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30 outubro 2009

OS PALESTINOS DA AMAZÔNIA

Latuff
Revista NovaE

Cansados de esperar por uma reforma agrária que nunca chega,camponeses fazem a "revolução agrária" na Amazônia.Por Latuff *A convite do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos (CEBRASPO),passei uma semana na companhia de lavradores nos acampamentos da Ligados Camponeses Pobres (LCP), no interior do estado de Rondônia. Nestesmeus dias ao lado dos aldeões, tive a honra de comer de sua comida,participar de suas conversas, de sua rotina, tomar conhecimento desuas necessidades, de suas demandas e seus sonhos. Povo forte, quesofre o diabo, mas que não tem medo dele.

Por duas vezes passei a noite numa cabana de palha, onde vivem seuAbel e sua esposa Zilda. Reservaram uma cama pra mim, me receberam comtodo carinho e gentileza. Mesmo na simplicidade daquela choupana,havia uma extrema preocupação em me agradar, na melhor tradição dehospitalidade do homem do campo. Acordava-se bem cedo, ainda escuro."Bom dia, dormiu bem?". Escova de dentes na mão, rumo ao rio que beiraa cabana. No moedor a manivela, os grãos de café eram preparados parao desjejum. O leite fervia no fogão a lenha. A mesa posta, os copos,os talheres, o silêncio era discretamente interrompido tanto por mimquanto pelos pássaros. Daqui a pouco seu Abel já estava seguindo paraa roça, pra cortar lenha, pra capinar a terra, irrigar as mudas,trabalho árduo para transformar seu pequeno pedaço de selva em lar. Oslavradores humildes precisam de bem pouco para viver uma vida digna, enem mesmo isso lhes é permitido. Com o argumento do combate aodesmatamento, o IBAMA persegue e aplica multas altas aos que vivem daagricultura de subsistência, usam da Polícia Federal, da ForçaNacional de Segurança e mesmo tropas do Exército para sufocar ascomunidades, como no caso de Rio Pardo, onde barreiras foram erguidasnas entradas e saídas, pessoas e veículos revistados, postos decombustível do acampamento removidos, um rigor que não tem sidoaplicado aos latifundiários, que transformam vastas extensões defloresta nativa em pasto ou monocultura.

O histórico de violência naquela área já vem de longe. No BrasilColônia, o vale do Guaporé foi palco de disputas imperialistas entrePortugal e Espanha, que só terminaram com as demarcações de terraacordadas pelo Tratado de Madrid em 1750. No século 18 com o ciclo damineração e particularmente no final do século 19 com o ciclo daborracha, uma grande leva de migrantes de diversas partes do Brasilforam atraídos para a região, causando conflitos agrários com avizinha Bolívia, que foram resolvidos em 1903 com o Tratado dePetrópolis. Em 1943, como resultado do desmembramento de áreas dosestados do Amazonas e Mato Grosso, foi criado por Getúlio Vargas oTerritório Federal de Guaporé, tendo sido rebatizado para Rondônia em1956, em homenagem ao Marechal Cândido Rondon, militar que entre 1910e 1940 comandou expedições de Cuiabá até o Amazonas para instalarlinhas telegráficas e levar a boa e velha civilização branca para oseio dos povos indígenas. Rondônia torna-se estado em 1982.

A Liga dos Camponeses Pobres surgiu em agosto de 1995, quandotrabalhadores rurais que ocupavam terras da Fazenda Santa Elina, nacidade de Corumbiara, resistiram ao brutal despejo promovido porpoliciais e jagunços, resultando na morte de 11 pessoas (em númerosoficiais), incluindo a menina Vanessa de apenas 6 anos, no que ficouconhecido como o "Massacre de Corumbiara". De lá pra cá, cansados deesperar por uma reforma agrária que nunca chega, os camponeses e suasfamílias decidiram promover a "revolução agrária" no peito e na raça.São eles os acusados pela revista Isto É de serem sanguináriosguerrilheiros ligados (adivinhem) as FARC.

