Google
Na Web No BLOG AMBIENTE ACREANO

23 fevereiro 2010

NEUTON MIRANDA

Camarada Neuton: uma lição de vida

José Varella *

Sei que, por estranho destino, fiquei fadado a ser homem memória dos ribeirinhos da vida cuja história foi subtraída pela colonização e o neocolonialismo até recentemente... Dia a dia, por necessidade e acaso, me vejo testemunha marginal do espaço amazônico em transformação acelerada face a desconformes pressões geopolíticas de Norte e Sul, sob império do deus mercado, na rica e cobiçada região equatorial de gentes pobres da América do Sul. Em Marajó -- ilha mãe da amazonidade --,tendo se calado a voz de Dalcídio Jurandir (1979) e de Giovanni Gallo (2003) em defesa da Criaturada grande das ilhas e Baixo Amazonas, levantei a bandeira encontrada ao chão da melhor maneira que posso... Quem há de nos defender, se não nós mesmos, apoiados por forças populares do maior país dos trópicos e a solidariedade do mundo democrático?

O companheiro Neuton Miranda do PCdoB foi um dos poucos dirigentes políticos deste país que, imediatamente, compreendeu a mensagem dos marajoaras. Claro, ele havia sangue caboco a lhe correr nas veias e não foi sem razão que assumiu lugar na academia do peixe frito. Cedo compreendeu que o emblemático Marajó é mais que uma famosa ilha no meio de uma geografia sonâmbula: em Cachoeira do Arari, onde estivemos juntos pela derradeira vez inclusive para visita ao Museu do Marajó; durante entrega de titúlos de autorização de uso de terras públicas pela população ribeirinha, repetiu ele que a ilha grande da boca do Amazonas é o derradeiro reduto das populações tradicionais do Pará e insistiu para que eu désse testemunho desta assertiva.

Deste modo, meu encontro com o camarada Neuton não aconteceu antes da instalação do "Grupo Interministerial de acompanhamento de ações públicas no arquipélago do Marajó" (GEI-Marajó), em 2006, dando origem ao Plano Marajó (2007-....). Mas foi um destes casos de empatia imediata e momento de convergência entre a teoria e a prática marxista de restauração da história dos povos marginalizados pela História. Sem demora, convocado pelo próprio Neuton me engajei na preparação de força-tarefa da GRPU para regularização fundiária de terras da União no arquipélago: uma ação federativa com a força do símbolo da devolução aos cabocos das várzeas de seus antepassados indígenas, lesados pela doação da capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes (1665), por desfeita colonial às pazes arranjadas pelo Padre Antônio Vieira (nos termos da lei de abolição do cativeiro dos índios, datada de 1655, arranjada pelo mesmo padre junto ao rei de Portugal, dom João IV). Quer dizer, 350 anos depois das pazes de Mapuá (1659) estávamos a desatar o nó colonial sob império da Constituição de 1988 e governo federal em coalizão de centro-esquerda liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Não é pouca coisa para esta gente do fim do mundo no extremo norte brasileiro!

Certamente, eu, antigo repórter da província que para sobreviver me fiz burocrata e tirei "férias" da subversão nos anos de chumbo; sabia quem era o deputado estadual Neuton Miranda. Ele porém, aparentemente, nada sabia sobre mim até 2006, durante tratativas entre as ilhas do Marajó e a Presidência da República sobre a demanda da sociedade civil marajoara, conduzida pelos bispos da diocese de Ponta de Pedras e prelazia do Marajó, contra a miséria do IDH no "paraíso ecológico". Daí surgiu o GEI e, posteriormente, o Plano Marajó com ações emergenciais de combate à malária, regularização fundiária e obras de infra-estrutura. Posteriormente, ao Plano juntou-se o programa Territórios da Cidadania - Marajó integrado ao programa estadual de integração regional.

Assim, a odisséia do caboco se concluía aparentemente. Todo bom caboco há que parecer ingênuo e artista de circo, ao mesmo tempo, para sobreviver em terra de brancos... Não foi sem razão que o baiano Jorge Amado chamou a seu camarada paraense Dalcídio Jurandir de "índio sutil" em discurso na Academia Brasileira de Letras (1972). Detalhe, Dalcídio era filho de negra e branco, mas em sendo marajoara não importa a cor da pele, quem não for "índio" está fadado a dar com os burros n'água na doce ilusão de se tornar bom "civilizado"...

O camarada Neuton vivendo na clandestinidade recebeu conselho de seu pai para praticar a lição do peixeinho quatro-olhos (Tralhoto), capaz de ver o inimigo pelo fundo do mar e por cima do ar... Antônio Vieira, há mais de três séculos e meio, havia ensinado coisa semelhante. Portanto, se em terra de cego quem tem um olho é rei, em tempos bicudos bancar o tralhoto é questão de vida ou morte.

