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Na Web No BLOG AMBIENTE ACREANO

29 dezembro 2010

A HISTÓRIA DO MASSACRE DE ÍNDIOS NO ACRE

Pedro Biló: O massacre do lago Arapapá (*)

Sérgio Aparecido Dias (**)

"E a lua prateada testemunhou a extrema covardia do ser humano, embrutecido em sua loucura assassina"

Primeira Parte

A História é imparcial e fria nos registros e relatos dos personagens. Feitos heróicos e atos de-gradantes caminham paralelos, ao longo da estrada da vida. Muitas vezes, a linha que delimita heróis e bandidos é muito tênue, e o bom se mistura com o mau, sendo quase impossível separar o joio do trigo.

O que caracteriza um bandido? Qual o perfil do herói?

Se, para a justiça, todo matador é assassino e, conseqüentemente é um criminoso, talvez não o seja para a comunidade onde mora. Matar em defesa das terras ameaçadas é um ato heróico ou um ato criminoso? Exterminar um povo selvagem para ficar com suas terras também é crime?

Caso afirmativo, porquê consideramos os Bandeirantes como heróis e lhes homenageamos, batizando cidades e logradouros públicos com os seus nomes?

Quem foi Raposo Tavares? Quem foi Bartolomeu Bueno da Silva, conhecido como Anhangüera (diabo velho)?

Em duas investidas conquistadoras pelas terras brasileiras ( incursões essas chamadas bandeiras), Raposo Tavares destruiu aldeias jesuítas em Guayra, na fronteira com o Paraguai, aprisionando centenas de indígenas e matando outras tantas centenas, em 1629, com o auxílio de outro bandeirante, Manuel Preto. Entre 1648 e 1651, saiu de São Paulo e fez incursões no Amazonas e no Pará, chegando ao Perú. Nessas investidas conquistadoras, extinguiu tribos inteiras e escravizou os índios sobreviventes nessas regiões. Hoje, seu nome está associado ao heroísmo, à coragem e à honra. Seus crimes o colocam na galeria dos heróis nacionais, por matar os índios e tomar-lhes as terras de seus ancestrais.

E o que dizer de Domingos Jorge Velho ? Esse bandeirante, entre outras coisas, adentrou pelo nordeste brasileiro entre 1695 e 1697, destruindo aldeias indígenas no Maranhão e no Pernambuco, tornando centenas deles em seus escravos e carregadores de sua bagagem. Participou ativamente do cerco ao Quilombo dos Palmares, sendo um dos responsáveis pela morte de Zumbí dos Palmares.

Esses homens e todos os outros bandeirantes são hoje festejados como heróis, mas a questão é: eles são heróis realmente?

Esse breve relato das atrocidades de alguns dos bandeirantes, a bem da verdade todos eles escravistas e racistas, serve de pano de fundo para a história que agora passo a narrar: a história de Pedro Biló, um dos homens de confiança do coronel José Gurgel Rabêlo, o temido Zeca Rabêlo, todo-poderoso do rio Envira, no estado do Acre.

Ele (Pedro Biló) também se enquadra no perfil dos bandeirantes, já que desbravava regiões em busca de seringais e castanhais, fazendo a necessária “limpeza étnica”, matando índios e incendiando suas aldeias. Entre outras nações índias, certamente os Caxinauá (povo morcego) foram os que mais sentiram o peso de sua mão e a pontaria certeira de seu rifle. Sua área de atuação se estendia desde o atual município de Feijó, descendo até a foz do Envira, no rio Juruá, e subindo uns 2 dias de viagem (num motor de 33 HP) até acima do seringal Olinda do Maciel, fundado pelo coronel Maciel, por volta de 1905, em terras onde viviam, outrora livres, mais de 1000 índios Caxinauá.

Pedro Biló foi o responsável direto pelo decréscimo desse expressivo número de nativos, dizimando-os a tal modo que, em 1976, os dois aldeamentos principais dos Caxinauá se resumiam em algumas poucas dezenas de índios, a maioria já corrompida pela bebida e pela prostituição. E, apesar de seus quase 70 anos, a simples pronúncia de seu nome fazia os índios tremerem de pavor. E as lendas o tornavam mais e mais misterioso.

- Pedro Biló tem parte com o cão, seu moço! Rasteja igual cobra e ninguém vê ele de noite, não! Só enxerga, quando ele já tá enfiando a faca na goela, que Deus me livre e guarde!

- Ele tem reza braba e se apega com São Cipriano, cruz credo!!!

- O Biló? Ah, o seu Pedro é gente boa, é só não bulí com ele!

Opiniões contraditórias sobre um homem contraditório, cujas ações são louvadas por uns e repudiadas por outros. Quem era Pedro Biló? De onde viera até chegar ao Acre? Uns diziam que era cearense, já outros juravam que ele era acreano da gema mesmo, cobra criada da região.

