O MOVIMENTO MODERNISTA E O GOLPE DE 30
De acordo com estudo realizado na Unicamp, discurso que serviu para sustentar o movimento cultural modernista no Brasil também foi utilizado para legitimar o golpe de 1930
Duas faces do modernismo
30/04/2008
Por Alex Sander Alcântara
Agência FAPESP – O movimento modernista no Brasil foi construído como um momento de libertação intelectual, em contraposição à história da cultura da Primeira República. O modernismo representaria “uma nova consciência nacional”, contraposta às idéias de uma elite que foi rotulada como superficial e alienada, alheia à realidade brasileira.
Mas essas idéias não se limitaram às expressões artísticas. De acordo com um estudo realizado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), havia um paralelismo entre o discurso usado para defender o projeto cultural modernista e os argumentos elaborados para dar legitimidade revolucionária ao golpe de 1930.
O estudo, realizado pelo professor do departamento de História da Unicamp Daniel Faria, foi divulgado na revista História, que é publicada pela editora da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
“Curiosamente, essa interpretação de libertação intelectual e descoberta da nação coincide com o discurso recorrente de defesa do governo Vargas naqueles anos, tido como uma retomada da consciência nacional”, afirmou Faria à Agência FAPESP.
Segundo o autor, que está finalizando seu pós-doutorado sobre o tema, na Unicamp, o conceito de "modernismo", tal como delineado por autores como Mário de Andrade (1893-1945), Tristão de Atahyde (1893-1983) e Rosário Fusco (1910-1976), é inseparável dessa questão, ao mesmo tempo política e estética.
“Defendo que o sentido político do modernismo é o da celebração do Estado como foco da consciência nacional, da eclosão das realidades profundas do país, mas com um nítido viés autoritário, o que explica inclusive o fascínio exercido pelo Estado sobre intelectuais ligados ao modernismo, que vai além das explicações que se pautam pela mera questão da cooptação”, explica o pesquisador, que é autor do livro O Mito modernista.
Um outro aspecto central da tese, levantado pelo pesquisador, é perceber que o autoritarismo implica exercício da violência, do terror estatal. Ou seja: a consciência nacional celebrada como eixo do governo de Vargas, e de alguns de seus concorrentes à esquerda e à direita, repousava sobre a violência.
“Por isso temos, em espectros diversos do modernismo, textos literários que comentam a violência, que falam pelo prisma da loucura e da criminalidade. Graciliano Ramos e Dyonélio Machado são exemplos disso, apesar de a crítica posterior tê-los enquadrado, equivocadamente, no conceito de modernismo segunda fase”, explicou Faria.
As análises sobre o modernismo como síntese estético-política da nação ganham coro à época dos críticos Tristão de Athayde (pseudônimo do escritor Alceu Amoroso Lima) e Rosário Fusco.
De acordo com a pesquisa, Tristão esboçava a idéia de um modernismo instintivo, depois de 1928, tornado corpo e consciência da nação. Segundo Rosário Fusco, citado por Faria, “o Estado garantia a cada autor, individualmente, a livre expressão de sua sensibilidade, além de sustentar a possibilidade da observação direta da realidade, sem as ilusões que teriam marcado o romantismo, as utopias e o liberalismo”.
A revolução política teria assinalado, portanto, uma trégua na revolução literária. Era preciso moderar a “fúria inicial” e começar um segundo modernismo, mais espontâneo que o primeiro. De acordo com Faria, no entanto, a versão estadonovista do modernismo de Rosário Fusco não deve ser entendida como "politização".
“É interessante observar que, como autor de romances, Rosário Fusco foi além dessas discussões. Seu romance O Agressor, com vários problemas de acabamento, foge aos parâmetros que ele defendia em outros tipos de textos por ser uma tentativa de mergulho na insanidade. Isso é muito importante, porque sempre devemos considerar que uma obra literária não se sujeita facilmente às imposições da crítica ou do poder”, diz.
