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27 março 2010

CHICO BUARQUE NÃO GOSTA DE 'RODA VIVA'

...mas os diretores de teatro gostam. O que gera um impasse: como convencer o autor a liberar os direitos para montagens?

Por Mariana Delfini
Revista Bravo

[O ator Rodrigo Santiago, caracterizado como Menino Jesus de Praga, é erguido pelo elenco da primeira montagem de Roda Viva. A encenação causou polêmica, entre outras coisas, pelas provocações religiosas]

Em 2005, a diretora teatral Patrícia Zampiroli estava concluindo o curso de Artes Cênicas na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, a Unirio, e optou por dirigir a peça Roda Viva, de Chico Buarque, em seu trabalho de conclusão de curso. Foi um sucesso: o espetáculo lotou as sessões na universidade durante os dois meses em que ficou em cartaz. Patrícia, assim, foi convidada a levar o trabalho para o circuito profissional, no Teatro Glória, no Rio de Janeiro. Começaram aí suas tribulações. Para estrear a peça comercialmente, ela precisaria da autorização do autor. Entrou em contato com seu escritório. Chico Buarque estava em Paris, mas sua equipe informou Patrícia que, como a peça estava montada, era só esperar que ele provavelmente liberaria. No retorno, no entanto, Chico não autorizou. Patrícia insistiu, o que só aumentou a animosidade: "Chico ficou chateado, porque a gente insistiu muito, com abaixo-assinados, indo à TV. Disse que liberaria outras peças, se nós quiséssemos, mas não Roda Viva".

Neste ano, outro diretor deve percorrer o mesmo calvário. O paulista Heron Coelho, que já montou outras duas peças de Chico Buarque - Gota D'Água, em 2006, e Calabar, em 2008 - quer agora levar Roda Viva aos palcos. Para a montagem imaginada para este ano, já tem elenco na cabeça e o plano de construí-la na mesma linha de seus trabalhos anteriores: no formato "breviário", usando teatro de arena e música ao vivo. "Eu vou sofrer. Vou ter que vender o carro e o piano, porque preciso de dinheiro para alugar lugar para ensaiar, comprar equipamento, pagar os atores", diz ele. Sua estratégia é montar o espetáculo por conta própria, gravar em DVD e enviar uma cópia a Chico Buarque. Acha que, diante do esforço do diretor e da trupe, o coração do autor talvez amoleça. Mas Heron avisa: "Não vou insistir. Se ele não deixar, acato de primeira". As perspectivas não parecem muito boas. Contatado por BRAVO! para comentar o assunto, Chico Buarque não respondeu, mas sua assessoria de imprensa disse que o autor não pretende afrouxar o veto: "Ele considera que o texto não merece ser remontado por suas deficiências dramáticas".

Roda Viva é um espetáculo que entrou para a história do teatro brasileiro mais pelo alvoroço que provocou, na época da estreia, do que pelo texto em si. Em 1967, o diretor José Celso Martinez Corrêa havia revolucionado a cena nacional com O Rei da Vela, peça do modernista Oswald de Andrade escrita em 1933 e nunca levada ao palco antes. A montagem carregava nas tintas esquerdistas em voga na época. Mas não foi por isso que entrou para a história, e sim pelo virtuosismo técnico do diretor - que fez seus atores satirizarem, no palco, diversas linguagens cênicas, da revista à ópera. Depois de O Rei da Vela, todo mundo queria saber qual seria o próximo passo de Zé Celso. E ele retirou da manga um curinga inesperado, um texto escrito por um jovem titã da canção popular que satirizava justamente a fabricação de ídolos musicais: Chico Buarque.

A peça se tornou um "hype" a partir dos ensaios no Rio de Janeiro, que duraram apenas quinze dias e viraram parada obrigatória para as celebridades da época. Entre elas, o roqueiro Mick Jagger, que estava de passagem pelo Rio de Janeiro antes de se refestelar no sol baiano de Itapuã com sua namorada Marianne Faithfull, e de Miriam Makeba, a cantora sul-africana que apresentava seu sucesso Pata Pata em um especial da TV Record na mesma época. "O público ia ver, os ensaios foram a sensação do verão", lembra Zé Celso. A estreia aconteceu no dia 15 de janeiro, no Teatro Princesa Isabel. "Foi um sucesso estrondoso", diz o diretor.

