MUDANÇA NO FUSO HORÁRIO: AGRESSÃO À NATUREZA E À DEMOCRACIA
"Em Cruzeiro do Sul os efeitos foram evidentes em sua maior festa religiosa: no ano passado, falou-se em 30 mil participantes no novenário, em 2008, 10 mil... As missas, novenas e procissões seguiram o novo horário, e foram realizadas sob o sol e o calor escaldantes do verão amazônico. E para a procissão não perder totalmente o brilho de outrora, os organizadores realizaram paradas mais demoradas e caminhada mais lenta para que a noite chegasse e com ela a beleza da lua e das luzes de velas iluminando as avenidas de Cruzeiro e o Morro da Glória."
Socorro Silva*
Foi com as mãos atadas, a garganta seca e os olhos cansados e assustados que acordamos no último dia 24 de junho. Não era um dia comum: depois de quase cem anos habituados ao fuso horário natural, biológico e solar, baseado nas longitudes e movimentos de rotação da Terra, fomos obrigados a adiantar em uma hora nossos relógios. Entrava em vigor a Lei nº 11.662, de 24 de abril de 2008, de autoria do senador Tião Viana (PT-AC), que extinguia o 4º fuso horário brasileiro (com abrangência em todo o Estado do Acre e sudoeste do Amazonas), unificava o horário do Estado do Pará igualando-o ao de Brasília e nos colocava com a mesma hora dos outros Estados da Amazônia, inclusive de Mato Grosso, embora estejamos a mais de 2 mil quilômetros de Cuiabá.
Sem consulta à população atingida no Acre, no Amazonas e no Pará, o Congresso Nacional aprovou e o Presidente da República sancionou a lei sob alegação de “integração desses Estados ao Sistema Financeiro Nacional e facilidade nas telecomunicações”. A consistência dessa alegação obviamente significa o atendimento aos interesses de uma minoria endinheirada e não ao povo em geral, que passa à margem do grande capital. Com isso, o Brasil passou a ter apenas três fusos horários, contrariando a lógica do tempo e da geografia, independente das enormes distâncias que nos separam de leste a oeste, do nascer e do pôr-do-sol. Para a maioria dos parlamentares, nossos hábitos adquiridos ao longo de cem anos, nossa saúde e segurança são apenas moedas de troca de apoio político e financeiro.
Estranhamente esta mudança ocorre pouco depois de começar a vigorar a Portaria nº 1.220/07 do Ministério da Justiça, que obriga as emissoras de TV do país a adequar sua programação de acordo com a classificação indicativa para cada idade aos fusos horários brasileiros, mais especificamente aos Estados do Norte que se encontravam no 3º e no 4º fusos, respectivamente a uma e duas horas em relação às sedes centrais das grandes geradoras. Foi mais fácil passar por cima do povo do Acre, do Amazonas e do Pará do que fazer a Globo, a Record, a Band e o SBT cumprirem a determinação da Justiça. Atitude típica de ditaduras como a chinesa, cujo país, o 2º maior do mundo, tem apenas um fuso horário, e, em contrapartida, completamente contrária a de democracias como a americana e a canadense, onde os canais de TV se adequam aos fusos horários, e não o contrário.
AS CRIANÇAS E A TV
Mudar o relógio evitou maiores gastos às emissoras, deixou-as quites com o Ministério da Justiça, mas não resguarda nossas crianças. Talvez saídas mais diplomáticas como uma pequena adequação nas novelas das 7 e das 8 e retardamento no horário de filmes pornôs (Band) e não propriamente a gravação da programação poderiam surtir efeito mais benéfico. Até porque hoje as crianças dormem mais tarde, bem depois dos pais e o novo horário até facilitou. Não há nada mais tão impróprio na TV que elas não vejam sem censura na Internet e na realidade cotidiana. O que estão transmitindo à população do Acre, Amazonas e Rondônia é uma gravação de má qualidade, com interrupções bruscas de programas, noticiários, novelas e publicidade, e quase nenhuma transmissão ao vivo. O melhor é recorrer a antena parabólica e a TV por assinatura.