Alguns autores caminhavam, de acordo com Faria, no sentido oposto ao de Fusco e Athayde, como Flávio de Carvalho. No livro “Experiência Número 2”, Flávio de Carvalho apresenta uma perspectiva divergente em termos literários e políticos.
“Um autor como Graciliano Ramos, ainda hoje lido e apresentado como participante dessa linha dita "realista" dos anos 1930, tem livros que não se encaixam nesse tipo de enquadramento. Indico também um livro de Dyonélio Machado, chamado O Louco do Cati, em que se discute claramente a relação entre tortura, terror político e loucura”, afirma o autor.
Para Faria, certas obras relevantes foram esquecidas e outras passaram por um processo de enquadramento crítico. “O Louco do Cati, por exemplo, foi comentado na revista Cultura Política, na década de 1940, mas apresentado como um romance que versava, apenas, sobre um personagem com problemas psiquiátricos. A questão da violência, tão explícita na obra, foi simplesmente omitida.”
O conceito de modernismo brasileiro, na avaliação do autor, permaneceu basicamente inalterado. Houve uma tendência de inflexão para a esquerda, a partir dos anos 1950 e 1960, mas a conceituação ainda passava a idéia de consciência e realidade nacional. É assim, diz o pesquisador, que o modernismo ainda hoje é ensinado em escolas e em cursos de graduação.
“Por outro lado, me parece que temos hoje uma tendência, na academia, de trabalhos mais preocupados com questões específicas, como a obra deste ou daquele autor, ou mesmo um romance em particular. Uma síntese mais nova foi tentada por Luís Bueno, que escreveu uma história da literatura dos anos 1930 fugindo às armadilhas do conceito de modernismo. Mas de resto o que impera é a repetição de idéias prontas”, afirma Faria.
Para ler o artigo Realidade e consciência nacional. O sentido político do modernismo, de Daniel Faria, disponível na biblioteca on-line SciELO (Bireme/FAPESP), clique aqui.
Foto: "Morro da favela", Tarsila do Amaral, 1924.
Duas faces do modernismo
30/04/2008
Por Alex Sander Alcântara
Agência FAPESP – O movimento modernista no Brasil foi construído como um momento de libertação intelectual, em contraposição à história da cultura da Primeira República. O modernismo representaria “uma nova consciência nacional”, contraposta às idéias de uma elite que foi rotulada como superficial e alienada, alheia à realidade brasileira.
Mas essas idéias não se limitaram às expressões artísticas. De acordo com um estudo realizado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), havia um paralelismo entre o discurso usado para defender o projeto cultural modernista e os argumentos elaborados para dar legitimidade revolucionária ao golpe de 1930.
O estudo, realizado pelo professor do departamento de História da Unicamp Daniel Faria, foi divulgado na revista História, que é publicada pela editora da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
“Curiosamente, essa interpretação de libertação intelectual e descoberta da nação coincide com o discurso recorrente de defesa do governo Vargas naqueles anos, tido como uma retomada da consciência nacional”, afirmou Faria à Agência FAPESP.
Segundo o autor, que está finalizando seu pós-doutorado sobre o tema, na Unicamp, o conceito de "modernismo", tal como delineado por autores como Mário de Andrade (1893-1945), Tristão de Atahyde (1893-1983) e Rosário Fusco (1910-1976), é inseparável dessa questão, ao mesmo tempo política e estética.
“Defendo que o sentido político do modernismo é o da celebração do Estado como foco da consciência nacional, da eclosão das realidades profundas do país, mas com um nítido viés autoritário, o que explica inclusive o fascínio exercido pelo Estado sobre intelectuais ligados ao modernismo, que vai além das explicações que se pautam pela mera questão da cooptação”, explica o pesquisador, que é autor do livro O Mito modernista.
