A CULTURA, AS CIDADES E OS RIOS NA AMAZÔNIA
José Aldemir de Oliveira (*)
Cienc. Cult. v.58 n.3 São Paulo jul./set. 2006
Parte 1
É possível compreender a Amazônia a partir de suas cidades, ou mais especificamente, das pequenas cidades localizadas às margens de seus rios? É disso que este artigo trata, de cidades das quais pouco e poucos tratam. É preciso falar delas para compreender a Amazônia, não porque são importantes do ponto de vista econômico e político, mas porque são lugares em que pulsam modos de vida que diferem significativamente do padrão caracterizado como urbano e predominante em outras regiões do Brasil.
A PRIMEIRA VISÃO
A vida nas e das cidades amazônicas está ligada ao rio e à floresta. Transpondo-os, surgem os aglomerados de casas simples que, vistas uma vez, nunca mais serão esquecidas. Não porque deixem, como outras cidades memoráveis, uma imagem extraordinária nas recordações, mas porque têm a propriedade de permanecer na memória rua por rua, casa por casa, apesar de não possuírem particular beleza. É mais ou menos assim que Italo Calvino(1) descreve uma cidade imaginária no livro Cidades invisíveis, e é assim que temos o primeiro contato com a maioria das cidades da Amazônia localizadas à beira dos rios.
Dessas cidades, temos a primeira visão de longe quando o barco em que navegamos se aproxima. Se for dia vemos a torre da telefônica, antes víamos a torre da igreja. À noite é o clarão da cidade que se achega vagarosamente, sem pressa. A viagem é longa, mas a chegada à cidade, desde que temos a primeira visão, parece interminável, dando-nos tempo para os aconteceres e para a concretização do ser.
Finalmente, chega-se ao porto, em que tudo é transitório. A improvisação do local onde param os barcos dá a quem chega a impressão de que, nas pequenas cidades da Amazônia, nada é perene, tudo é temporário, inacabado e precocemente deteriorado. O porto é por onde se chega e se vai; ele contém a possibilidade do entendimento da cidade, pois a vida começa no porto, menos pelo movimento, mais pelo fato de ele encerrar quase tudo que a cidade possui e que nela falta. O porto é o intermédio entre o rio, a floresta e a cidade, lugar privilegiado dos enigmas amazônicos, transfigurados em enigmas do mundo, a nos interrogar sobre o nosso passado, presente e futuro. O rio, a floresta e a cidade têm no porto a fronteira entre a realidade e a ficção, possibilitando-nos leituras múltiplas de espaços-tempos diversos.
É quase sempre assim que se chega à maioria das cidades ribeirinhas e delas se tem a primeira impressão, que nem sempre fica, pois a concretude de um arruamento caótico, de equipamentos urbanos inexistentes ou inadequados, dá outra impressão dessas pequenas cidades mergulhadas na inércia. Todavia, essa inércia pode ser apenas aparente, pois quase sempre se usam concepções anteriormente formuladas para realidades de um urbano em movimento, enquanto que na Amazônia isso pode não ser encontrado à primeira vista, e talvez nem na última.
A interpretação que se pode dar às pequenas cidades perdidas na imensidão dos rios e da floresta muitas vezes é fugidia, pois busca parâmetros lógicos que nem sempre são capazes de explicá-las. Todavia, apesar de todas as limitações que se tenha, o importante é perceber, desde a chegada, que nessas pequenas cidades estão as raízes caboclas fincadas no chão, preciosos arquivos culturais do mundo amazônico, que são as dimensões simbólicas de uma cultura que teima em permanecer.
O QUE SÃO AS PEQUENAS CIDADES?
Quais os parâmetros para se definir uma pequena cidade? Não há uma definição absoluta. Como assinala Oswaldo Amorim Filho (2) ao analisar cidades médias, o primeiro critério ainda é o demográfico, porém este critério é capaz apenas de identificar o grupo ou a faixa ao qual a cidade pertence. Portanto, outros critérios devem ser arrolados, especialmente para uma região como a Amazônia. Num esforço de definição, aponta-se:
• a baixa articulação com as cidades do entorno;
• as atividades econômicas quase nulas, com o predomínio de trabalho ligado aos serviços públicos;
• a pouca capacidade de oferecimento de serviços, mesmo os básicos, ligados à saúde, à educação e à segurança;
• a predominância de atividades caracterizadas como rurais.