Roda Viva tinha vários dos elementos que mais tarde se tornariam típicos do estilo de encenação de Zé Celso. O cenário do artista plástico Flávio Império colocava o teatro dentro de um estúdio de televisão, decorado com um São Jorge gigantesco e uma enorme réplica de uma garrafa de Coca-Cola. A atriz Zezé Motta, que fazia sua estreia nos palcos depois de um curso na escola Tablado ("eu era tímida, insegura e virgem", lembra ela), usava na primeira cena uma malha cor da pele, que trazia o logotipo do inseticida Detefon. Ela vinha caminhando desde o fundo do palco junto com atores que representavam outros produtos, falando "Compre! Compre!", em volume cada vez mais alto. Ao chegar na primeira fila, os atores agarravam os espectadores pelos ombros e os sacudiam. Esse recurso de fazer a plateia participar à força- que mais tarde se tornaria uma assinatura de Zé Celso - deu o que falar. É mencionado em várias das reportagens escritas na época.

As mesmas reportagens comentam - abstendo-se às vezes de descrever, por pudor - as cenas de alusão sexual não tão velada, algumas delas blasfemas. Numa delas, a atriz Marieta Severo representava Nossa Senhora de biquíni. Ela rebolava diante de uma câmera de televisão, cuja lente se expandia e contraía. Em outro trecho, um fígado cru de boi era despedaçado e devorado pelo coro, deixando gotas de sangue respingarem na roupa dos espectadores. Alguns iam embora no meio da peça. Outros gostavam, aplaudiam, e até voltavam - mas tomavam o cuidado de mudar de cadeira caso decidissem passar pela experiência novamente.

"TODOS NÓS SABEMOS QUE EXISTE O COITO"

Pouco a pouco, em meio ao grande sucesso, a peça passou a despertar reações adversas. "Todos nós sabemos que existe o coito. Não é necessário repeti-lo com tantos pormenores e realismo num palco", protestou a deputada Conceição da Costa Neves, vice-presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo, que integrava o time dos opositores. O mal-estar ecoou nos meios políticos. "É uma verdadeira afronta à nossa sociedade e à nossa família", bradou o deputado paulista Wadih Helu, um baluarte conservador que mais tarde faria fama como cartola do Corinthians. "Isso não pode em nenhuma parte do mundo, nem na selva africana, ser chamado de arte. Aquilo é ofensa, aquilo é despudor, aquilo é destruir uma família na sua moral, amolecer uma nação. Aquilo que lá está é um bordel, e não um palco", discursou na Assembleia Legislativa de São Paulo o deputado Aurélio Campos, que havia sido ator de teatro no passado.

As reações contra a peça culminariam em dois episódios de puro vandalismo. Depois de meses de sucesso no Rio de Janeiro, o espetáculo estreou em São Paulo em maio, no teatro Ruth Escobar. No dia 18 de julho, um grupo de baderneiros de direita que se auto-denominava CCC - Comando de Caça aos Comunistas - invadiu a sala ao término do espetáculo armado com cassetetes, facas, soco-inglês e bombas de gás lacrimogêneo, agrendindo os atores e obrigando-os a fugir. O outro episódio de violência ocorreria em outubro, na escala seguinte da turnê, em Porto Alegre. Foi logo no dia 4, o seguinte à estreia da peça. As paredes do teatro apareceram pichadas mensagens como "Fora, agitadores", "Abaixo a pornografia" e "Comunistas". Decidido a ir embora, o elenco foi surpreendido por homens armados, e o músico Zelão e a atriz Beth Gasper foram sequestrados e abandonados em um matagal. No dia 5, os atores embarcaram em ônibus de volta para São Paulo. A peça foi censurada logo depois, e nunca mais seria encenada no circuito profissional.

