UNIVERSIDADE: PERVERSÕES DA AUTONOMIA
Por que nossos conselhos de gestão não têm autonomia para gerir patrimônio, custeio e receita? Por que povo e governo não nos cobram transparência, competência, desempenho e qualidade em vez de mera capacidade de seguir regras de controle e normas burocráticas?
Naomar de Almeida Filho *
A rigor, o termo autonomia significa capacidade de definir as próprias normas. Em uso corrente, inclui o sentido de autarquia ou capacidade de autogoverno. Para avaliar objetivamente a questão da autonomia universitária, consideremos dois planos articulados: administrativo e acadêmico. No plano administrativo, as universidades federais encontram-se travadas por aparato normativo que compromete tanto a missão acadêmica de formar com qualidade quanto o dever de buscar eficiência e economicidade como instituição pública.
Rápidos exemplos triviais. Para atividades de ensino e pesquisa, precisamos de bens de melhor qualidade e serviços mais criativos, pertinentes e competentes, quase nunca baratos. Porém, segundo a lei de licitações, somos obrigados a contratar pelo menor preço.
Na Universidade Federal da Bahia, seis meses de conta de água bastariam para substituir todo o obsoleto sistema hidráulico dos campi, reduzindo o consumo em até 40%. Não obstante, é proibido mudar rubricas de custeio porque o Orçamento da União é prefixado. Em qualquer caso, inútil economizar, porque todo o montante poupado tem de ser, ao final do exercício, recolhido ao Tesouro Nacional.
Diligentemente, órgãos de controle externo nos têm auditado. O TCU (Tribunal de Contas da União), aplicando a lei, tem punido dirigentes universitários por irregularidades supostas em procedimentos que, o mais das vezes, visam viabilizar a gestão universitária.
No plano acadêmico, a universidade se engana, e aparentemente gosta, ao pretender-se autônoma. De fato, longe estamos da mítica autonomia universitária. Submetidos à crescente judicialização da sociedade, concursos docentes, processos seletivos, transferências e matrículas obedecem a leis e regras mais cartoriais que acadêmicas.
Projetos pedagógicos seguem, na minúcia, diretrizes curriculares estabelecidas por órgãos externos de regulação, influenciados por interesses corporativos e mercadológicos. Linhas de pesquisa contemplam prioridades definidas por agências de fomento; programas de extensão respondem a demandas ou determinações de organismos governamentais, não-governamentais e empresariais.
A autonomia universitária nos é garantida pelo artigo 207 da Constituição Federal. Então, por que não recebemos orçamento global, definido por metas e planos? Por que nosso quadro docente e de servidores obedece a regras do serviço público, quiçá adequadas a repartições burocráticas, porém flagrantemente contraditórias com o mandato da inovação acadêmica?
Por que nossos conselhos de gestão não têm autonomia para gerir patrimônio, custeio e receita? Por que nossos conselhos acadêmicos têm que seguir diretrizes e regulamentos de corporações e conselhos? Por que nossos conselhos curadores, reforçados com representação da sociedade, não poderiam fiscalizar operação, orçamentos e prestações de contas? Por que povo e governo não nos cobram transparência, competência, desempenho e qualidade em vez de mera capacidade de seguir regras de controle e normas burocráticas?
O conceito de autonomia da universidade articula meios e fins. Como sua missão é socialmente referenciada, penso que a autonomia dos fins deve ser relativa, com participação e controle social na definição de metas e finalidades. Porém, para cumprir de modo competente seu mandato histórico, a universidade precisa gerir processos institucionais com autonomia plena dos meios.
A universidade brasileira perverte o conceito de autonomia. Onde precisa não exerce autonomia pois, em seu cotidiano, a gestão dos meios segue pautas extrainstitucionais e obedece a marcos heterônomos. Entretanto, docentes e dirigentes reivindicam autonomia dos fins. Tal posição tem justificado, por exemplo, rechaçar políticas de ações afirmativas e inclusão social, o que pouco contribui para tornar mais justa a sociedade que abriga, sustenta e legitima a universidade.
Na atual conjuntura nacional, rica em oportunidades e desafios, pode a defesa da autonomia justificar conservadorismo social, imobilismo institucional e ranço acadêmico? Penso que não.
Immanuel Kant, propondo destradicionalizar a universidade mediante experimentação de novas formas de pensar e agir, propôs a audácia como consigna da autonomia universitária. Seguindo o grande filósofo, defendo o conceito de autonomia somente como ousadia histórica, jamais para manter a velha universidade elitista, alienada e anacrônica, sempre para transformar e reinventar a vida.
