O 'EMBARGADOR' GERAL
Alan Zaborski já retardou quase 400 licitações públicas em São Paulo. Seu êxito mostra o absurdo que é nosso sistema delicitações: complexo, burocrático e incapaz de evitar desvios
Por Fabiane Stefano
Revista Exame, 16.03.2010
[Zaborski: "Os editais são muito malfeitos. Alguns têm até erros gramaticais grosseiros". Foto: Germano Lüders]
Alan Zaborski, um paulistano de 36 anos, descendente de poloneses e lituanos, costumava ser um especialista em síntese de fármacos. Formado em química, há três anos abandonou o estudo das moléculas para se dedicar a uma área que, embora igualmente complexa, nada tem a ver com sua especialização: as entrelinhas de editais de licitação. Em pouco tempo, Zaborski, com sua estampa de nerd e mais de 2 metros de altura, virou um per so na gem conhecido - e temido - na administração pública do estado de São Paulo. Seu nome passou a aparecer sistematicamente nos pedidos de exame prévio de editais - etapa que precede a abertura dos envelopes com as propostas dos concorrentes. Ninguém o supera em número de embargos de licitações em órgãos estatais paulistas: desde 2007, so ma quase 400 pedidos de análise. Daí seu apelido nos corredores do governo: o embargador geral. Zaborski questiona todo tipo de licitação - desde a compra de combustível para carros da Secretaria de Saúde até a contratação de serviços de arqueólogos para pesquisas nas escavações do metrô. "Ele tentou parar a maioria das licitações que fizemos em 2009", diz José Luiz Portella, secretário de Transportes Metropolitanos de São Paulo. "É um transtorno, pois, se a licitação atrasa, a conclusão da obra também é postergada."
O embargador, porém, não faz nada de ilegal - ao contrário. A Constituição federal e a Lei no 8.666, que rege o processo de compras e contratações públicas, garantem que qualquer cidadão possa impugnar um edital de licitação se houver indício de irregularidade. A medida foi criada para evitar favorecimentos nas relações entre empresas e governos, mas criou um campo para que tudo seja ques tionado - implicando uma demora adi cional em obras e contratações de serviços. Zaborski se apega a detalhes téc nicos dos processos, normalmente negligenciados pelos funcionários dos ór gãos públicos. "Os editais são muito malfeitos. Têm até erros gramaticais grosseiros", diz ele, que se gaba de ter parado a licitação do Expresso Aeroporto, projeto de 1,4 bilhão de reais para ligar o aeroporto internacional de Guarulhos ao centro de São Paulo. A Secretaria de Transportes Metropolitanos paulista admite apenas que o edital está sendo revisado por razões técnicas.
O CASO DE ZABORSKI É O LADO mais pitoresco de uma indústria de impugnação de licitações. Em São Paulo, há cursos para advogados se aprofundarem nos meandros da legislação. Isso porque se cristalizou a prática de o perdedor de uma licitação pública tentar reverter o resultado na Justiça. Afinal, para entrar na disputa, é preciso investir dinheiro no desenho de uma proposta técnica e financeira - custo que, dependendo do tamanho da obra a ser disputada, pode chegar aos milhões de reais. Por isso, as empresas, que chegam aos certames públicos amparadas por um forte esquema jurídico, não querem perder o didinheiro aplicado. "Todos os editais têm problemas. Quem procurar vai achar algum defeito", diz o advogado Fernando Henrique Cunha, especializado em direito público. Diferentemente de Zaborski, que opera apenas no Tribunal de Contas, a maioria dos advogados opta pela Justiça comum para impedir o desfecho de uma licitação - e conseguem travá-las até por anos.
