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06 outubro 2009

CNJ ESTÁ REALIZANDO UMA FAXINA NA JUSTIÇA BRASILEIRA

Imperdível a entrevista com o corregedor do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), advogado Gilson Dipp, que afirma viver 'um misto de orgulho e estupefação' diante das mazelas com as quais tem sido obrigado a conviver, desde que passou a inspecionar tribunais Brasil afora. O ministro descortinou um festival de nepotismo, clientelismo, patrimonialismo, corrupção e desvios de conduta generalizados

Limpeza na Justiça

Leandro Fortes
Revista Carta Capítal

Responsável pela mais importante ofensiva moralizadora conduzida, até hoje, nas entranhas do Judiciário brasileiro, o advogado Gilson Dipp, de 64 anos, vive um misto de orgulho e estupefação diante das mazelas com as quais tem sido obrigado a conviver. Ministro do Superior Tribunal de Justiça desde 1998, Dipp foi empossado como corregedor do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em setembro de 2008. A partir de então não deu trégua aos tribunais estaduais de Justiça. À frente de uma caravana que inspecionou, em um ano, dez desses tribunais, o ministro descortinou um festival de nepotismo, clientelismo, patrimonialismo, corrupção e desvios de conduta generalizados. Inaugurou, nessas viagens, uma política de audiências públicas em que, perante juízes e desembargadores, muitos deles sob suspeita, cidadãos puderam denunciar fraudes e reclamar do atendimento e das decisões.

Gaúcho de Passo Fundo, Dipp foi escolhido pelo ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal e também do CNJ, para realizar um minucioso diagnóstico das unidades de ponto do Judiciário e, finalmente, apresentar soluções para dois dos mais antigos e injustos vícios da vida republicana brasileira, a morosidade e a inépcia da Justiça. Cercado de meia dúzia de auxiliares, o ministro botou o pé na estrada e conseguiu colocar alguma ordem na bagunça. Com o apoio dos conselheiros do CNJ, afastou juízes e desembargadores acusados de irregularidades. Comanda ainda um mutirão para desafogar os cárceres brasileiros e as prateleiras dos tribunais, a chamada Meta 2, uma tentativa de julgar até o fim do ano cerca de 5 milhões de processos ajuizados até 31 de dezembro de 2005. Deve conseguir julgar, no máximo, 2 milhões.

Essa quebra de expectativa não chega a desanimar o ministro, para quem ainda serão necessários, no mínimo, dez anos de trabalho ininterrupto do CNJ para transformar os tribunais e varas de Justiça estaduais em instituições a serviço da maioria dos cidadãos. Embora se diga surpreso com a crueza do mundo real situado além dos gabinetes refrigerados de Brasília, Dipp não assume o papel de vingador. Tranquilo e bem-humorado, o ministro tem muito cuidado ao comentar sobre os autos dos processos administrativos do conselho e raramente autoriza a publicação de nomes nos relatórios produzidos pelas inspeções estaduais comandadas por ele. Visa, assim, preservar o sigilo dos inquéritos e, principalmente, manter o foco das ações que comanda.

“Nossa intenção é melhorar as práticas”, explica (entrevista na edição impressa). Segundo ele, a absoluta falta de planejamento e de gestão nos tribunais brasileiros gerou um grave distanciamento entre os magistrados (desembargadores, juízes e ministros dos tribunais superiores) e o cidadão comum. Ainda assim, avalia, o fato de haver 70 milhões de processos em andamento é um sinal de que, apesar de tudo, o brasileiro ainda acredita na Justiça. “Na verdade, o Judiciário tem pouco conhecimento de si próprio”, afirma o ministro. “Muitos magistrados nem sequer sabem o que está acontecendo dentro do próprio tribunal”, diz.

Presidente da Associação dos Magistrados do Brasil, Airton Mozart apoia o trabalho do ministro. “A ação do CNJ tem tornado o Judiciário mais transparente e ético”, afirma o juiz. Segundo ele, as audiências comandadas por Dipp restauraram o direito ao acesso e à crítica nos tribunais pelos cidadãos comuns. “Esse é o caminho para acabar com o corporativismo e a impunidade”, avalia.

