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29 maio 2009

BOTICÁRIO

A arte do boticário: como a figura do farmacêutico surgiu na Bahia e no Rio de Janeiro durante o século 19

Revista de Magnuinhos/Fiocruz
Edição de Março de 2009

[Criada por D. João VI em 1808, a Botica Real Militar atendia os
exércitos da Coroa sediados no Brasil]

O médico não pode impor ao doente a condição de comprar o remédio em determinada farmácia, os receituários devem apresentar com clareza os nomes e as doses das substâncias que entram na composição do medicamento e o farmacêutico não pode preparar uma receita que não esteja assinada pelo médico.

Essas preocupações, embora pareçam bastante recentes, já estavam presentes no regulamento da Junta Central de Higiene Pública, publicado em 1851 – uma época em que as farmácias ainda se chamavam boticas. A história do exercício farmacêutico no Brasil, foco de projetos desenvolvidos na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), surpreende por sua atualidade.

O século 19 testemunhou, na esfera acadêmica, a diferenciação entre aqueles que diagnosticavam doenças e prescreviam remédios – os médicos – e aqueles que fabricavam e comercializavam esses remédios – os farmacêuticos, que se profissionalizavam. O tema foi estudado pelas pesquisadoras Tânia Salgado Pimenta, da COC, e Ediná Alves Costa, professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em artigo publicado no periódico História, Ciências, Saúde – Manguinhos.

“Embora muitos aprendessem com os farmacêuticos mais experientes ou em escolas independentes das faculdades de medicina, apenas estas podiam conceder autorização para o exercício da farmácia”, apontam Tânia e Ediná. No entanto, as especialistas destacam, nas faculdades o curso médico, com duração de seis anos, era priorizado em relação ao de farmácia, que durava três.

As pesquisadoras também chamam a atenção para o fato de que, embora a farmácia buscasse independência em relação à medicina na esfera acadêmica, esse processo não significou a exclusão das terapias populares. “Por um lado, médicos e boticários interessavam-se pela maneira como as pessoas sem formação acadêmica tratavam as doenças mais comuns de determinada região, assim como pelas substâncias usadas para esse fim. Ao mesmo tempo, alguns curadores populares faziam uso de conhecimentos médicos acadêmicos”, ressaltam.

Dificuldade para que as leis fossem seguidas

Décadas antes do regulamento da Junta Central de Higiene Pública, já em 1810 a regulamentação e fiscalização das boticas e dos boticários estavam previstas no regimento da Fisicaturamor, órgão que fiscalizava as artes de curar. A principal dificuldade era colocar a lei em prática – problema especialmente difícil na província da Bahia, distante da capital e assolada por secas e misérias ao longo do século 19.

"Diante da necessidade de ajuda, o governo não poderia recusar auxílio oferecido por farmacêuticos, estivessem ou não exercendo suas atividades de acordo com a lei”, explicam as especialistas.

“Contudo, mesmo em momentos em que a sociedade baiana não enfrentava alguma calamidade, a não observância à lei parece ter-se tornado constante.” Conforme documentos estudados pelas pesquisadoras, o próprio inspetor de Saúde da Bahia admitiu, em 1879, em carta ao presidente da província, que vários artigos do regulamento da Junta não eram cumpridos.

Clima de denúncias Havia, porém, quem se indignasse com as irregularidades. Os Farmacêuticos Euclides Caldas, José de Calazans, Ismael da Silva, Francisco Ribeiro e Manoel Ribeiro, por exemplo, escreveram ao inspetor e ao presidente da província delatando que, em Salvador, na Rua de São Pedro, uma farmácia desobedecia às determinações da lei. Também de modo contrário à legislação, em Lençóis, na Praça do Mercado, o médico Julio Gama exercia a medicina vinculado à Farmácia Gama, esta dirigida pelo não-diplomado Manoel Magiano Pinto. A situação foi denunciada pelo farmacêutico Archimimo da Fonseca.

Em suas últimas petições, Archimimo havia concentrado suas denúncias em Magiano e não se referiu mais às atividades do doutor Julio. “Isso sugere que a atuação de um médico era mais difícil de contestar do que a de um prático, ainda que houvesse violação da lei”, comentam as autoras.