Por isso, mais do que nunca muitos valores perdidos têm que ser resgatados pelas famílias, e os meios de comunicação devem ter consciência do alcance social da veiculação de suas informações. Para isso, elegemos representantes, não para se render às imposições dos lobbies que cercam o Planalto, tampouco para algemar a liberdade de expressão ou agredir uma população inteira em seus hábitos e costumes.
Afinal de contas, a imposição do Ministério da Justiça para atender ao Estatuto da Criança e do Adolescente pretendia o quê, se o relógio foi alterado, mas o tempo não mudou, o sol não se adiantou nem a noite, e as crianças continuam dormindo no horário do fuso natural, longitudinal?
EQUÍVOCO
Trocamos seis por meia dúzia. Do ponto de vista social e cultural, nenhum benefício tivemos e ainda sentimos arder na alma a convicção de que o interesse público continua sendo submetido ao privado. E nós que pensamos que isso tinha mudado. Que nada... Sentimo-nos como uma massa esquálida, ignorante e burra, acuada num arraial de Canudos no meio da floresta amazônica, impotente e assustada diante de mais um equívoco da República, e traídos pelo próprio Antônio Conselheiro. Sem defesa no Congresso, a quem cabia o papel de questionar o Projeto de Lei do senador acreano e suas implicações e exigir maiores esclarecimentos sobre o desejo das populações dos Estados atingidos, restou-nos a frustração e a perplexidade perante tamanha afronta à democracia, tal como nossos ancestrais nordestinos.
Sabemos que estamos definitivamente condenados a civilização, já dizia Euclides da Cunha. E, apesar das diferenças, caminhamos para o mesmo fim, com o mesmo ímpeto civilizatório. Porém, nesse Brasil continental, contrastes aviltantes no clima, no relevo, na vegetação, no tempo, na cultura, na linguagem, no desenvolvimento, na distância evidenciam condições regionais incomparáveis. Enquanto no sul a temperatura média oscila entre 17º e 20º e as estações são bem definidas, a exemplo da Europa, no Norte do Brasil, o calor é inclemente o ano inteiro e nossas estações, apenas duas, são orientadas pelo sol e a linha do Equador, que ditam o ritmo das florestas e das chuvas, que, por sua vez, regulam as nossas vidas. Aqui o sol nasce e se põe às 6 horas (manhã e tarde) e não às 5 ou 7.
Não é uma mudança de horário que nos aproximará do (ex) sul maravilha e nem nosso progresso depende do fuso horário de Brasília, Rio ou São Paulo. Além do mais, as grandes cidades brasileiras do Sul e Sudeste não são nenhum modelo de desenvolvimento a ser seguido, quando o assunto é paz, segurança, saúde, saneamento, educação e alegria para todos e não apenas para alguns. Não ficamos mais perto de Brasília, ficamos mais longe de nós mesmos devido ao transtorno que a mudança vem causando em nossas vidas.
Precisamos ir além de medidas equivocadas como esta do fuso horário e a Medida Provisória 422, que legaliza a “grilagem” de terras na Amazônia, também aprovada pelo Congresso. Esta aliás aprovada, mas muito bem questionada por todos os nossos senadores, em especial a senadora Marina Silva, do PT-AC.
A eficácia dessa mudança é a mesma do horário de verão na Amazônia: mais desperdício de energia elétrica e humana. Agora também de prestígio político.
FRACASSO RELIGIOSO
O novo horário é uma agressão à natureza e ao povo amazônico. Expõe crianças, jovens e adultos à criminalidade, provoca esgotamento físico, altera hábitos seculares da população, prejudica o rendimento das pessoas e pode causar inúmeros outros malefícios. Em Cruzeiro do Sul, por exemplo, os efeitos já foram evidentes em sua maior festa. Não é preciso uma pesquisa mais apurada para perceber que este foi um dos mais fracos novenários de Nossa Senhora da Glória de todos os tempos. As novenas, leilões e arraial contaram com pouca participação da população e a grande procissão do dia 15 de agosto, normalmente incomparável a todas as outras, mais parecia uma romaria qualquer.