O cerne dessas complicações reside nos 126 artigos da lei das licitações, que é de 1993. É um emaranhado de artigos tão complexo que abre brecha para o questionamento desde aspectos burocráticos até questões de engenharia. "De um lado, todo mundo pode questionar tudo. De outro, os tribunais de contas e o Ministério Público têm a obrigação de fiscalizar se a denúncia procede. O re sultado é uma quantidade absurda de ações, que tumultua o trabalho desses órgãos", diz o advogado Jonas Lima, ex-assessor da Controladoria Geral da União. No Senado, está parado um projeto de simplificação da lei, mas nem essa proposta de mudança conta com o consenso dos advogados porque a maioria das complicações permaneceria. Ao contrário de outros países, o Brasil optou por uma legislação que prima pelo excessivo controle prévio. Idealmente faz sentido: é melhor pegar um erro antes que ele aconteça. Mas, na prática, as múltiplas e minuciosas exigências legais não têm garantido processos mais lícitos nem impedido a roubalheira - haja vista a enorme quantidade de obras suspeitas de corrupção, superfaturamento e outras irregularidades. O que acaba ocorrendo é apenas o aumento da burocracia, que começa antes de cada obra e continua depois dela, na fase de prestações de contas. No final, essa estrutura arcaica tem apenas dificultado o investimento tanto de governos como de empresas. "Se todas as obras que o Brasil precisa fazer para a Copa e a Olimpíada forem impugnadas, nenhum dos eventos vai acontecer", diz Lima.
A atuação de Zaborski naturalmente passou a chamar a atenção no próprio Tribunal de Contas do Estado. As centenas de processos com intervenção dele aumentaram consideravelmente o trabalho do TCE. Os conselheiros do tribunal já expressam até por escrito sua irritação com a insistência de Zaborski em corrigir pormenores irrelevantes. Em casos assim, um edital pode ficar parado até 45 dias. Mas os conselheiros também reconhecem que muitos argumentos de Zaborski têm fundamento e exigem que os órgãos façam ajustes. Aí, a espera para um edital voltar à rua chega a levar meses - mas o efeito pode ser positivo, por evitar que o processo caminhe com defeitos e seja abortado numa fase mais avançada. No Tribunal de Contas, a grande dúvida é qual a motivação de Zaborski. "Seria importante que a legislação exigisse que quem deseja impugnar um processo revele seus reais interesses", diz o conselheiro Robson Marinho, do TCE paulista. Zaborski entrou para o mundo das licitações na tentativa de resolver uma causa pessoal. Há oito anos, seu pai, Edmundo Zaborski, coronel da Polícia Militar do estado, foi condenado por desvio de dinheiro público numa operação de importação de autopeças de Israel. Para ajudar na defesa do pai, ele começou a destrinchar a complexa legislação de compras públicas. Após a morte de Edmundo, em 2004, atribuiu-se a missão de limpar o nome da família e continuou a pesquisar o tema - diz que, agora, o caso do pai está prestes a ser resolvido. Como num roteiro de filme, Zaborski também decidiu se vingar da Polícia Militar, tornando-se uma espécie de vigia implacável de suas licitações. Só em 2007 entrou com mais de uma centena de representações contra a corporação e a secretaria estadual de Segurança Pública. Desde então, fez voltar atrás dezenas de processos de compras de uniformes e de combustível.
Alguns dirigentes de órgãos e empresas estatais suspeitam que Zaborski estaria agindo em favor de empresas interessadas em protelar os editais de licitação. "Já me acusaram até de ser laranja. Mas os aspectos que eu capto nunca favorecem nenhuma das partes", diz Zaborski. Ele alega que nunca ganhou dinheiro com os pedidos de exame prévio - embora já tenha recebido propostas de remuneração para embargar licitações. "Faço isso por convicção", afirma. Seu talento para escarafunchar os editais, porém, está se convertendo em um negócio. Recentemente, passou a atuar como consultor de empresas que já mantêm contratos com o poder público e enfrentam dificuldades na execução. É um trabalho que, dependendo da complexidade, pode render até 5% do valor do contrato. Também presta consultoria a advogados que procuram brechas nos editais para gerar embargos. Orgulhoso, Zaborski diz que até já deu dicas (sem cobrar) a órgãos públicos que foram alvos de suas impugnações. "A qualidade das licitações já está melhorando", afirma. Sua atuação tem sido tão reconhecida que ele decidiu sanar sua maior limitação: a falta de um diploma de advogado, que o impede de propor novas formas de embargo, como mandados de segurança. Também tem planos de abrir um escritório especializado em contas públicas. "Enquanto não tenho diploma, vou contratar um advogado para assinar as ações", diz. Ainda em 2010, ele pretende iniciar o curso numa faculdade perto de sua casa, na zona leste de São Paulo, onde mora com a mãe. Ou seja, seu potencial de atormentar os burocratas vai aumentar.
