MANAUS E O DEBATE MÉDICO NO INÍCIO DO SÉCULO 20
Tese mostra que Manaus estava na vanguarda do debate médico no início do século 20
Ricardo Valverde
[Mercado Público de Manaus, nos primeiros anos do século 20 (Foto: Biblioteca Pública do Amazonas)]
Distante da maioria dos brasileiros, Manaus ainda está, para muitos, associada exclusivamente a imagens relativas à Floresta Amazônica, aos índios e a seus caudalosos rios. Se, em pleno 2009, esta identidade ainda permanece forte e praticamente a única para milhões de brasileiros, o que pensar da Manaus da virada do século 19 para o 20? Demolindo o conceito de que a cidade fosse uma periferia remota, em especial no campo do saber científico, o pesquisador Júlio Schweickardt, que acaba de defender a tese Ciência, nação e região: as doenças tropicais e o saneamento no Estado do Amazonas (1890-1930), mostra que a capital amazonense estava na vanguarda do debate médico a respeito de enfermidades como a febre amarela e a malária.
Na capital amazonense, além das ações de saneamento levadas a cabo pelas autoridades, pesquisadores discutiam a transmissão e as formas de combater as moléstias dentro das concepções mais avançadas da época. O debate incluía também pesquisadores estrangeiros, que representavam instituições científicas que visitavam o Amazonas para estudar as doenças tropicais e se engajaram no esforço de sanear a cidade.
O trabalho, defendido no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e orientado pela historiadora Nísia Trindade, consumiu quatro anos de dedicação de Schweickardt, que desde 2002 é servidor do Centro de Pesquisa Leônidas e Maria Deane, a Fiocruz Amazônia, em Manaus. Formado em teologia, ele foi pastor luterano e defendeu dissertação de mestrado em ciências sociais, pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), em que investigou os rezadores de Manaus. Embora não seja mais pastor, Schweickardt continua atuando, agora como leigo, em uma comunidade luterana da periferia da cidade. O interesse sobre a história da saúde pública na região surgiu a partir de conversas com colegas da Fiocruz e também pela necessidade de compreender as práticas científicas no Amazonas.
"O saneamento de Manaus começa a partir do final do século 19, quando as chamadas ‘doenças do clima quente’ passaram a conflitar com as imagens de civilização que as autoridades políticas queriam construir. Doenças como a febre amarela afetavam diretamente as comunidades estrangeiras que viviam em Manaus, como ingleses, alemães, italianos e outros, que foram atraídas pelo ciclo da borracha", diz Schweickardt. A mudança na concepção das doenças, ocorrida na mesma época, quando enfermidades como a malária e a febre amarela são identificadas como sendo transmitidas por mosquitos, alterou as políticas públicas de combate dessas doenças. Também foram estabelecidas naquele momento as escolas de medicina tropical de Londres e Liverpool. Assim, não tardou para que médicos europeus desembarcassem no Norte do país para estudar essas doenças e seus ciclos de transmissão. "As novas descobertas e a institucionalização da medicina tropical tiveram um impacto sobre as medidas de saneamento e o mosquito passou a ser combatido de forma sistemática", conta Schweickardt.
Manaus virou um dos centros do debate sobre medicina tropical
Nos primeiros anos do século 20, a vitoriosa experiência americana de combate aos mosquitos em Havana, quando se conseguiu eliminar a febre amarela e controlar a malária, contribuiu para que os trópicos sofressem intervenções sanitárias, e Manaus, como um lugar propriamente tropical, não ficou fora disto. "O momento coincidia com o auge e o declínio da economia da borracha, o que fez da cidade um importante centro de repercussão da cultura e das ideias científicas. Com isso, analiso na tese como os conceitos da medicina tropical foram apropriados por médicos do Amazonas e como foram colocados em prática os princípios daquela disciplina, com o objetivo de realizar a profilaxia da febre amarela e da malária", diz Schweickardt.
O auge do ciclo econômico baseado na borracha transformou Manaus em uma cidade moderna, com as mesmas benfeitorias que chegavam ao Rio de Janeiro, a então capital federal. Com a riqueza vinda do extrativismo, a cidade passou por uma época de mudanças radicais no final do século 19, quando o engenheiro militar Eduardo Ribeiro se tornou governador do Amazonas. Ele dizia que havia encontrado uma grande aldeia e a transformado em uma cidade moderna. São dessa época os primeiros aterros de igarapés, a abertura de grandes avenidas e boulevares, o início do serviço de bondes, a luz elétrica, as pontes de ferro, a construção do porto, o calçamento das ruas, a rede de água encanada e de esgotamento sanitário, o telefone, o telégrafo.
