GOLPE 'BOA NOITE CINDERELA': POUCO NOTIFICADO E DE DIFÍCIL CARACTERIZAÇÃO
Katia Machado
Agência Fiocruz de Notícias
[O Boa noite, Cinderela normalmente pega a pessoa em situações em que está sozinha]
Um dos golpes mais antigos do mundo, o agora chamado Boa noite, Cinderela, que consiste em dopar a vítima com drogas, inseridas, em geral, em bebidas alcoólicas, para praticar danos como assalto ou estupro, foi tema do primeiro debate promovido pelo recém-criado Laboratório de Estudos de Gênero (LEG) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Como explica a pesquisadora Anna Marina Barbará Pinheiro, coordenadora do LEG, o golpe é propiciado por um conjunto de drogas conhecidas como rape-drugs, ou drogas de violação, que causam efeito depressor no sistema nervoso central, principalmente, quando combinadas com o álcool. Os medicamentos são hipnóticos ou sedativos potentes, bastante nocivos, provocando sonolência e diminuição das atividades corticais. As vítimas são preferencialmente homossexuais masculinos e mulheres, com foco nas prostitutas.
O grande problema desse crime, tipificado pelas Organizações das Nações Unidas (ONU) e pela Organização dos Estados Americanos (OEA) como tortura e conhecido em todo mundo, é que raramente consegue ser caracterizado e registrado em delegacias policiais, pois as pessoas atingidas sentem-se constrangidas e não se lembram do que lhes aconteceu. “Ou se lembram de maneira fragmentada”, como observou o sociólogo e professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ Paulo Baía, que abriu a mesa Boa noite Cinderela, sexualidades periféricas e novas formas de violência. Paulo atendeu mais de 600 casos do golpe, quando esteve à frente da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, entre 2006 e 2007.
A expressão “sexualidades periféricas”, do título do evento, refere-se a fetiches sexuais e a desejos colocados em prática em proporções diferenciadas individualmente, “mas que nem sempre assumimos”, definiu Anna. Segundo a coordenadora, a mesma expressão é usada na obra do filósofo Michel Foucault (1926-1984), para designar toda sexualidade externa à norma heterossexual.
De acordo com Paulo Baía, o espectro de vítimas do golpe é amplo. Além de homossexuais e prostitutas, outros grupos, também vulneráveis, são atacados. Ele conheceu casos de moradores de favelas que foram dopados pela própria polícia para que delatassem traficantes de drogas e de mulheres dopadas por seus maridos com a intenção de descobrir traições extraconjugais — a exemplo de Cleópatra, a rainha do Egito, que, segundo estudos, teria feito o mesmo com o imperador Marco Antonio. Além disso, a prática também é usada para fazer vítimas de sequestro relâmpago e se abusar sexualmente de mulheres e crianças, a exemplo de Roger Abdelmassih, 65 anos, um dos maiores especialistas da América Latina em fertilização in vitro. O médico fora acusado, em 2009, de estuprar pelo menos 51 mulheres durante procedimentos clínicos em seu consultório em São Paulo.
Preconceito
A médica e representante da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos Maria do Espírito Santo Tavares dos Santos frisou o quanto as mulheres são vítimas do Boa Noite, Cinderela e de outros atos de violência. Segundo a palestrante, com base nos dados da Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180), dos 269.977 atendimentos realizados em 2008, 94,1% dos registros de relatos de violência são casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres, 63% trazem o cônjuge como autor das agressões e 65% relatam que a frequência da violência é diária. “Nesse sentido, o debate sobre a violência contra a mulher torna-se cada vez mais imperioso”.
O número real de vítimas do golpe é desconhecido. “Há grande subnotificação”, confirmou Anna, em entrevista à Radis. Ela informou que, das 1.110 denúncias feitas ao Disque-Defesa Homossexual do Centro de Referência contra a Violência e Discriminação Homossexual (Cerconvidh) — órgão da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos do Consumidor do Rio de Janeiro, criado em dezembro de 2006 — 32,8% eram casos do golpe.
Especialistas concordam que o crime está bastante associado à solidão, e ao desejo de se encontrar companhia o mais rápido possível, o que torna as pessoas mais vulneráveis, seja qual for o sexo ou a orientação sexual. “À exceção de casos como os de policiais e moradores de favelas, o Boa noite, Cinderela normalmente pega a pessoa em situações em que está sozinha, numa noite de paquera, por exemplo”, confirmou Gabriela Leite, representante da Rede Brasileira de Prostitutas, também participante do debate. Ela chamou atenção para o preconceito com que muitas vezes a vítima é tratada. “Conheço amigas que foram questionadas, na Delegacia da Mulher, sobre o que faziam na rua tarde da noite, como se fossem culpadas pelo crime”, contou Gabriela, para quem toda sexualidade é periférica. ”No que se refere a sexo, ainda precisamos fazer muitas coisas às escondidas”.
Autora de livro que tem como título o mesmo nome do golpe, Boa Noite, Cinderela (Zit Editora), Maria Teresa Moreira explicou que o crime é um tipo de violência silenciosa e inusitada. Ela revelou no debate que escrever o livro, no qual apresenta relatos de homens homossexuais sobre a vergonha de terem caído no golpe, mexeu com suas cismas, medos e fantasias. “Falo dos que estavam à procura de alguém e acordam muitas vezes roubados ou violentados”, contou, emocionada.