Por Fabiane Stefano
Revista Exame, 16.03.2010
[Zaborski: "Os editais são muito malfeitos. Alguns têm até erros gramaticais grosseiros". Foto: Germano Lüders]
Alan Zaborski, um paulistano de 36 anos, descendente de poloneses e lituanos, costumava ser um especialista em síntese de fármacos. Formado em química, há três anos abandonou o estudo das moléculas para se dedicar a uma área que, embora igualmente complexa, nada tem a ver com sua especialização: as entrelinhas de editais de licitação. Em pouco tempo, Zaborski, com sua estampa de nerd e mais de 2 metros de altura, virou um per so na gem conhecido - e temido - na administração pública do estado de São Paulo. Seu nome passou a aparecer sistematicamente nos pedidos de exame prévio de editais - etapa que precede a abertura dos envelopes com as propostas dos concorrentes. Ninguém o supera em número de embargos de licitações em órgãos estatais paulistas: desde 2007, so ma quase 400 pedidos de análise. Daí seu apelido nos corredores do governo: o embargador geral. Zaborski questiona todo tipo de licitação - desde a compra de combustível para carros da Secretaria de Saúde até a contratação de serviços de arqueólogos para pesquisas nas escavações do metrô. "Ele tentou parar a maioria das licitações que fizemos em 2009", diz José Luiz Portella, secretário de Transportes Metropolitanos de São Paulo. "É um transtorno, pois, se a licitação atrasa, a conclusão da obra também é postergada."
O embargador, porém, não faz nada de ilegal - ao contrário. A Constituição federal e a Lei no 8.666, que rege o processo de compras e contratações públicas, garantem que qualquer cidadão possa impugnar um edital de licitação se houver indício de irregularidade. A medida foi criada para evitar favorecimentos nas relações entre empresas e governos, mas criou um campo para que tudo seja ques tionado - implicando uma demora adi cional em obras e contratações de serviços. Zaborski se apega a detalhes téc nicos dos processos, normalmente negligenciados pelos funcionários dos ór gãos públicos. "Os editais são muito malfeitos. Têm até erros gramaticais grosseiros", diz ele, que se gaba de ter parado a licitação do Expresso Aeroporto, projeto de 1,4 bilhão de reais para ligar o aeroporto internacional de Guarulhos ao centro de São Paulo. A Secretaria de Transportes Metropolitanos paulista admite apenas que o edital está sendo revisado por razões técnicas.
O CASO DE ZABORSKI É O LADO mais pitoresco de uma indústria de impugnação de licitações. Em São Paulo, há cursos para advogados se aprofundarem nos meandros da legislação. Isso porque se cristalizou a prática de o perdedor de uma licitação pública tentar reverter o resultado na Justiça. Afinal, para entrar na disputa, é preciso investir dinheiro no desenho de uma proposta técnica e financeira - custo que, dependendo do tamanho da obra a ser disputada, pode chegar aos milhões de reais. Por isso, as empresas, que chegam aos certames públicos amparadas por um forte esquema jurídico, não querem perder o didinheiro aplicado. "Todos os editais têm problemas. Quem procurar vai achar algum defeito", diz o advogado Fernando Henrique Cunha, especializado em direito público. Diferentemente de Zaborski, que opera apenas no Tribunal de Contas, a maioria dos advogados opta pela Justiça comum para impedir o desfecho de uma licitação - e conseguem travá-las até por anos.