Ao iniciar os trabalhos da Meta 2, o CNJ pôde constatar que os estoques de processos eram puro lixo, pois a maioria tinha sido julgada há muito tempo, só não havia sido registrada, normalmente, por desleixo ou falha nos sistemas de informática. Além disso, lembra o ministro, a cultura do Judiciário brasileiro não é a da transparência. Aliás, essa foi uma das primeiras características que a equipe do CNJ percebeu logo na primeira inspeção realizada no Tribunal de Justiça da Bahia, em outubro do ano passado. Foi, por assim dizer, a primeira descida de Dipp em um inferno judiciário em cujo portal poderia estar escrito, tal qual naquele outro, o de Dante: “Abandonai toda esperança vós que aqui entrais”.

Herança direta das quase quatro décadas de dominação do grupo político do falecido senador Antonio Carlos Magalhães, o cenário encontrado no Tribunal de Justiça da Bahia foi de puro descalabro. Os inspetores constataram, caso único no Brasil, a presença de uma instituição atravessadora que recolhia todos os recursos do Judiciário local, inclusive as verbas estaduais e as taxas de cartório. Desde 1984 era essa a função e as prerrogativas do Instituto Pedro Ribeiro de Administração Judiciária (Ipraj). Entre outras irregularidades, o Ipraj tocava obras sem licitação, firmava convênios não autorizados, fazia empréstimos e os pagamentos dos magistrados do TJ baiano sem fiscalização alguma.

Ao todo, 505 policiais militares enviados pelo instituto para o interior da Bahia, supostamente para dar segurança a juízes, recebiam pagamentos extras, depositados pelo Ipraj em contas correntes pessoais, e não pelo departamento financeiro da corporação. Esse expediente, aliado ao histórico de ligação política do instituto com a turma de ACM, levantou fortes indícios de que a entidade foi usada para a formação de caixa 2 eleitoral nos anos de ouro do carlismo. Embora tenha mantido o funcionamento do Ipraj até o fim do ano passado, o governador da Bahia, o petista Jaques Wagner, foi sensível às recomendações de Dipp e tomou algumas providências para acabar com a farra.

Com base na Constituição de 1988, que determina aos Três Poderes terem administrações e recursos próprios, o CNJ aprovou uma série de recomendações para extinguir o Ipraj e devolver ao TJ da Bahia a autonomia perdida nos últimos 25 anos. O instituto foi declarado irregular e Dipp pediu ao tribunal que apresentasse um plano de transferência da administração e, em seguida, formulasse um anteprojeto de lei para a extinção do Ipraj. O texto foi enviado à Assembleia Legislativa baiana em 15 de setembro e, com o apoio do governador petista, deverá ser aprovado nos próximos vinte dias. “Essa primeira inspeção nos causou um tremendo impacto”, afirma Dipp. O ministro não sabia, mas ainda teria muito com o que se impressionar.

A experiência na Bahia daria, dali para frente, o tom das demais inspeções do CNJ. No Pará, onde o grupo do ministro esteve em dezembro do ano passado, os inspetores listaram mais de 30 irregularidades, a começar pela alta – e estranha – rotatividade de juízes pelas varas de Justiça do estado, expediente clássico utilizado no Judiciário para retardar ou interromper o andamento de processos. Também no Pará, o CNJ identificou uma política de empreguismo, normalmente baseada na contratação de parentes, mascarada por admissões temporárias. Dos 36 servidores do setor de informática do TJ do Pará, por exemplo, 21 eram temporários, alguns dos quais sem qualquer intimidade com a ciência da computação.

Nas varas judiciais de Belém, Dipp descobriu que muitos processos tinham distribuição direcionada: eram enviados a um juiz específico, provavelmente para o cumprimento de acordos extrajudiciais predeterminados. Tradução: por meio do pagamento de propina. Em alguns casos, apenas um desembargador participava do sorteio, pois os demais, em clara orquestração, se declaravam impedidos. Ao mesmo tempo, os magistrados não negligenciavam quando o assunto era festa. Apenas em 2008, o TJ paraense gastou 212,8 mil reais em comes e bebes distribuídos em 40 coquetéis montados para eventos diversos, entre os quais a comemoração da reforma física do fórum e a visita da imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré.