* Doutor em Epidemiologia, pesquisador do CNPq, professor do Instituto de Saúde Coletiva e reitor da Universidade Federal da Bahia; artigo publicado na Folha de S. Paulo (11/1/09)
Naomar de Almeida Filho *
A rigor, o termo autonomia significa capacidade de definir as próprias normas. Em uso corrente, inclui o sentido de autarquia ou capacidade de autogoverno. Para avaliar objetivamente a questão da autonomia universitária, consideremos dois planos articulados: administrativo e acadêmico. No plano administrativo, as universidades federais encontram-se travadas por aparato normativo que compromete tanto a missão acadêmica de formar com qualidade quanto o dever de buscar eficiência e economicidade como instituição pública.
Rápidos exemplos triviais. Para atividades de ensino e pesquisa, precisamos de bens de melhor qualidade e serviços mais criativos, pertinentes e competentes, quase nunca baratos. Porém, segundo a lei de licitações, somos obrigados a contratar pelo menor preço.
Na Universidade Federal da Bahia, seis meses de conta de água bastariam para substituir todo o obsoleto sistema hidráulico dos campi, reduzindo o consumo em até 40%. Não obstante, é proibido mudar rubricas de custeio porque o Orçamento da União é prefixado. Em qualquer caso, inútil economizar, porque todo o montante poupado tem de ser, ao final do exercício, recolhido ao Tesouro Nacional.
Diligentemente, órgãos de controle externo nos têm auditado. O TCU (Tribunal de Contas da União), aplicando a lei, tem punido dirigentes universitários por irregularidades supostas em procedimentos que, o mais das vezes, visam viabilizar a gestão universitária.
No plano acadêmico, a universidade se engana, e aparentemente gosta, ao pretender-se autônoma. De fato, longe estamos da mítica autonomia universitária. Submetidos à crescente judicialização da sociedade, concursos docentes, processos seletivos, transferências e matrículas obedecem a leis e regras mais cartoriais que acadêmicas.
Projetos pedagógicos seguem, na minúcia, diretrizes curriculares estabelecidas por órgãos externos de regulação, influenciados por interesses corporativos e mercadológicos. Linhas de pesquisa contemplam prioridades definidas por agências de fomento; programas de extensão respondem a demandas ou determinações de organismos governamentais, não-governamentais e empresariais.
A autonomia universitária nos é garantida pelo artigo 207 da Constituição Federal. Então, por que não recebemos orçamento global, definido por metas e planos? Por que nosso quadro docente e de servidores obedece a regras do serviço público, quiçá adequadas a repartições burocráticas, porém flagrantemente contraditórias com o mandato da inovação acadêmica?
Por que nossos conselhos de gestão não têm autonomia para gerir patrimônio, custeio e receita? Por que nossos conselhos acadêmicos têm que seguir diretrizes e regulamentos de corporações e conselhos? Por que nossos conselhos curadores, reforçados com representação da sociedade, não poderiam fiscalizar operação, orçamentos e prestações de contas? Por que povo e governo não nos cobram transparência, competência, desempenho e qualidade em vez de mera capacidade de seguir regras de controle e normas burocráticas?
O conceito de autonomia da universidade articula meios e fins. Como sua missão é socialmente referenciada, penso que a autonomia dos fins deve ser relativa, com participação e controle social na definição de metas e finalidades. Porém, para cumprir de modo competente seu mandato histórico, a universidade precisa gerir processos institucionais com autonomia plena dos meios.
A universidade brasileira perverte o conceito de autonomia. Onde precisa não exerce autonomia pois, em seu cotidiano, a gestão dos meios segue pautas extrainstitucionais e obedece a marcos heterônomos. Entretanto, docentes e dirigentes reivindicam autonomia dos fins. Tal posição tem justificado, por exemplo, rechaçar políticas de ações afirmativas e inclusão social, o que pouco contribui para tornar mais justa a sociedade que abriga, sustenta e legitima a universidade.
Na atual conjuntura nacional, rica em oportunidades e desafios, pode a defesa da autonomia justificar conservadorismo social, imobilismo institucional e ranço acadêmico? Penso que não.
Immanuel Kant, propondo destradicionalizar a universidade mediante experimentação de novas formas de pensar e agir, propôs a audácia como consigna da autonomia universitária. Seguindo o grande filósofo, defendo o conceito de autonomia somente como ousadia histórica, jamais para manter a velha universidade elitista, alienada e anacrônica, sempre para transformar e reinventar a vida.
* Doutor em Epidemiologia, pesquisador do CNPq, professor do Instituto de Saúde Coletiva e reitor da Universidade Federal da Bahia; artigo publicado na Folha de S. Paulo (11/1/09)
1 Comments:
Esse texto, muito claro e esclarecedor, me fez lembrar da Universidade da Floresta. As idéias seminais se perderam nas normas do MEC e ou não podem ser aplicadas pelo controle do TCU. Onde ficaram "as trocas de saberes"? Como remunerar um sábio da floresta no mesmo nível de um sábio da cidade? Sem essas regras obrigatórias e com a autonomia poderíamos ter os curandeiros, tuxáuas, pescadores, parteiras transmitindo seus conhecimentos e (importante) remunerados em igualdade de condições com os professores urbanos.(Alceu Ranzi)
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