DE MARRÉ O QUE?
Um mistério acerca de uma canção infantil: afinal, o que significa ser "pobre de marré deci"? Já pesquisada por Villa-Lobos e Cecília Meireles, a canção tem suas origens reveladas
Avelino Medina*
“Eu sou pobre, pobre, pobre / de marré, marré, marré / eu sou pobre, pobre, pobre / de marré deci”.
Além de divertir as crianças, esta canção infantil também já inspirou pesquisas de grandes nomes da música brasileira, como Cecília Meireles e Heitor Villa-Lobos. Existem muitas versões deste jogo cantado no Brasil e em Portugal, mas poucas são esclarecedoras: afinal, o que de fato significa “de marré, marré, marré” e “de marré deci”?
A brincadeira chama-se “Jogo de Rico e Pobre” e procede da Europa Nórdica. Nele, originalmente, duas linhas de meninas são postas frente a frente. As que estão na dianteira representam a “mãe pobre” e a "mãe rica”. Esta canta e movimenta-se para frente e para trás. Após, alterna a função com a primeira. Ao fim, trocam de posição e o jogo recomeça.
Em sua dissertação de doutorado, a estudiosa do folclore Elsa Enäjärvi-Haavio (1901-1951) afirma que este jogo ganha uma versão francesa por intermédio do povo flamengo, que compreende significativa parte da população da Bélgica. A língua flamenga é o neerlandês, com algumas variações, e representa a principal língua dos Países Baixos.
O toque francês trouxe o enamoramento, o cortejo, a sedução e o noivado, gerando versões como:
“Pauvre, pauvre que je suis (Pobre, pobre como sou ) / qui va, qui vient dans tous pays (que vai e vem por todos os países) / Serai-je toujours pauvre? (Serei sempre pobre?) / ... / Je marierai mes filles/avec cinquante livres (Casarei minhas filhas com cinqüenta libras) / etc”.
Estes jogos e cantos eram praticados pelos campesinos, gente rural. Para eles, um ofício era o bastante, porque almejavam com o trabalho (e o casamento) uma vida natural, feliz e simples. A autora explica ainda que o refrão é sempre derivado da palavra Maria. Refere-se à Virgem Maria, mãe de Jesus.
Enäjärvi-Haavio transcreve deste modo uma versão da canção em um livro de 1858: “Je suis pauvre, je suis pauvre (Eu sou pobre, eu sou pobre) / Anne-Marie Jaqueline / Je suis pauvre (Eu sou pobre) / dans ce jeu d’ici (neste jogo daqui)”. A partir das variantes flamengas, o nome de Maria ou Marie passou ao refrão deste jogo cantado, com todos os seus diminutivos e outras sonoridades sem-sentido, como versos de non-sense e aliterações.
Persistia nestas variantes novas algo de musicalidade e ressonância de uma linguagem críptica e mágica. O nome da Virgem Maria, no diminutivo soaria como algo sacrílego. Porém, isto não sucedia naqueles tempos, em que restos do paganismo velavam nomes venerandos. Tudo não passava de um jogo de palavras.
No contexto da canção, marionette e marion não tinham qualquer sentido, porém subsistiam no imaginário do povo camponês. Teria o termo “marré” ou “de marré” se originado naquelas regiões, como corruptela de Mar(i)ette, ou de Marette, ou de Mar(ionn)ette?
É interessante comparar uma partitura holandesa e algumas partituras brasileiras para responder a esta questão. A primeira, encontrada no site Dutch Song Database, data de 1900. Nacionalmente, escolhemos o arranjo para piano de Heitor Villa-Lobos, intitulada “O Pobre e o Rico”, e uma partitura elaborada pelo grupo Estação Capixaba, especializado em estudos sobre folclore. As melodias brasileiras são iguais, equivalem-se basicamente. Observam-se ainda muitos traços de semelhança entre a melodia holandesa e as brasileiras. Para ouvidos e olhos treinados, é a mesma melodia com adaptações à índole das respectivas línguas.
Enfim, não parece haver dúvida de que "marré" provém, após inúmeras corrupções, de um diminutivo do nome Maria, Marie em francês. Quanto a "deci", foi extraído do verso "dans ce jeu d'ici", que significa “neste jogo daqui” na variante belga da canção.
*Avelino Medina é médico e ficcionista, autor, entre outros, de A Dama da Rua do Comércio(2005), Ed. Litteris. Confira aqui o artigo na íntegra.
Avelino Medina*
“Eu sou pobre, pobre, pobre / de marré, marré, marré / eu sou pobre, pobre, pobre / de marré deci”.