Roda Viva foi vítima de um espírito de época. Uma época estranha, em que direita e esquerda ainda não haviam conquistado o civilizado espaço da democracia para esgrimir suas teses - algo que felizmente acontece hoje - e se digladiavam de maneira tosca, apelando para o recurso dos pouco inteligentes: a violência. De um lado, o Partido Comunista do Brasil e outras forças autoritárias de esquerda pregavam e praticavam a luta armada — a qual não foi uma reação contra a ditadura, pois começou a ser preparada antes de 1964, ainda em tempos de democracia. De outro, uma ditadura que, como todo regime autoritário, perseguia os opositores com violência - e indiretamente encorajava grupelhos como o CCC, que barbarizavam por conta própria. Foi um tempo que não deixou saudade, em que guerreávamos uns contra os outros, como se fôssemos talibãs. Nesse caldo de intolerância, o mundo artístico, que precisa de liberdade e espaço de debate civilizado para florescer, sempre acaba sofrendo. Aconteceu no Brasil dos anos 60, como no Chile de Pinochet e na Cuba de Fidel, mais ou menos na mesma época .

Para além das provocações e da criatividade exuberante de Zé Celso, o texto tem um enredo simples e carrega algo da ingenuidade política da época. Seu protagonista é o fictício Benedito Silva, com sua trajetória ascendente no mundo do show business. Benedito conta com a ajuda de um empresário, Anjo, que emprega fórmulas mirabolantes. Ele muda o nome do cantor para Ben Silver, e mais tarde para Benedito Lampião - embalagem com a qual se tornaria um produto de exportação. Chega um momento em que o protagonista é levado a se suicidar para se tornar mártir do povo. Resignado com seu destino, depois das devidas despedidas, atira-se em frente a um carro. Rei morto, rainha posta: sua mulher Juliana é quem assume o papel de ídolo, alimentando a roda-viva do que nos anos 60 se costumava chamar de "indústria cultural".

BAIXO CALÃO NO PASQUIM

A resistência de Chico Buarque em liberar Roda Viva para encenação provavelmente não se deve apenas ao fato de o texto ter elementos datados. Existem também reais deficiências de construção dramatúrgica. Para o crítico e pesquisador de teatro Kil Abreu, é possível que Chico Buarque não tolere novas montagens de sua primeira peça justamente por considerá-la uma obra juvenil. "O texto tenta equilibrar a individualidade, na questão do artista que precisa se rebatizar para ser assimilado, e o social, abordando os temas da época de crítica ao consumismo e à televisão", diz ele. "Mas esses temas não são tão bem trabalhados como em Gota D'Água, e a estrutura fica desigual", completa. Segundo Kil, os personagens são também carentes de complexidade. Chico Buarque tem opinião parecida há muito tempo. Em entrevista dada ao jornal carioca Pasquim, em 1975, ele disparou, sem policiar o calão: "Roda Viva, antes que você fale, eu digo: 'É uma merda'".

Os diretores Zé Celso, Heron Coelho e Patrícia Zampiroli não concordam. Eles acham que Roda Viva ainda tem o que dizer nos tempos atuais e também acreditam na qualidade do texto. Existe no Brasil jurisprudência de peça rejeitada, nesse nível, pelo próprio autor? Há casos de excesso de zelo, mas não radicais a esse ponto. O crítico Kil Abreu lembra-se que o paraibano Ariano Suassuna faz uma supervisão rigorosa de seus textos, acompanhando de perto cada montagem. A jornalista Gabriela Mellão se recorda apenas de autores que reescreveram suas peças de juventude, como Plínio Marcos. O veto depois de uma primeira montagem, ao que parece, é situação inédita. E os apelos continuam: "Eu acho que o Chico devia fazer um exame de percepção. Ele, que lutou contra a censura, está censurando sua própria peça. Libera, Chico!", diz Zé Celso, que pede que sua fala seja endereçada como um pedido ao autor.