No ano passado, falou-se em 30 mil participantes. Em 2008, 10 mil. Ou seja, um terço. A Igreja Católica, adotando o horário novo, deixou missas, novenas e procissões com uma hora de antecedência. Resultado: fracasso no novenário e frustração de tantos que gostariam de manifestar a sua fé de maneira tranquila, no frescor da brisa suave da noite, sob a lua, e não sob o sol e o calor escaldantes do verão amazônico. Uma pena..
Para a procissão não perder totalmente o brilho de outrora, os organizadores estrategicamente obrigaram-se a paradas mais demoradas e caminhada mais lenta para que a noite chegasse e com ela a beleza da lua e das luzes de velas iluminando as avenidas de Cruzeiro e o Morro da Glória. Muitos esqueceram as velas, outros desistiram, outros ainda perderam a hora, e a festa que tanto orgulha o Vale do Juruá nem de longe lembrava o fascínio dos anos passados. Aliás, no novenário e em todos os dias, estamos rezando menos. A histórica e cotidiana missa das seis na catedral passou para seis e meia (5:30 no fuso natural). Quem se arrisca a sair no escuro a não ser para trabalhar e estudar porque é obrigado? Ficamos mais distante da Igreja e ela de nós.
“UM HORROR”
Estamos todos sofrendo, crianças, adultos e idosos. Acordamos ainda no escuro e cansados para começar o dia, como se morássemos em São Paulo ou qualquer outra metrópole e tivéssemos que levar duas horas para chegar ao trabalho ou à escola. Se quiséssemos viver assim, estaríamos morando por lá. Mas está provado no Brasil que os brasileiros do interior têm mais qualidade de vida que os das grandes capitais em muitos aspectos. Principalmente na simplicidade com que encaram a vida, o que é uma marca do povo da Amazônia. Por que agredir nossa natureza humana dessa forma? Queremos a tranquilidade da nossa Amazônia, com nossos costumes, e não a loucura, a violência e a guerra do Rio de Janeiro, São Paulo ou Salvador.
Basta um rápido olhar à Internet para perceber os transtornos que a população está enfrentando. De Óbidos, no Pará, passando por Tabatinga, no Amazonas, ao Vale do Juruá, há um só desabafo: - Esse horário está um horror! Algumas prefeituras resolveram continuar com o horário anterior atrasando em uma hora o início das aulas nas escolas do município e do trabalho nas repartições, como é caso de Cruzeiro do Sul (8 horas), Rodrigues Alves e Mâncio Lima, todos correndo o risco de até fechar algumas escolas na zona rural por causa do abandono dos alunos, expostos a marginais e ataques de animais. O comércio também adotou o horário das Prefeituras e os bancos atrasaram em uma hora, começando o atendimento ao público às 9 horas. Quem depende do Governo do Estado, porém, continua na mesma. De tanta reclamação de alunos e pais, puseram o começo das aulas nas escolas estaduais meia hora mais tarde (7 e meia). E os órgãos estaduais e federais continuam às 7 horas (6 horas no fuso normal). Uma verdadeira confusão para quem tem que trabalhar às 7 e deixar os filhos na escola às 7 e meia, ou ainda trabalhar às 9, como é caso dos bancários, sem falar em todas as outras implicações físicas e psicológicas que podem advir do esgotamento físico.
Com este horário, dormimos menos, trabalhamos menos, rendemos menos, caminhamos menos, rezamos menos e bebemos mais. Na verdade, ficou ideal para quem não se importa de chegar atrasado ao trabalho e à escola e adora sair mais cedo para tomar cerveja e fazer travessuras. Até a caminhada da tarde, na saída do trabalho, perdeu a alegria por causa do sol e do calor.
Considero a liberdade um bem inerente à condição humana. Não é à toa que a pior punição é a privação dela. E a liberdade de expressão é um dos seus expoentes. Eis porque o Ministério da Justiça, o Congresso Nacional e os meios de comunicação tinham que se entender melhor, preservando, sobretudo, os valores democráticos e cidadãos do povo brasileiro, em especial dos paraenses, amazonenses e acreanos.