Agência Fiocruz de Notícias
[O Boa noite, Cinderela normalmente pega a pessoa em situações em que está sozinha]
Um dos golpes mais antigos do mundo, o agora chamado Boa noite, Cinderela, que consiste em dopar a vítima com drogas, inseridas, em geral, em bebidas alcoólicas, para praticar danos como assalto ou estupro, foi tema do primeiro debate promovido pelo recém-criado Laboratório de Estudos de Gênero (LEG) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Como explica a pesquisadora Anna Marina Barbará Pinheiro, coordenadora do LEG, o golpe é propiciado por um conjunto de drogas conhecidas como rape-drugs, ou drogas de violação, que causam efeito depressor no sistema nervoso central, principalmente, quando combinadas com o álcool. Os medicamentos são hipnóticos ou sedativos potentes, bastante nocivos, provocando sonolência e diminuição das atividades corticais. As vítimas são preferencialmente homossexuais masculinos e mulheres, com foco nas prostitutas.
O grande problema desse crime, tipificado pelas Organizações das Nações Unidas (ONU) e pela Organização dos Estados Americanos (OEA) como tortura e conhecido em todo mundo, é que raramente consegue ser caracterizado e registrado em delegacias policiais, pois as pessoas atingidas sentem-se constrangidas e não se lembram do que lhes aconteceu. “Ou se lembram de maneira fragmentada”, como observou o sociólogo e professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ Paulo Baía, que abriu a mesa Boa noite Cinderela, sexualidades periféricas e novas formas de violência. Paulo atendeu mais de 600 casos do golpe, quando esteve à frente da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, entre 2006 e 2007.
A expressão “sexualidades periféricas”, do título do evento, refere-se a fetiches sexuais e a desejos colocados em prática em proporções diferenciadas individualmente, “mas que nem sempre assumimos”, definiu Anna. Segundo a coordenadora, a mesma expressão é usada na obra do filósofo Michel Foucault (1926-1984), para designar toda sexualidade externa à norma heterossexual.
De acordo com Paulo Baía, o espectro de vítimas do golpe é amplo. Além de homossexuais e prostitutas, outros grupos, também vulneráveis, são atacados. Ele conheceu casos de moradores de favelas que foram dopados pela própria polícia para que delatassem traficantes de drogas e de mulheres dopadas por seus maridos com a intenção de descobrir traições extraconjugais — a exemplo de Cleópatra, a rainha do Egito, que, segundo estudos, teria feito o mesmo com o imperador Marco Antonio. Além disso, a prática também é usada para fazer vítimas de sequestro relâmpago e se abusar sexualmente de mulheres e crianças, a exemplo de Roger Abdelmassih, 65 anos, um dos maiores especialistas da América Latina em fertilização in vitro. O médico fora acusado, em 2009, de estuprar pelo menos 51 mulheres durante procedimentos clínicos em seu consultório em São Paulo.
Preconceito
A médica e representante da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos Maria do Espírito Santo Tavares dos Santos frisou o quanto as mulheres são vítimas do Boa Noite, Cinderela e de outros atos de violência. Segundo a palestrante, com base nos dados da Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180), dos 269.977 atendimentos realizados em 2008, 94,1% dos registros de relatos de violência são casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres, 63% trazem o cônjuge como autor das agressões e 65% relatam que a frequência da violência é diária. “Nesse sentido, o debate sobre a violência contra a mulher torna-se cada vez mais imperioso”.
O número real de vítimas do golpe é desconhecido. “Há grande subnotificação”, confirmou Anna, em entrevista à Radis. Ela informou que, das 1.110 denúncias feitas ao Disque-Defesa Homossexual do Centro de Referência contra a Violência e Discriminação Homossexual (Cerconvidh) — órgão da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos do Consumidor do Rio de Janeiro, criado em dezembro de 2006 — 32,8% eram casos do golpe.
Especialistas concordam que o crime está bastante associado à solidão, e ao desejo de se encontrar companhia o mais rápido possível, o que torna as pessoas mais vulneráveis, seja qual for o sexo ou a orientação sexual. “À exceção de casos como os de policiais e moradores de favelas, o Boa noite, Cinderela normalmente pega a pessoa em situações em que está sozinha, numa noite de paquera, por exemplo”, confirmou Gabriela Leite, representante da Rede Brasileira de Prostitutas, também participante do debate. Ela chamou atenção para o preconceito com que muitas vezes a vítima é tratada. “Conheço amigas que foram questionadas, na Delegacia da Mulher, sobre o que faziam na rua tarde da noite, como se fossem culpadas pelo crime”, contou Gabriela, para quem toda sexualidade é periférica. ”No que se refere a sexo, ainda precisamos fazer muitas coisas às escondidas”.
Autora de livro que tem como título o mesmo nome do golpe, Boa Noite, Cinderela (Zit Editora), Maria Teresa Moreira explicou que o crime é um tipo de violência silenciosa e inusitada. Ela revelou no debate que escrever o livro, no qual apresenta relatos de homens homossexuais sobre a vergonha de terem caído no golpe, mexeu com suas cismas, medos e fantasias. “Falo dos que estavam à procura de alguém e acordam muitas vezes roubados ou violentados”, contou, emocionada.
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