Um outro aspecto central da tese, levantado pelo pesquisador, é perceber que o autoritarismo implica exercício da violência, do terror estatal. Ou seja: a consciência nacional celebrada como eixo do governo de Vargas, e de alguns de seus concorrentes à esquerda e à direita, repousava sobre a violência.
“Por isso temos, em espectros diversos do modernismo, textos literários que comentam a violência, que falam pelo prisma da loucura e da criminalidade. Graciliano Ramos e Dyonélio Machado são exemplos disso, apesar de a crítica posterior tê-los enquadrado, equivocadamente, no conceito de modernismo segunda fase”, explicou Faria.
As análises sobre o modernismo como síntese estético-política da nação ganham coro à época dos críticos Tristão de Athayde (pseudônimo do escritor Alceu Amoroso Lima) e Rosário Fusco.
De acordo com a pesquisa, Tristão esboçava a idéia de um modernismo instintivo, depois de 1928, tornado corpo e consciência da nação. Segundo Rosário Fusco, citado por Faria, “o Estado garantia a cada autor, individualmente, a livre expressão de sua sensibilidade, além de sustentar a possibilidade da observação direta da realidade, sem as ilusões que teriam marcado o romantismo, as utopias e o liberalismo”.
A revolução política teria assinalado, portanto, uma trégua na revolução literária. Era preciso moderar a “fúria inicial” e começar um segundo modernismo, mais espontâneo que o primeiro. De acordo com Faria, no entanto, a versão estadonovista do modernismo de Rosário Fusco não deve ser entendida como "politização".
“É interessante observar que, como autor de romances, Rosário Fusco foi além dessas discussões. Seu romance O Agressor, com vários problemas de acabamento, foge aos parâmetros que ele defendia em outros tipos de textos por ser uma tentativa de mergulho na insanidade. Isso é muito importante, porque sempre devemos considerar que uma obra literária não se sujeita facilmente às imposições da crítica ou do poder”, diz.
Alguns autores caminhavam, de acordo com Faria, no sentido oposto ao de Fusco e Athayde, como Flávio de Carvalho. No livro “Experiência Número 2”, Flávio de Carvalho apresenta uma perspectiva divergente em termos literários e políticos.
“Um autor como Graciliano Ramos, ainda hoje lido e apresentado como participante dessa linha dita "realista" dos anos 1930, tem livros que não se encaixam nesse tipo de enquadramento. Indico também um livro de Dyonélio Machado, chamado O Louco do Cati, em que se discute claramente a relação entre tortura, terror político e loucura”, afirma o autor.
Para Faria, certas obras relevantes foram esquecidas e outras passaram por um processo de enquadramento crítico. “O Louco do Cati, por exemplo, foi comentado na revista Cultura Política, na década de 1940, mas apresentado como um romance que versava, apenas, sobre um personagem com problemas psiquiátricos. A questão da violência, tão explícita na obra, foi simplesmente omitida.”
O conceito de modernismo brasileiro, na avaliação do autor, permaneceu basicamente inalterado. Houve uma tendência de inflexão para a esquerda, a partir dos anos 1950 e 1960, mas a conceituação ainda passava a idéia de consciência e realidade nacional. É assim, diz o pesquisador, que o modernismo ainda hoje é ensinado em escolas e em cursos de graduação.
“Por outro lado, me parece que temos hoje uma tendência, na academia, de trabalhos mais preocupados com questões específicas, como a obra deste ou daquele autor, ou mesmo um romance em particular. Uma síntese mais nova foi tentada por Luís Bueno, que escreveu uma história da literatura dos anos 1930 fugindo às armadilhas do conceito de modernismo. Mas de resto o que impera é a repetição de idéias prontas”, afirma Faria.
Para ler o artigo Realidade e consciência nacional. O sentido político do modernismo, de Daniel Faria, disponível na biblioteca on-line SciELO (Bireme/FAPESP), clique aqui.
Foto: "Morro da favela", Tarsila do Amaral, 1924.
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