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09 agosto 2007

POSSE DE TERRA NA AMAZÔNIA

Um quarto da área ocupada na região apresenta situação precária de posse

São 420 mil km² de terras públicas pertencentes aos estados e à União. Grandes propriedades griladas representam 53% das áreas em disputa.

Por Maurício Hashizume, da Repórter Brasil/Envolverde
09/08/2007

Um quarto da área ocupada pelos imóveis cadastrados junto ao Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na Amazônia Legal permanece em situação precária de posse. Ou seja, dependem ainda de uma verificação de órgãos governamentais que pode levar à concessão de titularidade definitiva ou de uso por pelo menos dez anos. Representam 420 mil km2 de terras públicas, pertencentes aos estados e à União, em extensões que atiçam o interesse econômico e que equivalem ao tamanho do Mar Báltico. Entre as mais de 300 mil posses individuais da Amazônia Legal em situação precária, os terrenos com mais de 500 hectares - cada hectare ocupa mais ou menos o espaço de um campo de futebol - constituem apenas 11% em termos quantitativos, mas somam 53% do total da área.

"Pouco adianta fazer investimentos em outras áreas essenciais como saúde e educação sem resolver isso", defende Julio Barbosa de Aquino, do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS). "Toda ação pública deveria começar pela questão fundiária", emenda o pesquisador Paulo Barreto, do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).

Desde 2003, o Incra vem desenvolvendo uma política de georreferenciamento de glebas públicas que partiu de áreas menores (até 100 hectares) e se estendeu para áreas de 100 a 500 hectares. "O carro chefe da nossa política parte da identificação de propriedades menores e comunidades locais para assentar as pessoas onde elas já vivem", relata Roberto Kiel, diretor de ordenamento fundiário do Incra.

No último dia 11 de junho, o instituto publicou a Instrução Normativa n° 41, prescrevendo critérios e procedimentos administrativos referentes à transferência de terras públicas para pessoas ou empresas em áreas entre 500 hectares até 15 módulos fiscais (que varia conforme a região e alcança aproximadamente 1,5 mil hectares na Amazônia Legal). "Essa não é nossa prioridade para a regularização, até porque essas áreas maiores podem ser desapropriadas caso não cumpram a sua função social de respeito à legislação ambiental e trabalhista", explica o diretor do Incra.

Por causa do limite estabelecido pela Constituição Federal de 1988 - propriedades com mais de 2,5 mil hectares precisam de autorização do Congresso Nacional para que sejam regularizadas -, os títulos raramente extrapolam essa medida. "Há regiões no Sul do Pará com um índice alto de regularização e outras áreas no Sul do Amazonas em que isso só será uma realidade depois de muito tempo", admite Roberto.

Paulo Barreto, do Imazon, observa que, a despeito da importância das iniciativas do Incra, a questão fundiária - principalmente com relação aos latifúndios da Amazônia - permanece como um grande desafio para o Estado brasileiro. E mesmo que a revisão dos documentos solicitados no processo de regularização (memorial descritivo da área, mapa da capacidade de uso e mapa de uso) ateste a possibilidade de recuperação das terras, os registros ainda precisam ser cancelados nos cartórios locais para que a regularização seja concluída. O potencial de disputas judiciais envolvendo terras na Amazônia também é enorme.

Não há como camuflar o descompasso existente entre a estrutura instalada dentro do governo federal para a regularização e a complexidade da tarefa. A Superintendência do Incra em Marabá, uma das regiões de maior conflito agrário no país, está sem procurador. Os servidores do instituto suspenderam temporariamente uma greve de mais de dois meses de duração que exige a reestruturação de cargos e salários.

O diretor do Incra concorda que a ação do órgão federal ainda é "pequena". "Houve um esforço imenso para acertar questões relativas à legislação para dar mais agilidade ao processo. Queremos efetivar políticas acessórias à regularização. Não basta conceder o título e bater nas costas do proprietário. Estamos mantendo trabalhos conjuntos com outras áreas do governo para definir políticas complementares para essas glebas públicas".

Presença do Estado

Até o momento, cerca de 20 mil km2 das áreas recuperadas já foram convertidas em UCs, como parte do Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia Legal (PPCDAM) . Existem hoje 60 mil km2 de UCs e, segundo a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, a pasta pretende expandir essa soma para 90 mil km2 até 2010. A gestão das UCs está no vértice da reforma da estrutura ambiental do governo federal. "Foram criadas muitas áreas de conservação, mas grande parte delas apenas foi criada no papel. É flagrante a ausência de fiscalização e monitoramento", avalia Julio, do CNS. Ele lembra ainda que a invasão desses espaços, principalmente para empreendimentos agropecuários, não cessou.

"Não basta criar uma área de conservação para cumprir a tarefa como poder público. É preciso regularizar e garantir uma gestão compartilhada com as comunidades tradicionais", destaca, pedindo mais investimento do governo federal para que essa tarefa seja cumprida de uma vez por todas. "Em setembro, estaremos realizando o segundo Encontro dos Povos da Floresta em Brasília. Além do aquecimento global, a questão da regularização fundiária certamente estará no centro das discussões", complementa.