Quanto ao próprio Biló, limitava-se a sorrir de modo enigmático, alimentando ainda mais as lendas em torno de sua pessoa. E as histórias que se contavam sobre ele eram de arrepiar e impunham respeito e medo.

Uma certa vez, num tempo qualquer do passado, necessitaram de seus serviços. Um determinado seringalista precisava de uma área que pertencia aos Caxinauá, cuja aldeia ficava no centro da terra em questão. Não havia sido possível um acordo com o chefe, que não aceitou trocar as terras por outra área num outro local, embora mais vantajoso, do ponto de vista do homem branco, é claro. E Pedro Biló foi chamado para resolver o problema.

- Seu Pedro, os caboclos não trocam aquela terra por nenhuma outra! E nós sabemos que lá tem muitas seringueiras boas de corte, daquelas que dão borracha de primeira! E se eu não posso ter aquelas terras por bem, então que seja por mal mesmo!

- Se voismecê garantí as minhas costa, entonce pode contá comigo e com os meus rapaiz. A gente arresorve isso bem rapidinho.

- Nem fique ressabiado, óxente! Além de mim, ainda tem o coronel Zeca Rabêlo, meu amigo e protetor, que é a lei aqui do alto Envira! Pode fazer o trabalho, que eu garanto que ninguém vai meter o focinho por aqui, num sabe? E se meter, a gente corta na bala, pois não?!?

- Apôis, o senhor pode contá com o meu papo amarelo, meu patrão!

- Isso mesmo que eu esperava ouvir, seu Pedro! E eu fico devendo mais esse favor ao Zeca. Adespois a gente se acerta, no final do fábrico. Vai ser aquele festão, com muita mulher e cachaça! E essa indiarada dos infernos que vá conseguir terra lá com o capêta, ora pois!

E Pedro Biló ajuntou seus homens de confiança. Com a garrafa de cachaça passando de mão em mão, iniciou um pequeno discurso, tendo à mão o seu temido rifle papo amarelo. A visão de Pedro Biló, atarracado e forte, empunhando o seu temível papo amarelo, gelava o sangue de qualquer um. E olhando fixamente aqueles rudes pistoleiros, colocou-os a par da situação:

- O seu Nezinho contratou a gente prá mode arretirá aqueles caboclo lá da terra firme do Arapapá. É serviço garantido, mais eu preciso que todo mundo se agaranta na pontaria. Se a gente se arresguardá, entonce tudo vorta vivo. Mais se argum morrê, entonce que morrido fica, ocêis tão me entendendo?

- Tamo sim - responde um dos capangas - Mais num vai sê fácil tirá os caboclo de lá! O Arapapá é quase uma serra, cheio de furna, parece mais é morada de onça, aquilo lá! Sei não Biló, mais eu acho que é bão tomá cuidado! Aquela cabocrada pode armá cilada prá cima de nóis!

- Óxente Evaristo, mais que cagança é essa?!? Nóis aqui tudo é gente do gatilho, num tem medo de cabra nenhum, quanto menos de índio, que só tem arco e flecha?! E adespois, tu tá te esquecendo do meu São Cipriano? Vou fechar meu corpo com a oração da cabra preta e com a oração do sapo seco, que eu quero ver a indiarada me enxergar! Num carece de se preocupá, não! Só quero que cada um faça a sua parte, que a reza braba e as mandinga são por minha conta, tá combinado?

- Combinado e meio, Biló! Pode contá com nóis!

Tudo acertado com os seus capangas, o caso agora era acertar os preparativos para a empreitada.

[Artigo continua]

* Este conto faz parte do livro “Dramas da Amazônia”;
** Sérgio Aparecido Dias é pastor evangélico há mais de 30 anos, tendo realizado missões evangélicas entre várias tribos indígenas da Amazônia acreana e matogrossense. Morou em Feijó, Acre, entre 1976 e 1979, ocasião em que conheceu pessoalmente Pedro Biló e falou com muitas pessoas que contaram sobre os crimes hediondos cometidos por ele alguns anos antes. Foi informado dos assassinatos dos índios, especialmente dos Caxinawá. Baseado em algumas dessas histórias, escreveu "O Massacre do Lago do Arapapá". Depois de vários anos pastoreando Igrejas em Manaus e lecionando no Seminário Batista Regular do Amazonas, aceitou o convite para pastorear uma Igreja Batista em Tefé, no médio Solimões a partir da segunda semana de Janeiro de 2011, de onde também dará assistência a 4 comunidades indígenas no rio Japurá. Apoia toda as atividades que possam auxiliar os índios, preservando-lhes a vida e defendendo-os das investidas de abutres carniceiros, à semelhança de Pedro Biló.
Alguns nomes de lugares e pessoas citados no conto foram alterados para proteger pessoas e o autor do texto.

Foto: Paulo França, disponível no site Povos Indígenas no Brasil, da organização Socioambiental