Estas lembranças rolavam em minha cabeça quando eu caminhava pelas ruas estreitas da Cidade Velha para o último adeus a Neuton Miranda velado no salão nobre da Assembléia Legislativa do Estado do Pará, casa do povo dita palácio Cabanagem. O filme do passado projetava-se ao futuro no cenário do centro histórico de Belém, Ver O Peso ao junto à margem do Guajará; quando vi a fachada do edifício coberta de bandeiras vermelhas do PCdoB: nunca dantes o palácio mereceu tanto o título cabano, mesmo quando de cerimônia fúnebre dos companheiros Paulo Fontelles e João Batista, assassinados a mando do arcaico e demente latifúndio. Ali a morte natural, todavia inesperada, estendia o corpo do camarada pranteado e alcançava renome de uma gloriosa caminhada na vida. Era, paresque, comparável a El Cid Campeador depois de morto a infundir respeito ao inimigo da Reconquista.

Sinto ser meu dever tentar interpretar, ao mais fielmente possível, os sentimentos da gente ribeirinha donde minha família marajoara se acha metida até o pescoço desde sempre. Diante da triste notícia do súbito falecimento de nosso querido irmão, amigo e camarada Neuton, nesta hora de dor e perplexidade pela perda do grande aliado dos povos das águas, a gente quer ainda recolher do exemplo da sua vida a seiva revitalizadora da esperança de novas conquistas poíticas a favor da dignidade humana nas extremas paragens da Amazônia e da resistência contra a alienação cultural e as injustiças socioeconômicas.

Morreu o camarada Neuton Miranda Sobrinho em plena atividade, bravo servidor do Público que nunca se refugiou no conforto do gabinete nem fez do cargo motivo de ostentação. Longe de tirar vantagem para fazer carreira, ele como bom comunista estava prestes a aceitar a grave missão reclamada por seus camaradas de concorrer a uma vaga na Câmara dos Deputados. A fim de, em Brasilía, a cabanagem democrática e pacífica ter tribuna e articulador plenamente comprometido com o resgate da identidade das antigas populações tradicionais amazônicas perdidas e desnorteadas no cruel processo de modernização conservadora.

Ninguém melhor e mais credenciado do que o camarada Neuton, reconhecido e coroado pelo resultado feliz de um projeto de referência prática para devolução de direitos territoriais históricos usurpados. Mas sua obra política, social e administrativa através do Projeto Nossa Várzea de regularização fundiária de terras da União, e tantas outras ações de militante e homem público, é uma boa semente plantada em solo fértil. As lágrimas e o suor deste povo despossuído misturado a tanto sangue derramado pela antiga exclusão, doravante mais consciente e mais unido do que nunca; há de fertilizar a planta e produzir muitos e duradouros frutos.

O Brasil da economia solidária há de fazer história no mundo pós-Crise de 2009. Nosso campeão de inclusão socioambiental na Amazônia paraense deixa um grande exemplo de gestão federativa com participação das comunidades locais. Prova concreta de que um outro mundo é possível... Será justo, portanto, que sua obra se transforme em ação permanente para o desenvolvimento socioambiental comunitário em homenagem ao nome Neuton Miranda Sobrinho. Nativo de Marabá, casado com a professora universitária Leila Mourão com quem tem uma filha, Janaína Miranda. Militante político desde 1968, atuou no movimento estudantil, foi diretor da UNE de 1971 a 1973; deputado estadual do Pará, Presidente da COHAB, Secretário Municipal de Habitação e candidato a senador em 2002 quando obteve mais de 300.000 votos; faleceu no cargo de gerente regional do Patrimônio da União no Pará.

Com ele à frente da GRPU-PA a regularização fundiária em terras da União no interior do Pará alcançou a mais de 50 mil famílias (correspondente a 150 mil pessoas diretamente beneficiadas, a regularização fundiária é na verdade o passaporte da Cidadania, primeiro passo para a melhoria do IDH). Esta fundamental ação já chegoou a 31 dos 44 municípios do Estado e mais adiantado estaria se a SPU contasse com mais recursos, cuja falta de elementos pode ser apontada pelo excessivo esforço humano da equiipe que levou, certamente, ao sacrífício da vida de seu dirigente. Na capital, com parceria do Governo estadual, este número de atendimento é somado a mais 25 mil moradias. Com a Universidade Federal do Pará a SPU irá titular mais de 15 mil imóveis, inicialmente em terrenos da própria universidade ocupados pela população sem moradia. O Projeto Orla esta levando cidades paraenses a preservar, recuperar e disciplinar o uso do litoral urbano através de gestão compartilhada entre poder público e comunidadae local.

A Criaturada grande de Dalcídio Jurandir na paisagem cultural Belém-Marajó presta a devida homenagem e agradece a Neuton Miranda por sua patriótica dedicação ao povo, pela primeira vez, verdadeiramente participante da cidadania brasileira. Sua morte não será em vão. Com o seu exemplo de vida outros combatentes serão forjados na luta para os próximos embates que virão.

* É de Belém-PA (1937), autor dos ensaios "Novíssima Viagem Filosófica", "Amazônia Latina e a terra sem mal" e "Breve história da gente marajoara"