A atitude do senador do Acre, sem qualquer cerimônia, passou uma borracha em séculos de esforços, enganos e descobertas dos maiores cientistas da humanidade. Estudos que revolucionaram a navegação, o comércio, a ciência e a economia no mundo, na Idade Média. As longitudes, distância angular entre os meridianos da Terra, e as coordenadas geográficas permitiram uma orientação mais precisa, principalmente porque são baseadas na velocidade extremamente regular do movimento de rotação da Terra em torno do próprio eixo. Proporcionar uma posição com exatidão, observando exaustivamente o tempo físico, o mapa do céu, a situação da Lua em relação ao Sol e os movimentos dos astros revolucionou a tecnologia, a matemática e o nosso modo de ver o mundo. Cálculos matemáticos que propiciaram investigações intensas em torno do tempo e das distâncias e que confirmam a rígida sincronia entre a Terra, seus componentes naturais e os corpos celestes não serão alterados por força de uma lei humana ou um decreto.
Que nosso repúdio e indignação a agressão à natureza e à ciência e ao autoritarismo e descaso com que fomos tratados possam resultar no que ocorreu com Portugal ao ingressar na União Européia em 1992. O impacto foi tão profundo na vida dos portugueses que o Governo lusitano foi obrigado a retornar ao fuso horário natural. Mas Portugal é 1º Mundo, Europa, democracia, e o Brasil, 3º... E as entidades e instituições representantes dos vários segmentos da população do Acre, do Amazonas e do Pará – sindicatos, centrais sindicais, federações e confederações de trabalhadores, etc – mais parecem porta-vozes do senador do que do povo desses Estados. São situações como esta que nos fazem nos questionar como pode haver uma confiança mútua entre o eleitor e o político, o público e suas entidades representativas.
A palavra que silenciam a nosso favor é o grito que ruborizamos suas faces avermelhadas: “Queremos nosso horário de volta!” Chega de sairmos a cada dia do nosso estado habitual tão naturalmente incorporado ao nosso viver. Chega!!
*É formada em Comunicação Social-UFAM, Letras/Inglês-UFAC e pós-graduanda em Gestão Ambiental em Sistemas Florestais-UFLA-MG
Socorro Silva*
Foi com as mãos atadas, a garganta seca e os olhos cansados e assustados que acordamos no último dia 24 de junho. Não era um dia comum: depois de quase cem anos habituados ao fuso horário natural, biológico e solar, baseado nas longitudes e movimentos de rotação da Terra, fomos obrigados a adiantar em uma hora nossos relógios. Entrava em vigor a Lei nº 11.662, de 24 de abril de 2008, de autoria do senador Tião Viana (PT-AC), que extinguia o 4º fuso horário brasileiro (com abrangência em todo o Estado do Acre e sudoeste do Amazonas), unificava o horário do Estado do Pará igualando-o ao de Brasília e nos colocava com a mesma hora dos outros Estados da Amazônia, inclusive de Mato Grosso, embora estejamos a mais de 2 mil quilômetros de Cuiabá.
Sem consulta à população atingida no Acre, no Amazonas e no Pará, o Congresso Nacional aprovou e o Presidente da República sancionou a lei sob alegação de “integração desses Estados ao Sistema Financeiro Nacional e facilidade nas telecomunicações”. A consistência dessa alegação obviamente significa o atendimento aos interesses de uma minoria endinheirada e não ao povo em geral, que passa à margem do grande capital. Com isso, o Brasil passou a ter apenas três fusos horários, contrariando a lógica do tempo e da geografia, independente das enormes distâncias que nos separam de leste a oeste, do nascer e do pôr-do-sol. Para a maioria dos parlamentares, nossos hábitos adquiridos ao longo de cem anos, nossa saúde e segurança são apenas moedas de troca de apoio político e financeiro.
