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28 agosto 2009

AÇAI E DOENÇA DE CHAGAS NA AMAZÔNIA

“Colocamos barbeiros limpos, da nossa colônia, propositadamente num cesto de açaí e acompanhamos todo o trajeto do cesto”, contou. Isso foi feito pelo menos 15 vezes, e numa única vez um dos “batedores” de açaí artesanal identificou o inseto" - depoimento de um pesquisador do Instituto Evandro Chagas, de Belém-PA

[Cestos de açai: esconderijo fácil para o barbeiro. Foto: Paraonline]

Problema hoje claro de saúde pública, a doença de Chagas prevalece em toda a América Latina, mas é na Amazônia que se espalha com velocidade, informou a bióloga Ângela Junqueira, do Laboratório de Doenças Parasitárias (IOC/Fiocruz), na mesa “Aspectos clínicos e epidemiológicos da doença de Chagas” (11/3). Lá estão identificadas 16 espécies de triatomíneo, o inseto conhecido como barbeiro, e de diferentes hospedeiros do T. cruzi.

“Por que não se falava em doença de Chagas na região, mesmo tendo reservatório e vetores infectados?”, questionou. Casos autóctones foram identificados há menos de 20 anos, mas em 1922 já se sabia que em Barcelos (AM) havia vítimas entre extratores de fibra de palmeira, picadas por exemplares da espécie Rhodnius brethesi. Para ela, prova de que investigações deveriam ter sido feitas há décadas.

A infecção chagásica humana na Amazônia brasileira é descrita desde 1960 por pesquisadores do Ipec/Fiocruz. Em 1977, identificaram 100 casos positivos. Na década de 70, inquérito nacional da antiga Sucam mostrou baixíssima prevalência da doença em Roraima, Amapá e Pará, porém significativa em Mato Grosso, Amazonas e Acre. Inquérito em 1976 revelou somente em Barcelos taxa de prevalência de 6,3%. “E eram casos autóctones”. Nos anos 1985, detectou-se possível infecção mista entre T. cruzi e T. rangeli, outro parasita das Américas.

Ângela apontou quatro cenários da doença: grande número de casos agudos por transmissão oral, especialmente pelo açaí; domicilialização (adaptação do vetor ao ambiente doméstico); soroprevalência alta em áreas não-endêmicas; e casos de cardiopatia chagásica clássica. Investigações são urgentes sobre vetores e parasitas-hospedeiros, defendeu. “Precisamos determinar a população de T. cruzi e seu tropismo, verificar os receptores específicos do indivíduo infectado nas diferentes etnias e na população imigrante, oferecer testes rápidos para a fase aguda e encontrar resposta às drogas existentes no mercado”.

O biólogo Sebastião Aldo da Silva Valente, chefe da Seção de Parasitologia do Instituto Evandro Chagas (IEC/SVS/MS), falou do impacto da transmissão oral na Amazônia brasileira e de ciclos e sítios de triatomíneos onde homens e animais convivem. “O ribeirinho depende do extrativismo e cada vez mais avança no ambiente do barbeiro”, advertiu. Já foram detectados casos de transmissão pelo sangue, “mas a oral é a mais importante”. De 1968 a 2006 foram identificados 97 surtos com mais de 600 infectados, principalmente no Pará e no Amapá: de 621 casos autóctones, 422 foram do Pará, 131 do Amapá, 49 do Amazonas, 11 do Maranhão e 8 do Acre. “A maioria por via oral”.

VOO e contaminação

Sebastião calcula: desde 1968, houve mais de 100 surtos e mais de 750 casos agudos. O primeiro surto foi em Belém em 1969. Naquela época, a forma de transmissão causou dúvida, mas já se desconfiava da oral, “não se sabia como”. Seguiram-se os casos de Mazagão (Amapá, 1996), Abaetuba (1999), Ananindeua (2003), Bragança (2004), Barcarena (2006) e, mais uma vez, Belém (2006), todos do Pará. De 2005 a 2007, diagnosticou-se na Amazônia média de 100 casos por ano e 5% de óbitos, principalmente no Pará e no Amapá. “A região se assemelha hoje às antigas áreas endêmicas, sobretudo no verão”. As queimadas são agravante — “facilitam a dispersão e o voo dos insetos”.

[Ângela e Sebastião: desafios complexos. Foto: Katia Machado]

Em investigação com Datasus e IEC, Sebastião confirmou no açaí a causa de parte dos surtos. “Esses estudos foram feitos em condições epidemiológicas bem favoráveis e por isso foi possível identificar o alimento transmissor”, informou: normalmente há demora na investigação etiológica, o que prejudica a conclusão do raciocínio epidemiológico sobre a forma de transmissão. Em Mazagão, estudo de corte não deixou dúvida. “Mas estudos em comunidades fechadas como essa são mais fáceis, ou menos difíceis”. Comprovar a causa da transmissão oral é mais complicado em grandes metrópoles como Belém.

Ao investigar por anos seguidos o segmento do açaí no Pará — maior região produtora —, conferindo seu armazenamento e transporte, o pesquisador observou que a contaminação se dava no trajeto. “Os barcos esperam a maré melhorar para atravessar para os centros urbanos, e os barbeiros voam das matas de palmeira de buriti e caem nos cestos”, contou. Ali, mesmo os barbeiros mortos mantêm o parasita por muito tempo.

Esse açaí vai parar em pontos de revenda com precariedade de higiene. “Isso explica por que no centro de Belém, num dos bairros mais chiques, uma família inteira de um prédio nobre se infecte sem a mínima possibilidade de outro tipo de transmissão sem ser a oral”. Perto do prédio havia ponto de venda artesanal de açaí processado.

Sebastião fez estudo de simulação: “Colocamos barbeiros limpos, da nossa colônia, propositadamente num cesto de açaí e acompanhamos todo o trajeto do cesto”, contou. Isso foi feito pelo menos 15 vezes, e numa única vez um dos “batedores” de açaí artesanal identificou o inseto. “Pode ser que essa não seja a única forma de transmissão, mas é certamente a mais importante no Pará”.

Foi temerário afirmar que está contaminado o alimento mais consumido no estado e um dos mais importantes produtos industriais do Pará. O estado exporta 700 mil toneladas de poupa por ano, que rende U$ 500 milhões anuais e 150 mil empregos. “Aí aparece um leso e diz que isso pode transmitir a doença de Chagas”, descreveu ele a situação. Teve o carro quebrado, recebeu telefonemas anônimos com ameaça de morte e foi “escorraçado” de reuniões de produtores. “Sofri na pele por insistir que era preciso investir na vigilância sanitária”.

Houve avanço no diagnóstico, na notificação e no tratamento, “mas há que melhorar muito a vigilância”. Principalmente do pequeno produtor, já que os grandes produzem em escala industrial e pasteurizam a poupa: o T. cruzi não resiste à pasteurização. “O pequeno não tem essa estrutura e, culturalmente, o povo paraense não tem hábito de comer o açaí industrializado, e sim na forma natural”.

É preciso quebrar o preconceito de que o açaí não pode ser veículo de transmissão do barbeiro, disse, e deixar que a vigilância sanitária aja sem interferência ou chantagem política. “Uma grande rede de supermercado de Belém teve 150 toneladas de poupa condenadas; bastou um telefonema do gerente ao prefeito para devolverem toda a mercadoria”.

*Nota integrante da série especial 'CENTENÁRIO DA DESCOBERTA DA DOENÇA DE CHAGAS', publicada na revista Radis nº 81 – Maio de 2009