As pequenas cidades são, portanto, cidades locais (3), com atuação restrita, cuja articulação imediata se dá com um centro subordinado a outro de nível hierárquico superior. Por outro lado, o processo de surgimento das pequenas cidades na Amazônia não prescinde de suas especificidades, e é neste sentido que ganha relevância a produção de conhecimento sobre elas, visto que, do ponto de vista demográfico, no período intercensitário (1991-2000), a região Norte apresentou a maior taxa de crescimento relativo da população urbana no Brasil, 18,26%, com média de urbanização de 69,87%. Observa-se que há o aumento do número de cidades e a diminuição do tamanho das mesmas, pois, em 1991, o tamanho médio das cidades era de 5,2 mil habitantes e, em 2000, de 2,07 mil. Tomando como exemplo o estado do Amazonas, no censo de 2000, das 62 cidades, 10 têm menos de 5 mil habitantes e 21, entre 5 a 10 mil habitantes.
Quase sempre, são pequenos núcleos que se emancipam com fraca ou nenhuma infra-estrutura, tendo como base econômica o repasse de recursos públicos e, embora apresentem a estrutura de cidade, carecem de atividades econômicas caracterizadas como urbanas, o que faz com que a população urbana se dedique a atividades rurais tradicionais, como pesca e extrativismo.
Esses núcleos urbanos diferem dos criados às margens das estradas, os quais se constituem nas novas espacialidades urbanas da Amazônia a partir dos anos 1970, em decorrência da construção de novos eixos de circulação que são os vetores de expansão da fronteira para a implantação dos projetos de colonização e da instalação de grandes projetos públicos e privados.
Ao mesmo tempo em que ocorre a integração do território, possibilitando a circulação de pessoas e objetos, há a desarticulação de fluxos pretéritos e o surgimento de outros. Como essa desarticulação de fluxos não é circunscrita a si mesma, não apenas os eixos desaparecem, mas se desarticulam atividades e, daí, modos de vida a elas ligados (o regatão, por exemplo). Geralmente, os padrões de circulação impostos pela modernização determinam o desaparecimento de algumas atividades e o surgimento de outras; daí os impactos decorrentes.
No caso específico das pequenas cidades localizadas às margens dos rios, observa-se que elas perderam sua incipiente dinâmica econômica em decorrência da crise do extrativismo, mas mantiveram certa importância local como suporte de serviços à população, visto que, embora as condições gerais de infra-estrutura de serviços na Amazônia sejam precárias, a pouca existente ainda está concentrada nas cidades.
AS PEQUENAS CIDADES DO NOSSO ÁGORA
Há outro lado que também deve ser considerado para compreender as cidades amazônicas. Nas últimas décadas do século XX, a vida nas cidades da Amazônia mudou de modo significativo. Mesmo nas pequenas cidades, em pouco mais de uma geração, as informações tornaram-se mais ágeis, pois os lugares foram atingidos por tecnologias que possibilitaram maior circulação de idéias e o acesso à modernização.
Isso contribuiu concreta e subjetivamente para o surgimento de novo processo urbano, o qual já se apresenta complexo. Em conseqüência, há mudanças de proporções espantosas tanto positivas como negativas. De um lado, as cidades passam a ser associada às idéias do novo, do moderno; de outro, passam a ser associadas à baixa qualidade de vida, epidemias, inércia e lugar da destruição e da violência, as quais sempre ganham adjetivação que as associa ao espaço urbano.
A questão que se vislumbra é como compreender as estratégias das populações e do poder local para a superação das dificuldades de acesso à educação, saúde e telecomunicações; e como essa articulação se insere numa rede de organizações do movimento social local (sindicatos, cooperativas, nações indígenas) e desta com o movimento ambientalista (ONG’s), inserindo a Amazônia como pauta de discussão internacional, relacionada à questão ambiental. Neste sentido, as pequenas cidades da beira do rio parecem ter sua dinamicidade ligada à dimensão da sustentabilidade e da biotecnologia, comandadas quase sempre por ONG’s que estão articuladas ao mundo, sem se articular com os lugares. Criam-se espaços artificiais, desprovidos de memória, que desprezam a história e a cultura específicas, levando à construção de objetos iguais, independentemente dos lugares onde estão localizados.
Artigo continua...
(*) José Aldemir de Oliveira é geógrafo, professor titular do Depto. de Geografia da Universidade Federal do Amazonas, líder do Grupo de Pesquisas e Estudos das Cidades na Amazônia Brasileira, bolsista do CNPq.