Estranhamente esta mudança ocorre pouco depois de começar a vigorar a Portaria nº 1.220/07 do Ministério da Justiça, que obriga as emissoras de TV do país a adequar sua programação de acordo com a classificação indicativa para cada idade aos fusos horários brasileiros, mais especificamente aos Estados do Norte que se encontravam no 3º e no 4º fusos, respectivamente a uma e duas horas em relação às sedes centrais das grandes geradoras. Foi mais fácil passar por cima do povo do Acre, do Amazonas e do Pará do que fazer a Globo, a Record, a Band e o SBT cumprirem a determinação da Justiça. Atitude típica de ditaduras como a chinesa, cujo país, o 2º maior do mundo, tem apenas um fuso horário, e, em contrapartida, completamente contrária a de democracias como a americana e a canadense, onde os canais de TV se adequam aos fusos horários, e não o contrário.
AS CRIANÇAS E A TV
Mudar o relógio evitou maiores gastos às emissoras, deixou-as quites com o Ministério da Justiça, mas não resguarda nossas crianças. Talvez saídas mais diplomáticas como uma pequena adequação nas novelas das 7 e das 8 e retardamento no horário de filmes pornôs (Band) e não propriamente a gravação da programação poderiam surtir efeito mais benéfico. Até porque hoje as crianças dormem mais tarde, bem depois dos pais e o novo horário até facilitou. Não há nada mais tão impróprio na TV que elas não vejam sem censura na Internet e na realidade cotidiana. O que estão transmitindo à população do Acre, Amazonas e Rondônia é uma gravação de má qualidade, com interrupções bruscas de programas, noticiários, novelas e publicidade, e quase nenhuma transmissão ao vivo. O melhor é recorrer a antena parabólica e a TV por assinatura.
Por isso, mais do que nunca muitos valores perdidos têm que ser resgatados pelas famílias, e os meios de comunicação devem ter consciência do alcance social da veiculação de suas informações. Para isso, elegemos representantes, não para se render às imposições dos lobbies que cercam o Planalto, tampouco para algemar a liberdade de expressão ou agredir uma população inteira em seus hábitos e costumes.
Afinal de contas, a imposição do Ministério da Justiça para atender ao Estatuto da Criança e do Adolescente pretendia o quê, se o relógio foi alterado, mas o tempo não mudou, o sol não se adiantou nem a noite, e as crianças continuam dormindo no horário do fuso natural, longitudinal?
EQUÍVOCO
Trocamos seis por meia dúzia. Do ponto de vista social e cultural, nenhum benefício tivemos e ainda sentimos arder na alma a convicção de que o interesse público continua sendo submetido ao privado. E nós que pensamos que isso tinha mudado. Que nada... Sentimo-nos como uma massa esquálida, ignorante e burra, acuada num arraial de Canudos no meio da floresta amazônica, impotente e assustada diante de mais um equívoco da República, e traídos pelo próprio Antônio Conselheiro. Sem defesa no Congresso, a quem cabia o papel de questionar o Projeto de Lei do senador acreano e suas implicações e exigir maiores esclarecimentos sobre o desejo das populações dos Estados atingidos, restou-nos a frustração e a perplexidade perante tamanha afronta à democracia, tal como nossos ancestrais nordestinos.
Sabemos que estamos definitivamente condenados a civilização, já dizia Euclides da Cunha. E, apesar das diferenças, caminhamos para o mesmo fim, com o mesmo ímpeto civilizatório. Porém, nesse Brasil continental, contrastes aviltantes no clima, no relevo, na vegetação, no tempo, na cultura, na linguagem, no desenvolvimento, na distância evidenciam condições regionais incomparáveis. Enquanto no sul a temperatura média oscila entre 17º e 20º e as estações são bem definidas, a exemplo da Europa, no Norte do Brasil, o calor é inclemente o ano inteiro e nossas estações, apenas duas, são orientadas pelo sol e a linha do Equador, que ditam o ritmo das florestas e das chuvas, que, por sua vez, regulam as nossas vidas. Aqui o sol nasce e se põe às 6 horas (manhã e tarde) e não às 5 ou 7.
