O RIO JORDÃO COMO TESTEMUNHA
Moisés Diniz*
O lugar é sagrado para o povo kaxinawá do alto rio Jordão. Protegendo uma árvore secular, bancos saem da terra para receber uma dúzia de lideranças indígenas, que vieram dialogar comigo sobre os sonhos que os alimentam a incontáveis gerações. Entre a vegetação das margens do rio Jordão, como uma estrada de ferro que traz e leva sonhos, nosso encontro atinge o entardecer e o canto dos primeiros pássaros noturnos enche a mata com a sua sinfonia.
Eu acabara de chegar ao Jordão, após seis dias de viagem subindo o rio Tarauacá. Nosso primeiro encontro foi na foz do igarapé Sacado, distante sete horas de barco da cidade de Tarauacá. Lá a principal reivindicação foi a necessidade de se implantar o segundo grau, com mais de três dezenas de adolescentes tendo que se aventurar, sem dinheiro, casa e família, na cidade em busca do estudo que emancipa e renova sonhos. Há ainda a crônica ausência de ramais, que impede a instalação da energia elétrica, com dinheiro garantido, mas sem condições de implantar os postes.
No seringal Apudi a comunidade da família do ‘seu’ Calixto está como se uma penumbra pairasse sobre as moradias. O líder local, o Francisco, precisa de uma dose de entusiasmo e de novas idéias que quebrem a mesmice e o desânimo. A máquina peladeira de arroz estava desativada por causa de umas poucas peças. Não ficamos com conversa mole, enviamos o motor para conserto na cidade. Um barco de oito toneladas, motor Yamaha B18, fora entregue alguns dias antes da minha chegada. Ali não estava ausente o estado, desaparecera o sonho de embalar a vida e fazê-la cheia de luz. Era preciso a presença dos líderes urbanos e dos políticos que sempre estiveram no meio daquela gente simples e sonhadora, pois ‘não só de pão vive o homem’.
Na terra indígena Praia do Carapanã, do povo kaxinawá, passamos o dia visitando as sete aldeias, sob comando do cacique geral Jorge Leme e de seu filho Bené. Na aldeia Água Viva encontramos o jovem Edmílton produzindo um artesanato em madeira de encher os olhos. Nenhuma estrutura de apoio para que aquele artista da floresta produza belas peças em madeira, utilizando apenas um rústico e pequeno machado. Ficou ali registrada a necessidade de uma ação imediata da área de cultura do governo para incentivar a aldeia e seu artista. Se eu não tivesse ido lá nunca saberia que na aldeia Água Viva a arte imita a vida.
No seringal Sumaré, após três dias de viagem, um morro coberto de árvores adolescentes anuncia que uma morada foi abandonada e que seu dono realiza a sua última jornada. O velho líder rural e extrativista Chico Crente foi ao encontro de Deus e deixou os seus filhos cuidando do seu legado de luta e de resistência. O jovem Adelsom, seu filho, como delegado sindical, mobiliza e organiza as famílias do lugar em busca da sobrevivência e da felicidade. Naquele pedaço de tarde ensolarada, com o rio Tarauacá devolvendo suas últimas águas da grande enchente, senti um aperto no coração quando lembrei do velho amigo Chico Crente, na sua eterna alegria e jeito irreverente de viver e sonhar. Um dia para lembrar que a vida é tão fugaz como um beijo proibido, um sangramento.
Nos seringais União e Tamandaré, sob o comando dos líderes Raimundo Cavalcante e Raimundo Pipira, é gritante a ausência de mobilização social e de perspectiva para o povo do lugar. Assumi o compromisso de retornar em breve à região, encontrando um jeito de levar até aquele rio a presença do estado e devolver-lhe a alegria que alguém seqüestrou. Confesso que não foi um dia bom, saí deprimido e sequer pude desviar o desencanto nas fumaças do meu cigarro, pois estou lutando contra ele, como se combate um lobo.
Na reserva extrativista de Alagoas encontramos belas moradias de madeira, pintadas e cobertas de alumínio, mas percebi que faltava algo que embalasse aqueles homens rústicos e aquelas mulheres de olhar silencioso. Era como se eles estivessem num lugar que não disse ainda como eles devem produzir e se alimentar. O seu semblante era o de homens pobres no meio de um jardim de delícias onde, todavia, Deus postou um anjo a proteger a árvore da vida do olhar de cobiça. Aqueles homens estavam como Adão e Eva, proibidos de comer da árvore do meio do paraíso e sujeitos ao eterno Suplício de Tântalo, que contemplava os frutos e sentia seu aroma, mas não podia comê-los. Que pecado havia cometido o povo da reserva extrativista do Alto Tarauacá?