Cienc. Cult. v.58 n.3 São Paulo jul./set. 2006
Parte 1
É possível compreender a Amazônia a partir de suas cidades, ou mais especificamente, das pequenas cidades localizadas às margens de seus rios? É disso que este artigo trata, de cidades das quais pouco e poucos tratam. É preciso falar delas para compreender a Amazônia, não porque são importantes do ponto de vista econômico e político, mas porque são lugares em que pulsam modos de vida que diferem significativamente do padrão caracterizado como urbano e predominante em outras regiões do Brasil.
A PRIMEIRA VISÃO
A vida nas e das cidades amazônicas está ligada ao rio e à floresta. Transpondo-os, surgem os aglomerados de casas simples que, vistas uma vez, nunca mais serão esquecidas. Não porque deixem, como outras cidades memoráveis, uma imagem extraordinária nas recordações, mas porque têm a propriedade de permanecer na memória rua por rua, casa por casa, apesar de não possuírem particular beleza. É mais ou menos assim que Italo Calvino(1) descreve uma cidade imaginária no livro Cidades invisíveis, e é assim que temos o primeiro contato com a maioria das cidades da Amazônia localizadas à beira dos rios.
Dessas cidades, temos a primeira visão de longe quando o barco em que navegamos se aproxima. Se for dia vemos a torre da telefônica, antes víamos a torre da igreja. À noite é o clarão da cidade que se achega vagarosamente, sem pressa. A viagem é longa, mas a chegada à cidade, desde que temos a primeira visão, parece interminável, dando-nos tempo para os aconteceres e para a concretização do ser.
Finalmente, chega-se ao porto, em que tudo é transitório. A improvisação do local onde param os barcos dá a quem chega a impressão de que, nas pequenas cidades da Amazônia, nada é perene, tudo é temporário, inacabado e precocemente deteriorado. O porto é por onde se chega e se vai; ele contém a possibilidade do entendimento da cidade, pois a vida começa no porto, menos pelo movimento, mais pelo fato de ele encerrar quase tudo que a cidade possui e que nela falta. O porto é o intermédio entre o rio, a floresta e a cidade, lugar privilegiado dos enigmas amazônicos, transfigurados em enigmas do mundo, a nos interrogar sobre o nosso passado, presente e futuro. O rio, a floresta e a cidade têm no porto a fronteira entre a realidade e a ficção, possibilitando-nos leituras múltiplas de espaços-tempos diversos.
É quase sempre assim que se chega à maioria das cidades ribeirinhas e delas se tem a primeira impressão, que nem sempre fica, pois a concretude de um arruamento caótico, de equipamentos urbanos inexistentes ou inadequados, dá outra impressão dessas pequenas cidades mergulhadas na inércia. Todavia, essa inércia pode ser apenas aparente, pois quase sempre se usam concepções anteriormente formuladas para realidades de um urbano em movimento, enquanto que na Amazônia isso pode não ser encontrado à primeira vista, e talvez nem na última.
A interpretação que se pode dar às pequenas cidades perdidas na imensidão dos rios e da floresta muitas vezes é fugidia, pois busca parâmetros lógicos que nem sempre são capazes de explicá-las. Todavia, apesar de todas as limitações que se tenha, o importante é perceber, desde a chegada, que nessas pequenas cidades estão as raízes caboclas fincadas no chão, preciosos arquivos culturais do mundo amazônico, que são as dimensões simbólicas de uma cultura que teima em permanecer.
O QUE SÃO AS PEQUENAS CIDADES?
Quais os parâmetros para se definir uma pequena cidade? Não há uma definição absoluta. Como assinala Oswaldo Amorim Filho (2) ao analisar cidades médias, o primeiro critério ainda é o demográfico, porém este critério é capaz apenas de identificar o grupo ou a faixa ao qual a cidade pertence. Portanto, outros critérios devem ser arrolados, especialmente para uma região como a Amazônia. Num esforço de definição, aponta-se:
• a baixa articulação com as cidades do entorno;
• as atividades econômicas quase nulas, com o predomínio de trabalho ligado aos serviços públicos;
• a pouca capacidade de oferecimento de serviços, mesmo os básicos, ligados à saúde, à educação e à segurança;
• a predominância de atividades caracterizadas como rurais.