O dirigente seringueiro pede atenção para casos como o da Reserva Extrativista (Resex) Verde para Sempre, a maior do país, localizada no município de Porto de Moz (PA). Criada em 2004 depois de mobilizações intensas das organizações da sociedade civil, a área continua sofrendo invasões irregulares que estão na base do quadro instalado de conflitos graves. "Se não houver uma ação enérgica do Estado, o projeto estará ameaçado", condiciona Julio.

Um dos sintomas mais nítidos da fragilidade da presença do Estado na Verde para Sempre é a proliferação de estradas clandestinas recortando a área. De acordo com levantamentos do Imazon, existem pelo menos 173 mil km de estradas ilegais na Amazônia e cerca de 80% do desmatamento ilegal acompanha justamente o curso dessas "veias abertas da destruição da floresta" - forma utilizada por ambientalistas para caracterizar esse tipo de intervenção humana.

A abertura de estradas não-oficiais faz parte de um ciclo de devastação comumente iniciado por madeireiros que abrem picadas em busca de madeira nobre. O passo seguinte no processo é justamente a ocupação irregular, seguida pelo uso da terra desmatada pela pecuária e pelo cultivo de monoculturas.

Outra área com pequena presença do Estado que ainda convive com um alto grau de violência é a região Sul do Estado do Amazonas, nas rebarbas da divisa com Acre e Rondônia. Na região do município de Lábrea (AM), as organizações sociais pleiteiam a criação da Resex Ituxi e da Resex Médio Purus. O número de mortes na região aumenta ano a ano, relata o representante do CNS. A concorrência desregulada provocada pelo potencial econômico do extrativismo de castanha e do corte de seringais tem levado inclusive ao assassinato entre os próprios seringueiros.

No ano passado, um grupo de entidades com atuação na região concluiu o Mapa dos Conflitos Socioambientais da Amazônia Legal, que identificou 675 focos e foi entregue aos procuradores do Ministério Público Federal do Estado do Pará (MPF-PA). Em março, a Justiça Federal atendeu pedido do procurador da República em Altamira, Marco Antônio Delfino de Almeida, que determinou a desapropriação da Fazenda Curuá, definida pela MPF como a maior terra grilada (cerca de 50 mil km2) do país. A propriedade estava sendo ocupada pela empresa Incenxil (Indústria, Comércio, Exportação e Navegação do Xingu Ltda).

Apurações do MPF vinculam a Incenxil ao grupo CR Almeida, do magnata Cecílio Rego de Almeida. A Incenxil nega a vinculação. O cartório de Altamira responsável pela fraude dos documentos da Fazenda Curuá foi fechado. Outros 59 mil km2 de quatro áreas - uma no município de Canutama (AM) e as demais em Tapauá (AM) - também foram devolvidos à União em decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) do início de junho.

Desmatamento e certificação

A política de criação de UCs, de monitoramento da Amazônia por meio de imagens de satélites e todas as outras ações previstas no PPCDAM não têm, contudo, impedido o desrespeito ao limite de 20% previsto por lei para o desmatamento da cobertura florestal de propriedades privadas na região. Segundo dados recentes do Imazon, 72% da cobertura total desmatada no Mato Grosso em maio de 2007 se deu de modo ilegal.

Analistas apontam os projetos de ocupação da Amazônia implementados pela ditadura militar na origem dessa grande confusão, que se estende da fraude cartorial à indefinição de posses que fragilizam a governança de um dos ecossistemas com maior diversidade étnica e biológica no planeta. O quadro foi agravado com o Avança Brasil, proposta de desenvolvimento nacional lançada durante o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e com a Lei das UCs, editada no mesmo período. A combinação das medidas governamentais acabou permitindo a criação de áreas de proteção descoladas da necessidade de um ordenamento territorial mais estrutural da Amazônia.

"Existe uma dificuldade enorme de regulação da iniciativa privada. Toda atividade econômica pressiona o meio ambiente. E em se tratando de atividades agrícolas na Amazônia, o histórico é ainda mais complicado", pontua o pesquisador Sérgio Nunomura, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), especializado na área de uso sustentável da biodiversidade.

O governo federal alega que a expansão de monoculturas destinadas à produção de biocombustíveis se dará em áreas degradadas. A produção de 30 bilhões de litros de etanol esperada para 2013 pode se dar, segundo a ministra Marina Silva, em 300 milhões de áreas agricultáveis, das quais 51 milhões estão em repouso. "Mas quem garante que a atração econômica será contida apenas nessas áreas degradadas se os limites já estabelecidos por lei não estão sendo cumpridos?", indaga Sérgio, do Inpa.

A insuficiência de investimentos concretos na regularização fundiária, frisa ainda Paulo Barreto, do Imazon, pode frustrar os esforços na tentativa de certificação de produção sustentável - um quesito cada vez mais freqüente no rol de exigências do mercado externo e que também fez parte das promessas na esteira da sustentabilidade feitas pelo presidente Lula em visita recente à Europa.