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02 setembro 2009

A MUDANÇA PSICOLÓGICA CAUSADA POR UM TRANSPLANTE

Estudo conclui que cirurgia faz com que o paciente tenha uma noção radical de que o homem é um ser social

O que significa a experiência de ter um órgão transplantado

Renata Moehlecke
Agência Fiocruz de Notícias

Em tese de doutorado defendida na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), a enfermeira e psicóloga Teresa Cristina Soares analisou o que significa a experiência de ter um órgão transplantado, como as pessoas que passaram por esse processo percebem o próprio corpo e o que isso implica para as práticas em saúde. Para o estudo, a pesquisadora consultou a opinião de 20 indivíduos transplantados, com idade entre 20 e 69 anos, sendo o tempo decorrido da cirurgia entre 15 dias e 13 anos. Eles foram recrutados em sites de ajuda a pessoas transplantadas e por meio de profissionais de saúde. O estudo concluiu que a realização do procedimento faz com que o transplantado tenha uma noção radical de que o homem é um ser social e interdependente de outros, o que tem influência direta nas questões biológicas e nas práticas intervencionistas.

“O transplante abarca processos biológicos e psíquicos. No entanto, a ciência trabalha estas questões de maneira dissociada, com ênfase no enfoque técnico, onde prepondera o problema da rejeição imunológica”, afirma a Teresa. “A ideia central neste estudo é considerar que a questão da alteridade vivida pela pessoa transplantada de maneira subjetiva e psíquica, ao receber em si o outro, está entranhada na própria experiência biológica e corporal. A perspectiva é entender o corpo como algo inteiro, não dissociado, integrado numa rede de elementos constitutivos que engloba uma dinâmica de interações entre seus componentes e entre estes e outros seres vivos e seu ambiente”.

Segundo a pesquisadora, entre os entrevistados, os principais motivos para a realização do procedimento cirúrgico foram diabetes, hepatite C adquirida em transfusão de sangue, nefropatias, hepatopatias e cardiopatias. Os tipos de transplante foram de rim, coração, fígado e pâncreas. A autora da tese comenta que, em qualquer que fosse a idade, a descoberta da doença foi vivida como uma crise intensa, inesperada e assustadora. “A alteração séria na condição de saúde gera um grande impacto que faz com que as pessoas se sintam sem controle sobre sua vida. Essa situação é carregada de extrema intensidade afetiva e de uma desorganização geral da vida cotidiana”, aponta Teresa.

Além dessa fase inicial, a pesquisadora identificou que a experiência é sempre recordada com riqueza de detalhes, independentemente do tempo já transcorrido. “Passados anos desde a experiência do transplante, o entrevistado ainda é capaz de especificar a ordem dos acontecimentos, os dias da semana, as suas ações e as dos outros, o que disse, o que lhe disseram e o que sentiu”, destaca Teresa. “Isto ocorreu em todas as entrevistas, sem exceção, independentemente da idade e do grau de instrução. Parece que estes são sinais profusos que somente uma experiência muito intensa e profunda pode manter vívidos por longo tempo”.

De acordo com a pesquisadora, a trajetória de espera para que o transplante aconteça, em todos os casos, apresenta muita angústia e medo, acompanhada de sentimentos ambíguos e contraditórios, que fazem com que a qualidade de vida caia ou desapareça. “Há muito medo de não conseguir um órgão a tempo, devido às condições de saúde. Mas o desejo de que esse novo órgão não demore a aparecer é, ao mesmo tempo, acompanhado do medo da rejeição após o transplante ou de morrer durante a cirurgia”, explica Teresa. “O forte anseio de que apareça um doador ainda é vivido pelo indivíduo como se fosse também um outro desejo: o de que outras pessoas sofram para que ele seja feliz, pois a doação só surgirá de uma situação cruel que envolve o doador e sua família. A culpa, para os candidatos, também existe em saber que outras pessoas estão na mesma situação e ainda não tiveram uma oportunidade”.

Teresa também esclarece que, quando o órgão a ser recebido vem de uma pessoa morta, os receptores se sentem imensamente gratos, mas, na maior parte dos casos, não desejam nenhum tipo de contato direto com a família do doador. Já a relação entre receptor e doador vivo, em geral, um parente próximo, evidencia outro paradoxo do transplante. “Podem estar presentes acontecimentos concomitantes como inversão de papéis familiares, sentimento de culpa, pressões internas, fortalecimento do afeto, sentimentos de dever ou reconhecimento. Qualquer que seja a situação, ela acaba por exigir um reposicionamento familiar”, diz.

Além disso, os entrevistados demonstram grande inquietação pelo fato de não serem vistos como pessoas inteiras, mas como máquinas que precisam ser reparadas, e pelo estresse de todo o processo ocorrido antes da cirurgia, muitas vezes caracterizado por uma vida inteira de limitações. O estresse também decorre da expectativa relacionada ao sucesso do transplante e da necessidade de aceitação de tomar como seu o órgão de outra pessoa, somadas à experiência muitas vezes traumatizante do ambiente frio e altamente tecnológico do hospital. “O discurso da biomedicina sobre a objetivação do corpo perde o sentido em face da profunda experiência do corpo subjetivamente vivido, cuja dimensão de alteridade é percebida pelo seu caráter de abertura para o outro e para o mundo”, comenta a pesquisadora.