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06 novembro 2009

POPULAÇÕES AMAZÔNICAS NÃO SÃO ALVOS PRIORITÁRIOS DOS PROJETOS HIDRELÉTRICOS

Por Fabíola Munhoz, do Amazônia.org.br

A governadora do Pará Ana Júlia Carepa (PT) defendeu na última terça-feira (13), em São Paulo, a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA), como um projeto para a geração de energia limpa.

Para a governadora, o empreendimento é necessário porque irá render energia à população paraense e receita tributária ao governo do Estado, além de substituir as termelétricas poluentes que hoje abastecem a região.

Francisco Hernandez, um dos coordenadores do Painel de Especialistas que indicou falhas no Estudo/Relatório de Impactos Ambientais (EIA/RIMA) de Belo Monte, concedeu uma entrevista ao Site Amazonia.org.br, em que discorda do discurso da governadora paraense. Hernandez, que é pesquisador do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP), acredita que, ainda que o EIA de Belo Monte seja corrigido quanto às falhas apontadas por estudiosos, o projeto deve ser abandonado.

Para ele, a energia produzida pela usina será destinada à indústria, não à população, e o pouco recurso energético gerado com o empreendimento não compensará os altos custos financeiros e socioambientais da obra.

Confira a conversa.

Amazonia.org.br - A governadora do Pará, Ana Júlia Carepa, afirmou recentemente que irá cobrar a inclusão dos custos financeiros das linhas de transmissão que ligariam Belo Monte ao Sistema Interligado Nacional (SIN) na previsão de gastos do projeto. Caso isso aconteça, vai aumentar muito o custo da hidrelétrica?

Francisco Hernandez - Tínhamos notado no estudo dos primeiros volumes do EIA/RIMA que a conexão ao sistema de transmissão não era algo que estava definido. Ou seja, deixava-se para o futuro a discussão de como seria a conexão de Belo Monte, caso seja construída, ao sistema de transmissão. Isso causa problemas porque a potência proposta para Belo Monte é de cerca de 11mil MW e, para isso, a definição do porte e das características das linhas de transmissão e da subestação que seria acoplada à usina teriam que ser definidas.

Isso porque existe uma especificidade na usina de Belo Monte, segundo a qual, em alguns momentos do ano, ela produziria energia próxima a sua capacidade máxima. E, em alguns outros momentos, ela se tornaria excessivamente ociosa. Há necessidade de equipamentos específicos para que, no momento em que a usina gerasse pouca energia, houvesse uma adequação ao sistema de transmissão. Nos momentos em que a usina não opera ou operasse com transporte de energia baixo, você deveria manter as linhas de transmissão energizadas. Para isso, há a necessidade de equipamentos específicos. Essa especificidade deveria estar, no mínimo, sinalizada nos estudos de viabilidade e no estudo de impacto ambiental. É uma omissão que foi mencionada no nosso relatório. Portanto, essa preocupação da governadora é pertinente.

Amazonia.org.br - Ana Júlia também disse que uma das exigência do Pará será a de que parte da energia produzida seja aproveitada pela população do Estado. Essa condição pode tornar a obra favorável à região?

Hernandez - Essa indefinição do sistema de transmissão não permite dizer qual o destino nem o rumo dessa energia que será gerada porque a usina de Belo Monte, teoricamente, estaria ligada ao Sistema Interligado. Se existe uma preocupação do governo do Estado de que essa energia seja destinada ao governo, essa caracterização da capacidade das linhas de transmissão também tem que estar definida, ou seja, o reforço de uma linha em determinado sentido e não em outro. Outra questão é que historicamente as populações da Amazônia não são os alvos prioritários dos projetos hidrelétricos. O alvo é a indústria eletrointensiva, que consome muito energia, tem tarifas subsidiadas e emprega poucas pessoas. É uma indústria que faz exportação quase líquida de energia. Um exemplo é a indústria de alumínio primário.

Essas questões são fruto da indefinição do projeto de Belo Monte, em termos de subestimação dos custos e indefinição de como será a conexão da usina ao sistema de transmissão. Isso não nos permite dizer com certeza para onde iria essa energia, se para a indústria eletrointensiva ou para o SIN. Essa definição só se dará quando soubermos como Belo Monte se conecta ao sistema. Deveria ter sido ao mínimo mencionado no EIA/RIMA. Pois não podemos dissociar a geração da transmissão quando se fala em planejamento energético.

Amazonia.org.br - E as linhas de transmissão que interligariam Belo Monte ao Sistema Nacional também causariam impactos socioambientais?

Hernandez - Todas as linhas de transmissão têm suas conseqüências socioambientais, dentre as quais desapropriação de terras e desalojamento de populações que estão no trajeto das linhas de transmissão. A linha Tucuruí-Jurupari, pela qual se pretende conectar Belo Monte, passa por uma reserva extrativista, a Verde para Sempre. Isso é um aspecto delicado. São projetos distintos, mas que não podem ser dissociados. Em termo de custos gerais, imagina se esse dinheiro fosse emprestado pelo BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], que é um banco de caráter público? Esses custos e especificidades da linha de transmissão deveriam estar claras. É um projeto complexo que exige complexidade adicional na transmissão.

Amazonia.org.br - A governadora do Pará diz, em defesa da usina, que exigirá que parte do ICMS - Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - aplicado à energia passe a ser cobrado no local de produção, rendendo receita ao governo do Estado. Isso pode garantir a realização das políticas públicas que serão necessárias à região, caso Belo Monte seja construída?