Chegamos ao Jordão ao entardecer e os camaradas, que elegeram três vereadores e o vice-prefeito, me receberam com indisfarçável alegria. Além da protocolar visita ao prefeito em exercício, Elson Farias, o contato com os vereadores, a reunião com os camaradas, visitamos o núcleo da União do Vegetal e, com alegria, encontrei jovens que, no último novenário, andavam alcoolizados pelas ruas. Assumimos o compromisso de transferir solidariedade e apoio à União do Vegetal do querido Jordão.
As nove noites foram ocupadas, nessa ordem, por nove missas, nove leilões e nove festas com o cantor da terra Marazona. O povo de Jordão é tão alegre, festivo e irreverente que, além das reivindicações econômicas e sociais, o mais robusto pedido foi o de que ajudássemos para que a cidade realizasse um alegre carnaval. Jordão nos cativou e nós iremos ajudar e passar dois dias de carnaval lá, junto com o povo que sonha e ri nas cabeceiras do rio.
O último compromisso, no nono dia de viagem, foi a bela e mágica reunião indígena que abriu este relato. Sob a luz das estrelas e os riscos de luz dos pirilampos, o povo kaxinawá falou dos seus sonhos e da sua resistência em proteger a terra e seus valiosos recursos naturais. Escola de segundo grau, açudes, energia elétrica, saúde, apoio à sua produção cultural, sonhos de um povo que resiste ao branco capitalista e seu desejo estúpido de transformar a terra em dinheiro e em mercadoria. Os líderes indígenas não pediram financiamento individual e nem título pessoal da terra, eles querem viver e produzir coletivamente e proteger a riqueza que os cerca e protege as futuras gerações.
Minha despedida de Jordão é como um adeus em prosa e verso. A poesia dorme nas noites de festa e de contato com a pele de todas as utopias e a prosa é a necessidade de viver, dormir, comer, estudar e produzir, registrada nas demandas do povo que falou aos meus ouvidos e ao meu sentimento. Lutarei por Jordão com a certeza de que aquele povo tem a mesma gênese e a mesma utopia do povo semita que atravessou o mais antigo rio das civilizações. Jordão é nota mil.
*Moisés Diniz é Deputado pleo PC do B-AC
O lugar é sagrado para o povo kaxinawá do alto rio Jordão. Protegendo uma árvore secular, bancos saem da terra para receber uma dúzia de lideranças indígenas, que vieram dialogar comigo sobre os sonhos que os alimentam a incontáveis gerações. Entre a vegetação das margens do rio Jordão, como uma estrada de ferro que traz e leva sonhos, nosso encontro atinge o entardecer e o canto dos primeiros pássaros noturnos enche a mata com a sua sinfonia.
Eu acabara de chegar ao Jordão, após seis dias de viagem subindo o rio Tarauacá. Nosso primeiro encontro foi na foz do igarapé Sacado, distante sete horas de barco da cidade de Tarauacá. Lá a principal reivindicação foi a necessidade de se implantar o segundo grau, com mais de três dezenas de adolescentes tendo que se aventurar, sem dinheiro, casa e família, na cidade em busca do estudo que emancipa e renova sonhos. Há ainda a crônica ausência de ramais, que impede a instalação da energia elétrica, com dinheiro garantido, mas sem condições de implantar os postes.
No seringal Apudi a comunidade da família do ‘seu’ Calixto está como se uma penumbra pairasse sobre as moradias. O líder local, o Francisco, precisa de uma dose de entusiasmo e de novas idéias que quebrem a mesmice e o desânimo. A máquina peladeira de arroz estava desativada por causa de umas poucas peças. Não ficamos com conversa mole, enviamos o motor para conserto na cidade. Um barco de oito toneladas, motor Yamaha B18, fora entregue alguns dias antes da minha chegada. Ali não estava ausente o estado, desaparecera o sonho de embalar a vida e fazê-la cheia de luz. Era preciso a presença dos líderes urbanos e dos políticos que sempre estiveram no meio daquela gente simples e sonhadora, pois ‘não só de pão vive o homem’.
Na terra indígena Praia do Carapanã, do povo kaxinawá, passamos o dia visitando as sete aldeias, sob comando do cacique geral Jorge Leme e de seu filho Bené. Na aldeia Água Viva encontramos o jovem Edmílton produzindo um artesanato em madeira de encher os olhos. Nenhuma estrutura de apoio para que aquele artista da floresta produza belas peças em madeira, utilizando apenas um rústico e pequeno machado. Ficou ali registrada a necessidade de uma ação imediata da área de cultura do governo para incentivar a aldeia e seu artista. Se eu não tivesse ido lá nunca saberia que na aldeia Água Viva a arte imita a vida.
