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26 agosto 2009

CRIME SEXUAL ANTIGAMENTE ERA SINÔNIMO DE CASAMENTO

Processo de crime sexual era resolvido com casamento

Por Beatriz Flausino - beatriz.flausino@usp.br
Agência USP de Notícias

A grande maioria dos processos de crimes sexuais, datados entre o fim do século XIX e começo do século XX, se resolviam com casamento entre a vítima e o acusado. Hoje em dia isso pode parecer estranho, mas na época os processos desse tipo geralmente tinham a finalidade de requerer o casamento. Rafael De Tilio, em doutorado de psicologia na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, analisou os autos de crimes sexuais da comarca de Ribeirão Preto, de 1871 até 1979. “Apesar do perfil dos crimes denunciados e da legislação ter mudado, a atitude e o comportamento esperados da vítima e do acusado não mudaram nos quase 100 anos analisados”, explica.

De 1871 até 1940, os principais crimes sexuais queixados, ou seja, que eram denunciados, eram os crimes de defloramento. O crime de defloramento dá mais ênfase na perda da virgindade anatômica. A partir da década de 1940, o perfil dos processos de crimes sexuais começa a se transformar. Em 1942, passa a vigorar a nova legislação sobre o assunto.

O crime que passou a vigorar depois de 1942 era o crime de sedução, que não envolve somente o físico, mas também a “virgindade moral”. Nesse crime há algum tipo de promessa de casamento para a mulher vitimada. O que definia crimes de estupro, até 1942, era a idade da vítima. Menores de 16 anos eram sempre consideradas vítimas de estupro, não fazendo diferença se elas tiveram vontade ou não de ter relação sexual e a resolução era a mesma, geralmente o casamento. Até 1940, apenas 3 dos 100 casos analisados manifestavam violência a contra gosto.

A nova legislação de 1942 mudou o perfil dos crimes sexuais. A idade para uma mulher ser considerada vítima de estupro passou a ser de menores de 14 anos; os processos a partir dessa data também mudaram. Ao invés de buscarem o casamento, eles passaram a ter conflito, passou a haver condenados e absolvidos e as soluções pelo casamento ficaram gradativamente mais raras.

Outra mudança importante foi que até 1940, se o acusado se casasse com a vítima o processo acabava ali, mas se a vítima casasse com outra pessoa o processo continuava. Na nova legislação, se a mulher casasse com qualquer homem, não necessariamente o acusado, o processo acabava. “É como se o fato de casar, com quem quer que seja, já servisse de ressarcimento para a vítima”, diz De Tilio.

Representações de gênero

Em todo o período analisado por De Tilio, apesar das grandes mudanças sociais observadas, de a relação entre homens e mulheres ter mudado e de as mulheres terem se tornado mais independentes, as representações de gênero manifestadas nos autos dos processos se mantiveram as mesmas. Representações de gênero são os estereótipos sociais com que os sujeitos são identificados.

“Da mulher é esperado, [nesse tipo de julgamento] que se case e seja honrada; do homem, que ele se declare trabalhador e que não seja violento”, afirma o psicólogo. Por essas razões, quando os processos passaram a ser conflituosos, os homens passaram a acusar as vítimas de terem “se oferecido” a eles, numa tentativa de desmoralização e o mesmo por parte das vítimas. “A Justiça esperava esse comportamento por parte dos envolvidos” , explica o pesquisador.

De Tilio também analisou crimes sexuais contra as crianças. Nesses, houve uma grande mudança. O psicólogo explica que a forma como a infância era encarada mudou muito a partir das décadas de 1930 e 1940 no Brasil. Segundo ele, “a infância passou a ser vista como um período de desenvolvimento incompleto, e que a criança precisa ser protegida”. Até esse período a infância era considerada mais curta, até os 10, 12 anos. Com o passar do tempo esse período se estendeu até os 14 a 16 anos. “A partir de 1940 a condenação do acusado nos casos de abusos contra crianças se torna uma constante e o agressor desse tipo passa a ser questionado na sua sanidade”, afirma.

Com a legislação de 1942, começam a aparecer crimes sexuais contra homens também, em menor número. Esses crimes denunciados se dão geralmente em instituições totais, como instituições psiquiátricas e presídios. De Tilio considera que os homens começam a fazer queixas formais desses crimes, porque o corpo passou a ser encarado, como “um espaço sagrado, que não pode ser violado”. Nesses casos ele explica que os autos demonstram um certo preconceito contra esses homens. “Há uma desconfiança de que esse homem abusado é homossexual”. Além disso, o pesquisador diz que nos crimes sexuais contra homens (atentado violento ao pudor, e outros) há menos tempo de apelação e a pena é menor. “Você pode interpretar que violentar um homem é menos danoso que violentar uma mulher.”

A pesquisa de De Tilio não tem caráter estatístico já que só aborda os crimes queixados, ou seja, que foram denunciados formalmente. “Só porque a maioria dos processos até 1940 visava o casamento não quer dizer que naquela época não havia vítimas de outros tipos”, explica.

A tese de doutorado Inquéritos policiais e processos de crimes sexuais: estratégias de gênero e representações da sexualidade foi defendida no último dia 7. A orientação do trabalho foi da professora Regina Helena Lima Caldana, da FFCLRP.