Além de divertir as crianças, esta canção infantil também já inspirou pesquisas de grandes nomes da música brasileira, como Cecília Meireles e Heitor Villa-Lobos. Existem muitas versões deste jogo cantado no Brasil e em Portugal, mas poucas são esclarecedoras: afinal, o que de fato significa “de marré, marré, marré” e “de marré deci”?
A brincadeira chama-se “Jogo de Rico e Pobre” e procede da Europa Nórdica. Nele, originalmente, duas linhas de meninas são postas frente a frente. As que estão na dianteira representam a “mãe pobre” e a "mãe rica”. Esta canta e movimenta-se para frente e para trás. Após, alterna a função com a primeira. Ao fim, trocam de posição e o jogo recomeça.
Em sua dissertação de doutorado, a estudiosa do folclore Elsa Enäjärvi-Haavio (1901-1951) afirma que este jogo ganha uma versão francesa por intermédio do povo flamengo, que compreende significativa parte da população da Bélgica. A língua flamenga é o neerlandês, com algumas variações, e representa a principal língua dos Países Baixos.
O toque francês trouxe o enamoramento, o cortejo, a sedução e o noivado, gerando versões como:
“Pauvre, pauvre que je suis (Pobre, pobre como sou ) / qui va, qui vient dans tous pays (que vai e vem por todos os países) / Serai-je toujours pauvre? (Serei sempre pobre?) / ... / Je marierai mes filles/avec cinquante livres (Casarei minhas filhas com cinqüenta libras) / etc”.
Estes jogos e cantos eram praticados pelos campesinos, gente rural. Para eles, um ofício era o bastante, porque almejavam com o trabalho (e o casamento) uma vida natural, feliz e simples. A autora explica ainda que o refrão é sempre derivado da palavra Maria. Refere-se à Virgem Maria, mãe de Jesus.
Enäjärvi-Haavio transcreve deste modo uma versão da canção em um livro de 1858: “Je suis pauvre, je suis pauvre (Eu sou pobre, eu sou pobre) / Anne-Marie Jaqueline / Je suis pauvre (Eu sou pobre) / dans ce jeu d’ici (neste jogo daqui)”. A partir das variantes flamengas, o nome de Maria ou Marie passou ao refrão deste jogo cantado, com todos os seus diminutivos e outras sonoridades sem-sentido, como versos de non-sense e aliterações.
Persistia nestas variantes novas algo de musicalidade e ressonância de uma linguagem críptica e mágica. O nome da Virgem Maria, no diminutivo soaria como algo sacrílego. Porém, isto não sucedia naqueles tempos, em que restos do paganismo velavam nomes venerandos. Tudo não passava de um jogo de palavras.
No contexto da canção, marionette e marion não tinham qualquer sentido, porém subsistiam no imaginário do povo camponês. Teria o termo “marré” ou “de marré” se originado naquelas regiões, como corruptela de Mar(i)ette, ou de Marette, ou de Mar(ionn)ette?
É interessante comparar uma partitura holandesa e algumas partituras brasileiras para responder a esta questão. A primeira, encontrada no site Dutch Song Database, data de 1900. Nacionalmente, escolhemos o arranjo para piano de Heitor Villa-Lobos, intitulada “O Pobre e o Rico”, e uma partitura elaborada pelo grupo Estação Capixaba, especializado em estudos sobre folclore. As melodias brasileiras são iguais, equivalem-se basicamente. Observam-se ainda muitos traços de semelhança entre a melodia holandesa e as brasileiras. Para ouvidos e olhos treinados, é a mesma melodia com adaptações à índole das respectivas línguas.
Enfim, não parece haver dúvida de que "marré" provém, após inúmeras corrupções, de um diminutivo do nome Maria, Marie em francês. Quanto a "deci", foi extraído do verso "dans ce jeu d'ici", que significa “neste jogo daqui” na variante belga da canção.
*Avelino Medina é médico e ficcionista, autor, entre outros, de A Dama da Rua do Comércio(2005), Ed. Litteris. Confira aqui o artigo na íntegra.
2 Comments:
Fantástico. A quantidade de informações existente em uma simples canção infantil é de impressionar.
Olá Evandro Ferreira,
que instrutivo! e eu que brinquei carregando todo esse cabedal cultural
Cê deve saber mas dou meu pitaco;Mircea Eliade diz que toda brincadeira de criança já foi um ritual religioso.Marré deci, com todo esse histórico deve ter sido dos grandes. Obrigada
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