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02 junho 2009

A MORTE DO CONTADOR DE HISTÓRIA

"...Entre uma baforada e outra num cigarro porronca no canto da boca, o seringueiro contador de história narrava o causo nos mínimos detalhes deixando a meninada de boca aberta. Com o coração acelerado, ouvidos atentos e olhos arregalados, na imaginação da gurizada passava um filme de terror."

Pitter Lucena*

No Acre tudo acontece, aliás, também é terra do já foi. Nesses 40 e poucos anos de existência terrena venho escutando histórias e mais histórias de pessoas mais velhas sobre a nossa terrinha acreana, antes da chegada da televisão, que o jornalista boêmio Stanislau Ponte Preta apelidou de “máquina de fazer doido”.

No Rio Branco na década de 70, época de que tenho boas recordações, as pessoas dormiam com as janelas das casas abertas sem medo dos apreciadores das coisas alheias. Os roubos que mais aconteciam naquela época eram somente de galinhas. Os donos das penosas ficavam fulos da vida, mas nada podiam fazer para recuperar o galináceo, que já deveria estar na barriga de algum espertalhão.

A vida era mais divertida. Sempre à noitinha as famílias se reuniam na varanda da casa para contar histórias. As crianças se acotovelavam em algum lugar ou sentavam no chão para ouvir as histórias preferidas: de assombração. Os adultos viajavam na imaginação criando fatos, que segundo eles, de pura verdade, sobre encontros com almas penadas e bichos da mata como o famoso Mapinguari.

Entre uma baforada e outra num cigarro porronca no canto da boca, o seringueiro contador de história narrava o causo nos mínimos detalhes deixando a meninada de boca aberta. Com o coração acelerado, ouvidos atentos e olhos arregalados, na imaginação da gurizada passava um filme de terror. Na maioria das vezes, quando um contador acabava uma história, já havia outro pronto para começar a narrativa de mais uma aventura.

Por volta das onze horas da noite, quando as histórias chegavam ao fim, começava os momentos de tortura da molecada. Antes de ir para a cama ou rede, as crianças tinham que fazer aquela necessidade fisiológica líquida no fundo do quintal, já que somente poucas casas havia banheiro interno. O tormento se instalava. Muitos com medo de assombração, principalmente porque o horário chegava à meia noite, mentiam aos pais dizendo que estavam sem vontade de ir ao banheiro e molhavam a cama.

No dia seguinte quando a criançada se encontrava depois da aula para brincar de peteca, pião, papagaio e tantas outras, o assunto em pauta continuava da assombração contada na noite passada. Durante o dia os meninos se transformavam em valentões e machões que não tinham medo de nada. Mas, ao cair da noite, se recolhiam de mansinho para casa, como um cachorrinho com o rabo entre as pernas, para mais uma sessão de histórias criadas pela imaginação dos velhos seringueiros, mestres do conhecimento dos mistérios da floresta.

Nessa época, televisão era coisa de gente rica. Mas, em apenas uma década, o maldito aparelho de TV matou o contador de histórias. Para comprar a “máquina de fazer doido”, à época grande coqueluche, crianças passaram fome em frente à TV enquanto os pais pagavam o aparelho em caras prestações. A partir daí começou a transformação de caráter de nossas crianças. É na televisão que a juventude aprendem a arte do crime e da marginalidade. Como seu quintal, somos obrigados a engolir as baboseiras do “primeiro mundo”. O que deveria ser um canal de educação se transformou numa linha direta para o esgoto do subdesenvolvimento.

Diante das lembranças maravilhosas e da realidade que nos assusta, não há dúvidas de que, há 20 e poucos anos atrás, a vida tinha mais alegria, mais significado, mais emoção. Hoje nos resta a leitura de um bom livro ou, como fazem os preguiçosos, ligar o aparelho de TV, que não exige raciocínio para decifrar conteúdos. A vida ficou muito pobre, depois que mataram os nossos contadores de histórias, suas lendas e seus heróis.

*Pitter Lucena é jornalista.