O desenvolvimento econômico proporcionou não somente a circulação de bens, mas também a de ideias e permitiu o surgimento de um núcleo de médicos que estava a par das discussões científicas mais avançadas a respeito do combate das doenças tropicais. Os médicos de Manaus publicavam em periódicos, participavam de congressos, mantinham intercâmbio com profissionais do Rio e principalmente de países europeus. "E eles encomendavam equipamentos e materiais que vinham direto da Europa. Manaus também contava com representantes de livrarias francesas que importavam obras médicas e de referência atualizadas".
Ingleses vinham estudar as doenças típicas da região
As duas expedições organizadas pelas escolas de medicina tropical da Inglaterra – a de 1900, a Belém, e a de 1905-9, a Manaus – estreitaram os laços entre os médicos dos dois lados do Atlântico. Um desses médicos ingleses, Wolferstan Thomas, retornou a Manaus em 1910 e permaneceu na cidade até 1931. Ele montou um laboratório de medicina tropical e costumava receber colegas de Liverpool que vinham estudar as doenças típicas da região em Manaus. "Esses profissionais, suas atividades, seus laboratórios, os artigos publicados e suas pesquisas fizeram da cidade um dos centros do debate da medicina tropical", observa Schweickardt.
De acordo com o autor da tese, "o saneamento do Amazonas foi proposto e realizado por diferentes comissões formadas por médicos, cientistas e engenheiros de Manaus, do Rio e de instituições internacionais. Essa ação teve como pano de fundo o ambiente e o regime das águas: na capital, os igarapés, e no interior a imensa rede de rios e lagos. O Amazonas foi, portanto, um laboratório para a pesquisa e a experimentação das ideias científicas da época. Em relação à nação, a região afirmou a sua autonomia e a sua identidade, por meio da ação de profissionais que refletiram sobre o saneamento do estado". Schweickardt não esquece, porém, das passagens de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas pelo Norte do Brasil e os relatórios que deixaram acerca da situação sanitária e as propostas contidas nesses documentos. "Foram diagnósticos corretos, mas que somente anos mais tarde foram aplicados", conta ele.
O esforço de todos esses personagens levou à extinção da febre amarela em Manaus em 1913, em trabalho coordenado por uma comissão federal. Nos primeiros 20 anos estudados por Schweickardt, as ações de saneamento estiveram praticamente restritas à capital, com algumas poucas incursões ao interior do estado. Essa situação mudou a partir da constituição do Serviço de Saneamento e Profilaxia Rural, que transformou o posto rural em itinerante. Um contrato da União com o Amazonas permitiu o saneamento de todo o estado, com uma estrutura que estabeleceu postos nas calhas dos principais rios, com bases fixas e embarcações que percorriam as comunidades ribeirinhas.
Para Schweickardt, um gaúcho de Porto Alegre que mora em Manaus há 17 anos e estudou profundamente a história da capital naquelas quatro décadas não apenas em livros e arquivos, mas também percorrendo bairros e ruas, a cidade "nunca mais será a mesma, para mim, depois desta tese". O pesquisador, que chegou a alugar uma voadeira para percorrer os igarapés, vê agora a cidade de outra forma, com um novo significado. "As ruas da velha Manaus não têm mais o fantasma da febre amarela, nem têm o glamour dos tempos da Belle Époque, mas ainda guardam os prédios e nomes que nos fazem avivar a memória. As ruas de tantas intervenções profiláticas, com fumigações, petrolagens, claytonagens e desinfecções, são novamente visitadas por outra doença que atinge a cidade, a dengue. Assim, Manaus não é a mesma, mas ironicamente, continua a mesma, apresentando problemas semelhantes, pois os mosquitos continuam sendo combatidos, exatamente como era feito há cem anos".
Schweickardt diz que é necessário olhar para a história para melhor compreender os processos atuais. "A história das políticas, a história da ocupação do espaço, a história das intervenções médicas, a história da pesquisa científica. Assim poderemos, pesquisadores e governantes, entender esta região com características tão peculiares".