Não é uma mudança de horário que nos aproximará do (ex) sul maravilha e nem nosso progresso depende do fuso horário de Brasília, Rio ou São Paulo. Além do mais, as grandes cidades brasileiras do Sul e Sudeste não são nenhum modelo de desenvolvimento a ser seguido, quando o assunto é paz, segurança, saúde, saneamento, educação e alegria para todos e não apenas para alguns. Não ficamos mais perto de Brasília, ficamos mais longe de nós mesmos devido ao transtorno que a mudança vem causando em nossas vidas.
Precisamos ir além de medidas equivocadas como esta do fuso horário e a Medida Provisória 422, que legaliza a “grilagem” de terras na Amazônia, também aprovada pelo Congresso. Esta aliás aprovada, mas muito bem questionada por todos os nossos senadores, em especial a senadora Marina Silva, do PT-AC.
A eficácia dessa mudança é a mesma do horário de verão na Amazônia: mais desperdício de energia elétrica e humana. Agora também de prestígio político.
FRACASSO RELIGIOSO
O novo horário é uma agressão à natureza e ao povo amazônico. Expõe crianças, jovens e adultos à criminalidade, provoca esgotamento físico, altera hábitos seculares da população, prejudica o rendimento das pessoas e pode causar inúmeros outros malefícios. Em Cruzeiro do Sul, por exemplo, os efeitos já foram evidentes em sua maior festa. Não é preciso uma pesquisa mais apurada para perceber que este foi um dos mais fracos novenários de Nossa Senhora da Glória de todos os tempos. As novenas, leilões e arraial contaram com pouca participação da população e a grande procissão do dia 15 de agosto, normalmente incomparável a todas as outras, mais parecia uma romaria qualquer.
No ano passado, falou-se em 30 mil participantes. Em 2008, 10 mil. Ou seja, um terço. A Igreja Católica, adotando o horário novo, deixou missas, novenas e procissões com uma hora de antecedência. Resultado: fracasso no novenário e frustração de tantos que gostariam de manifestar a sua fé de maneira tranquila, no frescor da brisa suave da noite, sob a lua, e não sob o sol e o calor escaldantes do verão amazônico. Uma pena..
Para a procissão não perder totalmente o brilho de outrora, os organizadores estrategicamente obrigaram-se a paradas mais demoradas e caminhada mais lenta para que a noite chegasse e com ela a beleza da lua e das luzes de velas iluminando as avenidas de Cruzeiro e o Morro da Glória. Muitos esqueceram as velas, outros desistiram, outros ainda perderam a hora, e a festa que tanto orgulha o Vale do Juruá nem de longe lembrava o fascínio dos anos passados. Aliás, no novenário e em todos os dias, estamos rezando menos. A histórica e cotidiana missa das seis na catedral passou para seis e meia (5:30 no fuso natural). Quem se arrisca a sair no escuro a não ser para trabalhar e estudar porque é obrigado? Ficamos mais distante da Igreja e ela de nós.
“UM HORROR”
Estamos todos sofrendo, crianças, adultos e idosos. Acordamos ainda no escuro e cansados para começar o dia, como se morássemos em São Paulo ou qualquer outra metrópole e tivéssemos que levar duas horas para chegar ao trabalho ou à escola. Se quiséssemos viver assim, estaríamos morando por lá. Mas está provado no Brasil que os brasileiros do interior têm mais qualidade de vida que os das grandes capitais em muitos aspectos. Principalmente na simplicidade com que encaram a vida, o que é uma marca do povo da Amazônia. Por que agredir nossa natureza humana dessa forma? Queremos a tranquilidade da nossa Amazônia, com nossos costumes, e não a loucura, a violência e a guerra do Rio de Janeiro, São Paulo ou Salvador.