As pequenas cidades são, portanto, cidades locais (3), com atuação restrita, cuja articulação imediata se dá com um centro subordinado a outro de nível hierárquico superior. Por outro lado, o processo de surgimento das pequenas cidades na Amazônia não prescinde de suas especificidades, e é neste sentido que ganha relevância a produção de conhecimento sobre elas, visto que, do ponto de vista demográfico, no período intercensitário (1991-2000), a região Norte apresentou a maior taxa de crescimento relativo da população urbana no Brasil, 18,26%, com média de urbanização de 69,87%. Observa-se que há o aumento do número de cidades e a diminuição do tamanho das mesmas, pois, em 1991, o tamanho médio das cidades era de 5,2 mil habitantes e, em 2000, de 2,07 mil. Tomando como exemplo o estado do Amazonas, no censo de 2000, das 62 cidades, 10 têm menos de 5 mil habitantes e 21, entre 5 a 10 mil habitantes.
Quase sempre, são pequenos núcleos que se emancipam com fraca ou nenhuma infra-estrutura, tendo como base econômica o repasse de recursos públicos e, embora apresentem a estrutura de cidade, carecem de atividades econômicas caracterizadas como urbanas, o que faz com que a população urbana se dedique a atividades rurais tradicionais, como pesca e extrativismo.
Esses núcleos urbanos diferem dos criados às margens das estradas, os quais se constituem nas novas espacialidades urbanas da Amazônia a partir dos anos 1970, em decorrência da construção de novos eixos de circulação que são os vetores de expansão da fronteira para a implantação dos projetos de colonização e da instalação de grandes projetos públicos e privados.
Ao mesmo tempo em que ocorre a integração do território, possibilitando a circulação de pessoas e objetos, há a desarticulação de fluxos pretéritos e o surgimento de outros. Como essa desarticulação de fluxos não é circunscrita a si mesma, não apenas os eixos desaparecem, mas se desarticulam atividades e, daí, modos de vida a elas ligados (o regatão, por exemplo). Geralmente, os padrões de circulação impostos pela modernização determinam o desaparecimento de algumas atividades e o surgimento de outras; daí os impactos decorrentes.
No caso específico das pequenas cidades localizadas às margens dos rios, observa-se que elas perderam sua incipiente dinâmica econômica em decorrência da crise do extrativismo, mas mantiveram certa importância local como suporte de serviços à população, visto que, embora as condições gerais de infra-estrutura de serviços na Amazônia sejam precárias, a pouca existente ainda está concentrada nas cidades.
AS PEQUENAS CIDADES DO NOSSO ÁGORA
Há outro lado que também deve ser considerado para compreender as cidades amazônicas. Nas últimas décadas do século XX, a vida nas cidades da Amazônia mudou de modo significativo. Mesmo nas pequenas cidades, em pouco mais de uma geração, as informações tornaram-se mais ágeis, pois os lugares foram atingidos por tecnologias que possibilitaram maior circulação de idéias e o acesso à modernização.
Isso contribuiu concreta e subjetivamente para o surgimento de novo processo urbano, o qual já se apresenta complexo. Em conseqüência, há mudanças de proporções espantosas tanto positivas como negativas. De um lado, as cidades passam a ser associada às idéias do novo, do moderno; de outro, passam a ser associadas à baixa qualidade de vida, epidemias, inércia e lugar da destruição e da violência, as quais sempre ganham adjetivação que as associa ao espaço urbano.
A questão que se vislumbra é como compreender as estratégias das populações e do poder local para a superação das dificuldades de acesso à educação, saúde e telecomunicações; e como essa articulação se insere numa rede de organizações do movimento social local (sindicatos, cooperativas, nações indígenas) e desta com o movimento ambientalista (ONG’s), inserindo a Amazônia como pauta de discussão internacional, relacionada à questão ambiental. Neste sentido, as pequenas cidades da beira do rio parecem ter sua dinamicidade ligada à dimensão da sustentabilidade e da biotecnologia, comandadas quase sempre por ONG’s que estão articuladas ao mundo, sem se articular com os lugares. Criam-se espaços artificiais, desprovidos de memória, que desprezam a história e a cultura específicas, levando à construção de objetos iguais, independentemente dos lugares onde estão localizados.
Artigo continua...
(*) José Aldemir de Oliveira é geógrafo, professor titular do Depto. de Geografia da Universidade Federal do Amazonas, líder do Grupo de Pesquisas e Estudos das Cidades na Amazônia Brasileira, bolsista do CNPq.
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