Ricardo Valverde
[Mercado Público de Manaus, nos primeiros anos do século 20 (Foto: Biblioteca Pública do Amazonas)]
Distante da maioria dos brasileiros, Manaus ainda está, para muitos, associada exclusivamente a imagens relativas à Floresta Amazônica, aos índios e a seus caudalosos rios. Se, em pleno 2009, esta identidade ainda permanece forte e praticamente a única para milhões de brasileiros, o que pensar da Manaus da virada do século 19 para o 20? Demolindo o conceito de que a cidade fosse uma periferia remota, em especial no campo do saber científico, o pesquisador Júlio Schweickardt, que acaba de defender a tese Ciência, nação e região: as doenças tropicais e o saneamento no Estado do Amazonas (1890-1930), mostra que a capital amazonense estava na vanguarda do debate médico a respeito de enfermidades como a febre amarela e a malária.
Na capital amazonense, além das ações de saneamento levadas a cabo pelas autoridades, pesquisadores discutiam a transmissão e as formas de combater as moléstias dentro das concepções mais avançadas da época. O debate incluía também pesquisadores estrangeiros, que representavam instituições científicas que visitavam o Amazonas para estudar as doenças tropicais e se engajaram no esforço de sanear a cidade.
O trabalho, defendido no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e orientado pela historiadora Nísia Trindade, consumiu quatro anos de dedicação de Schweickardt, que desde 2002 é servidor do Centro de Pesquisa Leônidas e Maria Deane, a Fiocruz Amazônia, em Manaus. Formado em teologia, ele foi pastor luterano e defendeu dissertação de mestrado em ciências sociais, pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), em que investigou os rezadores de Manaus. Embora não seja mais pastor, Schweickardt continua atuando, agora como leigo, em uma comunidade luterana da periferia da cidade. O interesse sobre a história da saúde pública na região surgiu a partir de conversas com colegas da Fiocruz e também pela necessidade de compreender as práticas científicas no Amazonas.
"O saneamento de Manaus começa a partir do final do século 19, quando as chamadas ‘doenças do clima quente’ passaram a conflitar com as imagens de civilização que as autoridades políticas queriam construir. Doenças como a febre amarela afetavam diretamente as comunidades estrangeiras que viviam em Manaus, como ingleses, alemães, italianos e outros, que foram atraídas pelo ciclo da borracha", diz Schweickardt. A mudança na concepção das doenças, ocorrida na mesma época, quando enfermidades como a malária e a febre amarela são identificadas como sendo transmitidas por mosquitos, alterou as políticas públicas de combate dessas doenças. Também foram estabelecidas naquele momento as escolas de medicina tropical de Londres e Liverpool. Assim, não tardou para que médicos europeus desembarcassem no Norte do país para estudar essas doenças e seus ciclos de transmissão. "As novas descobertas e a institucionalização da medicina tropical tiveram um impacto sobre as medidas de saneamento e o mosquito passou a ser combatido de forma sistemática", conta Schweickardt.
Manaus virou um dos centros do debate sobre medicina tropical
Nos primeiros anos do século 20, a vitoriosa experiência americana de combate aos mosquitos em Havana, quando se conseguiu eliminar a febre amarela e controlar a malária, contribuiu para que os trópicos sofressem intervenções sanitárias, e Manaus, como um lugar propriamente tropical, não ficou fora disto. "O momento coincidia com o auge e o declínio da economia da borracha, o que fez da cidade um importante centro de repercussão da cultura e das ideias científicas. Com isso, analiso na tese como os conceitos da medicina tropical foram apropriados por médicos do Amazonas e como foram colocados em prática os princípios daquela disciplina, com o objetivo de realizar a profilaxia da febre amarela e da malária", diz Schweickardt.
O auge do ciclo econômico baseado na borracha transformou Manaus em uma cidade moderna, com as mesmas benfeitorias que chegavam ao Rio de Janeiro, a então capital federal. Com a riqueza vinda do extrativismo, a cidade passou por uma época de mudanças radicais no final do século 19, quando o engenheiro militar Eduardo Ribeiro se tornou governador do Amazonas. Ele dizia que havia encontrado uma grande aldeia e a transformado em uma cidade moderna. São dessa época os primeiros aterros de igarapés, a abertura de grandes avenidas e boulevares, o início do serviço de bondes, a luz elétrica, as pontes de ferro, a construção do porto, o calçamento das ruas, a rede de água encanada e de esgotamento sanitário, o telefone, o telégrafo.