Basta um rápido olhar à Internet para perceber os transtornos que a população está enfrentando. De Óbidos, no Pará, passando por Tabatinga, no Amazonas, ao Vale do Juruá, há um só desabafo: - Esse horário está um horror! Algumas prefeituras resolveram continuar com o horário anterior atrasando em uma hora o início das aulas nas escolas do município e do trabalho nas repartições, como é caso de Cruzeiro do Sul (8 horas), Rodrigues Alves e Mâncio Lima, todos correndo o risco de até fechar algumas escolas na zona rural por causa do abandono dos alunos, expostos a marginais e ataques de animais. O comércio também adotou o horário das Prefeituras e os bancos atrasaram em uma hora, começando o atendimento ao público às 9 horas. Quem depende do Governo do Estado, porém, continua na mesma. De tanta reclamação de alunos e pais, puseram o começo das aulas nas escolas estaduais meia hora mais tarde (7 e meia). E os órgãos estaduais e federais continuam às 7 horas (6 horas no fuso normal). Uma verdadeira confusão para quem tem que trabalhar às 7 e deixar os filhos na escola às 7 e meia, ou ainda trabalhar às 9, como é caso dos bancários, sem falar em todas as outras implicações físicas e psicológicas que podem advir do esgotamento físico.
Com este horário, dormimos menos, trabalhamos menos, rendemos menos, caminhamos menos, rezamos menos e bebemos mais. Na verdade, ficou ideal para quem não se importa de chegar atrasado ao trabalho e à escola e adora sair mais cedo para tomar cerveja e fazer travessuras. Até a caminhada da tarde, na saída do trabalho, perdeu a alegria por causa do sol e do calor.
Considero a liberdade um bem inerente à condição humana. Não é à toa que a pior punição é a privação dela. E a liberdade de expressão é um dos seus expoentes. Eis porque o Ministério da Justiça, o Congresso Nacional e os meios de comunicação tinham que se entender melhor, preservando, sobretudo, os valores democráticos e cidadãos do povo brasileiro, em especial dos paraenses, amazonenses e acreanos.
A atitude do senador do Acre, sem qualquer cerimônia, passou uma borracha em séculos de esforços, enganos e descobertas dos maiores cientistas da humanidade. Estudos que revolucionaram a navegação, o comércio, a ciência e a economia no mundo, na Idade Média. As longitudes, distância angular entre os meridianos da Terra, e as coordenadas geográficas permitiram uma orientação mais precisa, principalmente porque são baseadas na velocidade extremamente regular do movimento de rotação da Terra em torno do próprio eixo. Proporcionar uma posição com exatidão, observando exaustivamente o tempo físico, o mapa do céu, a situação da Lua em relação ao Sol e os movimentos dos astros revolucionou a tecnologia, a matemática e o nosso modo de ver o mundo. Cálculos matemáticos que propiciaram investigações intensas em torno do tempo e das distâncias e que confirmam a rígida sincronia entre a Terra, seus componentes naturais e os corpos celestes não serão alterados por força de uma lei humana ou um decreto.
Que nosso repúdio e indignação a agressão à natureza e à ciência e ao autoritarismo e descaso com que fomos tratados possam resultar no que ocorreu com Portugal ao ingressar na União Européia em 1992. O impacto foi tão profundo na vida dos portugueses que o Governo lusitano foi obrigado a retornar ao fuso horário natural. Mas Portugal é 1º Mundo, Europa, democracia, e o Brasil, 3º... E as entidades e instituições representantes dos vários segmentos da população do Acre, do Amazonas e do Pará – sindicatos, centrais sindicais, federações e confederações de trabalhadores, etc – mais parecem porta-vozes do senador do que do povo desses Estados. São situações como esta que nos fazem nos questionar como pode haver uma confiança mútua entre o eleitor e o político, o público e suas entidades representativas.
A palavra que silenciam a nosso favor é o grito que ruborizamos suas faces avermelhadas: “Queremos nosso horário de volta!” Chega de sairmos a cada dia do nosso estado habitual tão naturalmente incorporado ao nosso viver. Chega!!
*É formada em Comunicação Social-UFAM, Letras/Inglês-UFAC e pós-graduanda em Gestão Ambiental em Sistemas Florestais-UFLA-MG
1 Comments:
Exposição brilhante! Perfeita! Aliás, como está a tramitação do decreto legislativo que submete a mudança à consulta popular? Já está garantido?
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