O cerne dessas complicações reside nos 126 artigos da lei das licitações, que é de 1993. É um emaranhado de artigos tão complexo que abre brecha para o questionamento desde aspectos burocráticos até questões de engenharia. "De um lado, todo mundo pode questionar tudo. De outro, os tribunais de contas e o Ministério Público têm a obrigação de fiscalizar se a denúncia procede. O re sultado é uma quantidade absurda de ações, que tumultua o trabalho desses órgãos", diz o advogado Jonas Lima, ex-assessor da Controladoria Geral da União. No Senado, está parado um projeto de simplificação da lei, mas nem essa proposta de mudança conta com o consenso dos advogados porque a maioria das complicações permaneceria. Ao contrário de outros países, o Brasil optou por uma legislação que prima pelo excessivo controle prévio. Idealmente faz sentido: é melhor pegar um erro antes que ele aconteça. Mas, na prática, as múltiplas e minuciosas exigências legais não têm garantido processos mais lícitos nem impedido a roubalheira - haja vista a enorme quantidade de obras suspeitas de corrupção, superfaturamento e outras irregularidades. O que acaba ocorrendo é apenas o aumento da burocracia, que começa antes de cada obra e continua depois dela, na fase de prestações de contas. No final, essa estrutura arcaica tem apenas dificultado o investimento tanto de governos como de empresas. "Se todas as obras que o Brasil precisa fazer para a Copa e a Olimpíada forem impugnadas, nenhum dos eventos vai acontecer", diz Lima.
A atuação de Zaborski naturalmente passou a chamar a atenção no próprio Tribunal de Contas do Estado. As centenas de processos com intervenção dele aumentaram consideravelmente o trabalho do TCE. Os conselheiros do tribunal já expressam até por escrito sua irritação com a insistência de Zaborski em corrigir pormenores irrelevantes. Em casos assim, um edital pode ficar parado até 45 dias. Mas os conselheiros também reconhecem que muitos argumentos de Zaborski têm fundamento e exigem que os órgãos façam ajustes. Aí, a espera para um edital voltar à rua chega a levar meses - mas o efeito pode ser positivo, por evitar que o processo caminhe com defeitos e seja abortado numa fase mais avançada. No Tribunal de Contas, a grande dúvida é qual a motivação de Zaborski. "Seria importante que a legislação exigisse que quem deseja impugnar um processo revele seus reais interesses", diz o conselheiro Robson Marinho, do TCE paulista. Zaborski entrou para o mundo das licitações na tentativa de resolver uma causa pessoal. Há oito anos, seu pai, Edmundo Zaborski, coronel da Polícia Militar do estado, foi condenado por desvio de dinheiro público numa operação de importação de autopeças de Israel. Para ajudar na defesa do pai, ele começou a destrinchar a complexa legislação de compras públicas. Após a morte de Edmundo, em 2004, atribuiu-se a missão de limpar o nome da família e continuou a pesquisar o tema - diz que, agora, o caso do pai está prestes a ser resolvido. Como num roteiro de filme, Zaborski também decidiu se vingar da Polícia Militar, tornando-se uma espécie de vigia implacável de suas licitações. Só em 2007 entrou com mais de uma centena de representações contra a corporação e a secretaria estadual de Segurança Pública. Desde então, fez voltar atrás dezenas de processos de compras de uniformes e de combustível.
Alguns dirigentes de órgãos e empresas estatais suspeitam que Zaborski estaria agindo em favor de empresas interessadas em protelar os editais de licitação. "Já me acusaram até de ser laranja. Mas os aspectos que eu capto nunca favorecem nenhuma das partes", diz Zaborski. Ele alega que nunca ganhou dinheiro com os pedidos de exame prévio - embora já tenha recebido propostas de remuneração para embargar licitações. "Faço isso por convicção", afirma. Seu talento para escarafunchar os editais, porém, está se convertendo em um negócio. Recentemente, passou a atuar como consultor de empresas que já mantêm contratos com o poder público e enfrentam dificuldades na execução. É um trabalho que, dependendo da complexidade, pode render até 5% do valor do contrato. Também presta consultoria a advogados que procuram brechas nos editais para gerar embargos. Orgulhoso, Zaborski diz que até já deu dicas (sem cobrar) a órgãos públicos que foram alvos de suas impugnações. "A qualidade das licitações já está melhorando", afirma. Sua atuação tem sido tão reconhecida que ele decidiu sanar sua maior limitação: a falta de um diploma de advogado, que o impede de propor novas formas de embargo, como mandados de segurança. Também tem planos de abrir um escritório especializado em contas públicas. "Enquanto não tenho diploma, vou contratar um advogado para assinar as ações", diz. Ainda em 2010, ele pretende iniciar o curso numa faculdade perto de sua casa, na zona leste de São Paulo, onde mora com a mãe. Ou seja, seu potencial de atormentar os burocratas vai aumentar.
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home