O desenvolvimento econômico proporcionou não somente a circulação de bens, mas também a de ideias e permitiu o surgimento de um núcleo de médicos que estava a par das discussões científicas mais avançadas a respeito do combate das doenças tropicais. Os médicos de Manaus publicavam em periódicos, participavam de congressos, mantinham intercâmbio com profissionais do Rio e principalmente de países europeus. "E eles encomendavam equipamentos e materiais que vinham direto da Europa. Manaus também contava com representantes de livrarias francesas que importavam obras médicas e de referência atualizadas".
Ingleses vinham estudar as doenças típicas da região
As duas expedições organizadas pelas escolas de medicina tropical da Inglaterra – a de 1900, a Belém, e a de 1905-9, a Manaus – estreitaram os laços entre os médicos dos dois lados do Atlântico. Um desses médicos ingleses, Wolferstan Thomas, retornou a Manaus em 1910 e permaneceu na cidade até 1931. Ele montou um laboratório de medicina tropical e costumava receber colegas de Liverpool que vinham estudar as doenças típicas da região em Manaus. "Esses profissionais, suas atividades, seus laboratórios, os artigos publicados e suas pesquisas fizeram da cidade um dos centros do debate da medicina tropical", observa Schweickardt.
De acordo com o autor da tese, "o saneamento do Amazonas foi proposto e realizado por diferentes comissões formadas por médicos, cientistas e engenheiros de Manaus, do Rio e de instituições internacionais. Essa ação teve como pano de fundo o ambiente e o regime das águas: na capital, os igarapés, e no interior a imensa rede de rios e lagos. O Amazonas foi, portanto, um laboratório para a pesquisa e a experimentação das ideias científicas da época. Em relação à nação, a região afirmou a sua autonomia e a sua identidade, por meio da ação de profissionais que refletiram sobre o saneamento do estado". Schweickardt não esquece, porém, das passagens de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas pelo Norte do Brasil e os relatórios que deixaram acerca da situação sanitária e as propostas contidas nesses documentos. "Foram diagnósticos corretos, mas que somente anos mais tarde foram aplicados", conta ele.
O esforço de todos esses personagens levou à extinção da febre amarela em Manaus em 1913, em trabalho coordenado por uma comissão federal. Nos primeiros 20 anos estudados por Schweickardt, as ações de saneamento estiveram praticamente restritas à capital, com algumas poucas incursões ao interior do estado. Essa situação mudou a partir da constituição do Serviço de Saneamento e Profilaxia Rural, que transformou o posto rural em itinerante. Um contrato da União com o Amazonas permitiu o saneamento de todo o estado, com uma estrutura que estabeleceu postos nas calhas dos principais rios, com bases fixas e embarcações que percorriam as comunidades ribeirinhas.
Para Schweickardt, um gaúcho de Porto Alegre que mora em Manaus há 17 anos e estudou profundamente a história da capital naquelas quatro décadas não apenas em livros e arquivos, mas também percorrendo bairros e ruas, a cidade "nunca mais será a mesma, para mim, depois desta tese". O pesquisador, que chegou a alugar uma voadeira para percorrer os igarapés, vê agora a cidade de outra forma, com um novo significado. "As ruas da velha Manaus não têm mais o fantasma da febre amarela, nem têm o glamour dos tempos da Belle Époque, mas ainda guardam os prédios e nomes que nos fazem avivar a memória. As ruas de tantas intervenções profiláticas, com fumigações, petrolagens, claytonagens e desinfecções, são novamente visitadas por outra doença que atinge a cidade, a dengue. Assim, Manaus não é a mesma, mas ironicamente, continua a mesma, apresentando problemas semelhantes, pois os mosquitos continuam sendo combatidos, exatamente como era feito há cem anos".
Schweickardt diz que é necessário olhar para a história para melhor compreender os processos atuais. "A história das políticas, a história da ocupação do espaço, a história das intervenções médicas, a história da pesquisa científica. Assim poderemos, pesquisadores e governantes, entender esta região com características tão peculiares".
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home