No seringal Sumaré, após três dias de viagem, um morro coberto de árvores adolescentes anuncia que uma morada foi abandonada e que seu dono realiza a sua última jornada. O velho líder rural e extrativista Chico Crente foi ao encontro de Deus e deixou os seus filhos cuidando do seu legado de luta e de resistência. O jovem Adelsom, seu filho, como delegado sindical, mobiliza e organiza as famílias do lugar em busca da sobrevivência e da felicidade. Naquele pedaço de tarde ensolarada, com o rio Tarauacá devolvendo suas últimas águas da grande enchente, senti um aperto no coração quando lembrei do velho amigo Chico Crente, na sua eterna alegria e jeito irreverente de viver e sonhar. Um dia para lembrar que a vida é tão fugaz como um beijo proibido, um sangramento.
Nos seringais União e Tamandaré, sob o comando dos líderes Raimundo Cavalcante e Raimundo Pipira, é gritante a ausência de mobilização social e de perspectiva para o povo do lugar. Assumi o compromisso de retornar em breve à região, encontrando um jeito de levar até aquele rio a presença do estado e devolver-lhe a alegria que alguém seqüestrou. Confesso que não foi um dia bom, saí deprimido e sequer pude desviar o desencanto nas fumaças do meu cigarro, pois estou lutando contra ele, como se combate um lobo.
Na reserva extrativista de Alagoas encontramos belas moradias de madeira, pintadas e cobertas de alumínio, mas percebi que faltava algo que embalasse aqueles homens rústicos e aquelas mulheres de olhar silencioso. Era como se eles estivessem num lugar que não disse ainda como eles devem produzir e se alimentar. O seu semblante era o de homens pobres no meio de um jardim de delícias onde, todavia, Deus postou um anjo a proteger a árvore da vida do olhar de cobiça. Aqueles homens estavam como Adão e Eva, proibidos de comer da árvore do meio do paraíso e sujeitos ao eterno Suplício de Tântalo, que contemplava os frutos e sentia seu aroma, mas não podia comê-los. Que pecado havia cometido o povo da reserva extrativista do Alto Tarauacá?
Chegamos ao Jordão ao entardecer e os camaradas, que elegeram três vereadores e o vice-prefeito, me receberam com indisfarçável alegria. Além da protocolar visita ao prefeito em exercício, Elson Farias, o contato com os vereadores, a reunião com os camaradas, visitamos o núcleo da União do Vegetal e, com alegria, encontrei jovens que, no último novenário, andavam alcoolizados pelas ruas. Assumimos o compromisso de transferir solidariedade e apoio à União do Vegetal do querido Jordão.
As nove noites foram ocupadas, nessa ordem, por nove missas, nove leilões e nove festas com o cantor da terra Marazona. O povo de Jordão é tão alegre, festivo e irreverente que, além das reivindicações econômicas e sociais, o mais robusto pedido foi o de que ajudássemos para que a cidade realizasse um alegre carnaval. Jordão nos cativou e nós iremos ajudar e passar dois dias de carnaval lá, junto com o povo que sonha e ri nas cabeceiras do rio.
O último compromisso, no nono dia de viagem, foi a bela e mágica reunião indígena que abriu este relato. Sob a luz das estrelas e os riscos de luz dos pirilampos, o povo kaxinawá falou dos seus sonhos e da sua resistência em proteger a terra e seus valiosos recursos naturais. Escola de segundo grau, açudes, energia elétrica, saúde, apoio à sua produção cultural, sonhos de um povo que resiste ao branco capitalista e seu desejo estúpido de transformar a terra em dinheiro e em mercadoria. Os líderes indígenas não pediram financiamento individual e nem título pessoal da terra, eles querem viver e produzir coletivamente e proteger a riqueza que os cerca e protege as futuras gerações.
Minha despedida de Jordão é como um adeus em prosa e verso. A poesia dorme nas noites de festa e de contato com a pele de todas as utopias e a prosa é a necessidade de viver, dormir, comer, estudar e produzir, registrada nas demandas do povo que falou aos meus ouvidos e ao meu sentimento. Lutarei por Jordão com a certeza de que aquele povo tem a mesma gênese e a mesma utopia do povo semita que atravessou o mais antigo rio das civilizações. Jordão é nota mil.
*Moisés Diniz é Deputado pleo PC do B-AC
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