O que pude presenciar durante minha visita aos acampamentos foramtrabalhadores rurais e suas famílias armados, isso sim, de uma forçade vontade poderosa, capaz de enfrentar os rigores da AmazôniaOcidental. O clima equatorial, extremamente quente e úmido, onde o solinclemente castiga a carne, as doenças tropicais como a leshmaniose ea malária, que por aquelas bandas são tão comuns quanto um resfriado,animais selvagens como onças, porcos-do-mato e serpentes venenosas, umrisco sempre presente, oculto pela densa vegetação.

Mas não são os rigores da selva amazônica os maiores inimigos do povodo campo. São os fazendeiros milionários e seus exércitos particularesformados por assassinos de aluguel e policiais, cujas ações criminosassão sustentadas por políticos locais e a imprensa corrupta, quealimentada com verbas publicitárias e mesmo matérias pagas, tentademonizar a justa resistência dos pequenos agricultores. Os matadoressão conhecidos por todos, andam tranquilamente pelas ruas, por vezesostensivamente armados. Não são raras as execuções a luz do dia, avista de todos. Qualquer um que tenha coragem de, por exemplo,denunciar os pistoleiros num programa de rádio, corre o sério risco deser assassinado assim que por os pés pra fora da emissora. Conceitoscomo direitos humanos e cidadania inexistem nos cantões de Rondônia,onde a pistolagem é uma instituição consagrada pela sociedade. Numacorrida de taxi em Ariquemes, junto com mais três passageiros, passei

a viagem que durou cerca de 45 minutos ouvindo animadas histórias defazendeiros, políticos e mortes encomendadas. Uma delas reproduzoaqui.

Um homem pescava num rio. Conseguiu apanhar dois pintados. Amarrou ospeixes na garupa de sua bicicleta e seguiu tranquilamente por umaestrada. No meio do caminho foi parado por um fazendeiro e seu jagunçonuma caminhonete.

- "Onde você pescou isso?", perguntou o fazendeiro.

- "Naquele rio logo ali", respondeu o sujeito.

- "Então pode deixar por aí mesmo, que aquele rio é meu", disse ofazendeiro, no momento em que o capanga já saía do veículo de formaameaçadora. O pescador teve de fugir. Ao comentar esse caso com opessoal da LCP, me disseram que ele teve sorte de não ter sidosimplesmente baleado. Essa é somente uma das histórias que explica bema razão da revolta que o camponês de Rondônia traz consigo no peito.

Historicamente, a reforma agrária no Brasil nunca se deu de maneiraespontânea pelos governos, e sim pela pressão feita pelos movimentospopulares de luta pela terra, que no caso da LCP, sequer contam com oINCRA para assentar as famílias. Para os integrantes da LCP, nãoexiste o conceito de "desapropriação de terras improdutivas", vistoque mesmo as produtivas, estando em mãos de ricos fazendeiros,servirão invariavelmente aos interesses do agronegócio. Os camponesesda LCP escolhem as grandes fazendas, as ocupam, erguem lonas, resistemao ataque de jagunços, e depois de 2 a 3 meses fazem demarcação doslotes, o chamado "corte popular", inicialmente erguendo cabanas depalha e depois de madeira. Depois de algum tempo, os acampamentos seassemelham a povoados do velho oeste norte-americano, como no caso deJacinópolis, com farmácia, escola, mercado, tudo feito detábuas.

Diferente da confortável vida das grandes cidades, onde restaurantes,lanchonetes e supermercados estão logo ali na esquina, nas áreas deacampamento o supermercado mais próximo pode estar a 80km de estradasde terra acidentadas. É natural portanto que os camponeses tenham decaçar para comer, o que justifica a posse de velhas espingardas queservem também para a defesa contra onças e porcos selvagens. Operaçõesconstantes do IBAMA e das polícias, tentam tomar estes armamentosrústicos das mãos dos lavradores, impedindo que eles se defendam tantode animais ferozes quanto de pistoleiros. O direito a legítima defesatambém lhes é negado. Os camponeses, no entanto, seguem resistindo aestas agressões como podem. Fecham estradas, bloqueiam o avanço dapolícia com barricadas, criam seus próprios sistemas de vigilância esegurança. Não se entregam nunca.

São os palestinos da Amazônia.

* Latuff é cartunista.