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Médicos, farmacêuticos e charlatões na Corte Imperial

Criação de instituições científicas contribuiu para institucionalizar a prática da farmácia no país

O ambiente de epidemias e transformação social acompanhou o processo de institucionalização da farmácia no Brasil. O processo, que envolve aproximações e
afastamentos entre farmacêuticos, médicos e curandeiros, foi tema da tese de doutorado Farmácia na Corte Imperial (1851-1887): práticas e saberes, defendida na Casa de Oswaldo
Cruz (COC/Fiocruz) pela historiadora Verônica Pimenta Velloso, sob orientação
da professora Maria Rachel Fróes da Fonseca. Em entrevista à Revista de Manguinhos, Verônica conta um pouco sobre este momento da história da saúde no Brasil.

Como se deu o processo de institucionalização da farmácia no Brasil? Ela era vista mais como magia do que como ciência?

Verônica: Desde 1835, alguns farmacêuticos já integravam a Seção de Farmácia da Academia Imperial de Medicina, no Rio de Janeiro. Para eles, a farmácia deveria alcançar o estatuto de uma ciência. Para eles, a química conferia o sentido científico à farmácia. Mas a química nasceu da alquimia, que tinha um sentido transcendental e, entre a clientela para a qual eles manipulavam os medicamentos, a crença no sobrenatural
permanecia.

Havia tensões entre farmacêuticos e médicos?

Verônica: Os tratamentos propostos pelos órgãos sanitários deixavam implícitas as distinções que se pretendia fazer entre um ofício e outro – os médicos deveriam prestar assistência aos doentes, enquanto aos farmacêuticos cabia formular os medicamentos de acordo com as
receitas médicas. No dia-a-dia, não era bem assim: muitas vezes, os boticários prestavam assistência aos doentes, e os médicos, por sua vez, também formulavam
medicamentos.

Por que a disputa entre médicos e farmacêuticos se convertia em aliança em situações de epidemia?

Verônica: Os episódios de epidemias incentivavam a reunião de farmacêuticos e médicos em associações, como uma forma de se protegerem do mercado informal que crescia nessas épocas. Não foi à toa que a primeira associação farmacêutica surgiu após a epidemia de
febre amarela do verão de 1849-1850.

E a figura do “charlatão”, como ela era caracterizada?

Verônica: A figura do charlatão não existia apenas no Brasil e sofreu modificações no decorrer do tempo. Nas décadas de 1840 e 1850, os homeopatas eram considerados verdadeiros charlatões pelos farmacêuticos pertencentes à Academia Imperial de Medicina. Com o tempo, parte dos conflitos foi sendo contemporizada e alguns farmacêuticos acabaram incorporando a homeopatia. A partir da década de 1860, a designação de charlatão se amplia para outros personagens, como livreiros, perfumistas e vendedores de remédios secretos.

Como a nomenclatura ‘boticário’ deu lugar ao termo “farmacêutico”?

Verônica: Oficialmente, a designação de farmacêutico surge no Brasil com a criação do curso de farmácia nas faculdades de medicina do Império, no Rio de Janeiro e na Bahia, em 1832. Quem se formava por esse curso deveria, então, ser denominado de farmacêutico, em contraste com o boticário, que aprendia o ofício numa botica, trabalhando como aprendiz
de um mestre boticário. No cotidiano essa distinção não acontecia.

Os farmacêuticos passaram a competir com os boticários?

Verônica: Os farmacêuticos das associações passaram a usar a distinção em relação aos boticários como forma de denunciar o exercício ilegal ou as práticas informais relacionadas à farmácia, mas a Junta Central de Higiene Pública, órgão do governo responsável pela fiscalização das artes de curar, alegava que os dois únicos cursos farmacêuticos oficiais existentes eram insuficientes para atender às necessidades de todo o país. Eram expedidas, então, licenças que permitiam o exercício da farmácia por leigos. (F.M.)

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[Foto: acervo do laboratório químico farmacêutico do Exército]