No Maranhão, onde esteve em novembro de 2008, o ministro se viu diante de uma república nepotista, resultado de 40 anos de dominação do clã Sarney. Para manter parentes empregados, os desembargadores convocavam servidores lotados a 500 quilômetros de São Luís para encher os gabinetes na capital. Era tanta gente que colocá-los a trabalhar ao mesmo tempo era tarefa impossível. Simplesmente não havia lugar para todo mundo. Para evitar o caos, o presidente do TJ do Maranhão, desembargador Raimundo Cutrim, achou por bem reduzir a jornada de trabalho de oito para seis horas diárias.

Um dos eventos mais graves detectados pelo CNJ foi a prática de bloqueios judiciais em contas de bancos do Maranhão, sem critérios claros, em favor de desembargadores, juízes e promotores de Justiça. Todos autores de ações de restituição de contribuições previdenciárias, a maioria lesiva aos cofres estaduais. E de pouco adiantava ao cidadão reclamar. Em 2007, foram impetradas 120 representações contra magistrados maranhenses, mas nunca houve uma única e pálida sanção contra eles. Só a inspeção do CNJ, um ano depois, renderia punições.

Ao todo, cinco desembargadores do Tribunal de Justiça do Maranhão foram obrigados a devolver diárias recebidas indevidamente aos cofres públicos. Entre eles está a desembargadora Nelma Sarney, corregedora do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), irmã do senador José Sarney. Nelma deve assumir a presidência do TRE em 2010, ano em que a sobrinha Roseana vai concorrer à reeleição.

Também foram condenados os desembargadores Jamil Gedeon Neto, corregedor-geral de Justiça, Raimunda Santos Bezerra e Stélio Muniz. O CNJ decidiu ainda pela abertura de uma sindicância para apurar as responsabilidades do desembargador Raimundo Cutrim, atual presidente do TJ, e do ex-presidente do tribunal, Galba Maranhão. Este último é acusado de ter causado prejuízos aos cofres públicos por meio de desvios de vencimentos de cargos comissionados da presidência do TJ.

Ainda no Maranhão, o CNJ constatou haver divergências entre o recebimento de diárias e a comprovação de comparecimento aos eventos para os quais elas foram concedidas. Por isso, Nelma Sarney e Raimunda Bezerra serão obrigadas a devolver 5,8 mil reais aos cofres públicos por conta de recebimento irregular de diárias referentes a viagens nem sequer comprovadas, razão pela qual terão de ressarcir os gastos com passagens aéreas. No caso da desembargadora Raimunda, a magistrada alegou ter recebido as diárias a título de “doação” para a realização de “terapia médica”. O relator do caso, Walter Nunes, considerou a argumentação da magistrada “surreal”. Pelos mesmos motivos, os desembargadores Jamil Gedeon Neto e José Joaquim Figueiredo dos Anjos deverão devolver aos cofres do TJ maranhense 11,7 mil reais.

Na Bahia, o CNJ apertou o cerco contra magistrados. Em 15 de setembro, afastou duas juízas, Maria de Fátima Carvalho e Janete Fadul, acusadas de vender sentenças. Elas foram citadas em gravações telefônicas obtidas pela Operação Janus, realizada pela Polícia Federal e pelo Ministério Público baiano no ano passado. Em uma escuta telefônica feita pela PF, um filho de Maria de Fátima negocia a venda de uma sentença favorável a uma empreiteira em troca de 700 mil reais. O relator do processo foi o ministro Dipp.

No Espírito Santo, o CNJ ordenou, em maio, a interdição de dois presídios, nos municípios de Cariacica e Serra, por conta de denúncias de violação de direitos humanos. No Amazonas, em 19 de agosto, foram afastados o desembargador Yedo Simões e o juiz Elci Simões. Os dois são irmãos e acusados de irregularidades administrativas no TJ amazonense. Na Paraíba, foram afastados, também em agosto, Alexsandro Brito Araújo e Daniel Dias Rodrigues, diretor e diretor-adjunto, respectivamente, do Presídio de Segurança Máxima de Campina Grande. Em todos os estados, as sindicâncias e investigações continuam.

“As políticas públicas do CNJ e da corregedoria são exigências da sociedade”, define Dipp. “O Judiciário brasileiro não vai conviver mais com o atraso com que vinha convivendo. Ele foi despertado”, avisa. Espera-se que o trabalho de Dipp deixe marcas duradouras.

Leia a entrevista na íntegra da edição impressa da revista Carta Capital de 01/10/2009.

Foto: CNJ