Hernandez - Essa é uma discussão pertinente do ponto de vista de política fiscal, mas o que alertamos em nossos pareceres é que a grande maioria dos programas propostos está indefinida. Portanto, não há condição sequer de calcularmos os custos dos programas sociais. O detalhamento dos programas sugeridos no EIA/RIMA é muito pequeno. Então, muitas vezes durante o estudo notamos que se propõe um programa de acompanhamento da malária, ou uma necessidade de aumento do sistema primário de saúde, mas não se colocam detalhes do programa. Isso deixa dúvidas na avaliação da quantidade de recursos públicos que devem ser alocados numa obra desse tipo. Acho que isso deveria ser objeto de preocupação do governo do Estado, pois, se muita coisa se transfere em termos de responsabilidade ao poder público, isso significa que o poder público vai necessariamente ter que alocar recursos para fazer com que os programas sejam efetivamente levados adiante. Se o detalhamento dos programas não é feito ainda, do ponto de vista da política pública do governo do Estado a ser sugerida, essa indefinição persiste.

Amazonia.org.br- É verdade que a construção de Belo Monte vai significar a geração de energia limpa para substituir as termelétricas que hoje abastecem a região?

Hernandez- A energia hidrelétrica é tida como renovável e limpa, mas isso não é verdade. A história da hidroeletricidade brasileira demonstra que o número de atingidos, pessoas reassentadas, realocadas, expulsas de suas terras por empreendimentos hidrelétricos, de acordo com dados da CPT [Comissão Pastoral da Terra] e do MAB [Movimento dos Atingidos por Barragens], ultrapassam um milhão de pessoas. Inclusive, o passivo social desses reassentamentos e os impactos sobre suas comunidades ainda não foi devidamente superado. Outro aspecto é que as hidrelétricas, especialmente as de grande porte, provocam conseqüências ambientais de grande volume. O relatório da Comissão Mundial de Barragens mostra claramente isso. Não podemos dizer que a conversão de energia hidrelétrica é limpa, principalmente em se tratando de Belo Monte, projeto numa região de extrema biodiversidade. Especialistas em ictiologia e em diversidade da Volta Grande do rio Xingu são taxativos em recomendar o abandono do projeto pela extrema perda da biodiversidade que acontecerá. Estamos questionando um projeto complicado, problemático e que traz severas consequências ambientais. É disso que se trata, e não de ser contra hidrelétrica.

Amazonia.org.br- Quais são as expectativas dos especialistas que integraram o Painel com relação à resposta do Ibama aos seus questionamentos?

Hernandez- Nossa expectativa é de que a promessa de Messias [Roberto Messias, presidente do Ibama] se cumpra e de que essas colocações assinadas por 28 especialistas e feitas, no conjunto, por 42 pesquisadores que compuseram o Painel, sejam estudadas com seriedade e profundidade. E que os proponentes do projeto respondam essas questões, inclusive de maneira pública.

Também consideramos que as populações ribeirinhas que não estão sendo consideradas como diretamente atingidas- indígenas das duas terras indígenas que serão afetadas e comunidades ribeirinhas, como as do Garimpo do Galo e da Vila da Ressaca-, devem ser ouvidas e esclarecidas sobre as conseqüências ambientais desse projeto. Por esse motivo, as oitivas indígenas também são necessárias.

Eles devem fazer os estudos necessários com o devido aprofundamento, embora haja uma pressão para que a LI saia antes do leilão proposto para a obra no fim do ano. Nós como estudiosos não podemos concordar. Se existem falhas gravíssimas no EIA, os estudos devem ser refeitos, a ponto de poderem oferecer à sociedade estudos que digam quais as conseqüências sociais do projeto e os programas de mitigação necessários, com determinados custos.

O Messias já teve que se retratar publicamente por ter dito que nenhum questionamento havia sido protocolado após as audiências publicas. Mas, no dia 1° de outubro, tínhamos nossos pareceres protocolados. O Ibama deve responder a isso. Esperamos que o instituto cumpra seu papel, não de simplesmente fazer questionamentos sobre o EIA, mas também sobre as criticas que foram apresentadas com relação aos impactos ambientais, e que tenha a capacidade de exigir mais desses estudos. Nossa outra expectativa é de que nosso trabalho e a divulgação feita pelas agências de notícias sensibilizem o governo de que Belo Monte é um equivoco de conseqüências ambientais e sociais seríssimas.

Amazonia.org.br - Há possibilidade de que sejam corrigidas as falhas do EIA/RIMA de Belo Monte e, diante disso, a obra se torne viável?

Hernandez - Pela quantidade de consequências ambientais, por esse projeto estar inserido numa região de biodiversidade tremenda da Amazônia, por essa ociosidade operativa, por essa complexidade da obra, que simultaneamente alaga e deixa com vazão drasticamente reduzida, o posicionamento do Painel é de que a obra deve ser abandonada por ser um grave equívoco.

Parte dos especialistas do painel esteve reunida com o presidente Lula e lideranças locais. Naquele instante, o recado foi este: o governo não deveria ter para si essa marca de uma obra de infraestrutrura com tamanhas consequências ambientais. Já tivemos a usina de Balbina, e não queremos que isso se repita. É uma obra complexa que compromete as Terras Indígenas (TIs) Paquiçamba e Arara, que terão seus modos de vida comprometidos porque, em determinadas épocas do ano, dentro do hidrograma proposto pela obra, teríamos redução de até cinco metros do nível de água de pontos da Volta Grande.

Isso compromete não só a capacidade reprodutiva de espécies animais, mas também a manutenção da floresta aluvial, que depende da dinâmica flutuante do rio Xingu, e as populações ribeirinhas que vivem à jusante da barragem principal. Assim como os índios das terras afetadas, essas populações não são consideradas como atingidas no EIA da obra. Isso é uma lacuna extremamente grave. Se isso fosse considerado, reforçaria nosso argumento de que o projeto deveria ser abandonado.

(Envolverde/Amazônia.org.br)