéias caracterizam–se como bricolage, pautadas pela lógica do pensamento mítico, que promove considerável ressignificação do sentido original com que foram enunciados no discurso científico.
A análise desta situação permite inferir que a discordância entre as atuais práticas e o conhecimento sanitário oferecido pela sociedade envolvente reflete uma situação conflitante entre as concepções e regras de conduta impostas e os valores tradicionais culturais, que certamente são a referência para as práticas cotidianas dos indígenas de Iauaretê.
O artigo foi publicado na revsita Ciência e Saúde Coletiva, Volume 12, Número 6, em dezembro de 2007. Clique aqui para ler o artigo na íntegra.
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