CANA-DE-AÇUCAR NO SUDOESTE DA AMAZÔNIA
A inserção recente da cana-de-açúcar no sudoeste da Amazônia: novos indícios da instabilidade do território em Rondônia e Acre (*)
Mirlei Fachini Vicente Pereira (**)
Introdução
[Colheita mecanizda de cana no Acre. Foto: Gleilson Miranda/Secom/AC]
A partir dos anos setenta até os dias de hoje, o poder público e a iniciativa privada operam políticas que visam tornar a agricultura uma atividade moderna e competitiva nos estados de Rondônia e Acre, no sudoeste da Amazônia brasileira. O meio geográfico e a estrutura fundiária da região conhecem, neste período, certa preparação para a empresa capitalista de origem externa.
Tal processo se intensifica no final da década de noventa, com a viabilização de um novo corredor de exportação, a hidrovia Madeira-Amazonas (que escoa a produção de grãos realizada no norte e noroeste do Mato-Grosso), e a agricultura de soja voltada para o mercado externo torna-se viável também no estado de Rondônia. Esta cultura de exportação tem expandido em diversos municípios no sul do Estado (sobretudo nos campos originalmente cobertos pelo cerrado), promovendo novas dinâmicas de uso do território que conferem importante reconfiguração das atividades agrícolas na região.
Assim, a história da ocupação e do uso do território nos Estados de Rondônia e Acre é muito marcada por um embate entre diferentes lógicas territoriais, onde, de um lado, resistem atividades tradicionais de produção agropecuária pouco capitalizadas (que às vezes se aproximam mesmo dos cultivos de subsistência), enquanto, de outro lado, agentes e capitais externos à região promovem, amiúde, ações para a inserção de práticas agropecuárias modernas e mais capitalizadas, voltadas sobretudo para um mercado consumidor que se localiza em outras regiões do país, ou mesmo no exterior.
Mais recentemente, nestes primeiros anos do novo século, novos esforços externos têm alcançado e transformado vastos espaços desta parte da Amazônia, inserindo, com amplo apoio de políticas públicas, a atividade sucroalcooleira, ou ainda, e melhor dizendo, o cultivo de cana-de-açúcar voltado especialmente para a produção de álcool combustível ("etanol"). A participação do Brasil como país agroexportador na divisão internacional do trabalho ganha ainda mais força neste período atual com as políticas de produção dos chamados biocombustíveis, demandando maior produção agrícola para a exportação de commodities valorizadas no mercado externo. O recente crescimento da área produzida e da produtividade da cana-de-açúcar (ou de etanol) em diversas unidades da federação atesta a tendência subordinada do país na divisão internacional do trabalho, resultando numa atividade que se volta em grande parte para o mercado externo.
É por isso que novas áreas cultivadas e um novo conjunto de unidades produtivas (grandes usinas) e objetos técnicos voltados para o processamento da cana-de-açúcar aparecem de norte a sul do Brasil, sobretudo no Centro-Sul do país, mas também em áreas localizadas até mesmo no interior da Amazônia, onde nunca a produção extensiva da cana-de-açúcar para a produção de álcool houvera existido. Paralelamente à inserção deste novo cultivo, tais novas regiões produtoras também são alvo de vetores econômicos e políticos importantes, que legitimam mudanças importantes, no mais das vezes caracterizadas por uma fragmentação territorial que desmantela organizações espaciais pretéritas, dotando o espaço de uma entropia de origem externa e tornando o território instável (SANTOS, 1978).
Em que pese tal fenômeno ser ainda muito recente, arriscamos avaliar alguns dos (des)caminhos que a inserção do cultivo de cana-de-açúcar e da produção de álcool combustível conhece na Amazônia, o que faremos neste ensaio, a partir dos casos acreano e rondoniense.
Para pensar a instabilidade do território: a inserção recente da cana-de-açúcar no Sudoeste da Amazônia
Que tipo de fenômeno geográfico poderia caracterizar determinado território como instável? As profundas transformações a que o território brasileiro está exposto configuram um dinamismo resultante de uma "rápida evolução" (fruto mesmo de um crescimento econômico e de um desenvolvimento do conjunto da nação) ou trata-se mesmo da proliferação de usos territoriais corporativos e de origem exógena (SANTOS; SILVEIRA, 2001, p. 299) que, no mais das vezes, indicam a ausência de um projeto pautado em propósitos bem definidos e corretamente direcionados?
O avanço da cultura da soja, do modo como ele ocorre no Brasil, parece resultar justamente desta corrida sem freio a um crescimento concentrador que só tem preocupação com o mercado externo e com a acumulação de alguns poucos agentes que continuam a figurar como os mais privilegiados. Tais processos parecem indicar a natureza de um fenômeno espacial que, em determinados lugares, configura o que Milton Santos e María Laura Silveira denominaram "território instável" (SANTOS, 1978; SANTOS; SILVEIRA, 2001; SILVEIRA, 2002).
Tal instabilidade do território que, no dizer de Santos e Silveira (2001, p. 299), já aparece em frações do território brasileiro como uma verdadeira "crise de identidade", pode ser observada na porção sudoeste da Amazônia brasileira, nos estados de Rondônia e Acre. Para além da constituição de novas áreas da produção moderna de soja para a exportação (especialmente no estado de Rondônia), o sudoeste amazônico tem sido alvo de alguns projetos bastante recentes de inserção da produção de cana-de-açúcar e da instalação de usinas voltadas à produção de álcool combustível (etanol).
O discurso que privilegia a inserção do cultivo e da industrialização da cana-de-açúcar é sempre aquele voltado para o "desenvolvimento", pois, em tese, significa diversificação e autossuficiência na produção, o que significaria acesso a um combustível mais barato. No entanto, os projetos de instalação das usinas de álcool no sudoeste da Amazônia têm, no mais das vezes, a pretensão de uma produção também voltada para a exportação e que deixa de atender, portanto, as necessidades locais.
Insistências e crise da inserção do cultivo da cana e da produção de álcool no estado do Acre
[Autoridades do governo acreano prestigiando o início das atividades de colheita de cana na usina Alcool Verde. Foto: Gleilson Miranda/Secom/AC]
No estado do Acre, em que o projeto de desenvolvimento territorial aparece em muito pautado no discurso da sustentabilidade (ACRE, 2006), uma inserção recente do cultivo de cana-de-açúcar é estimulada pelo próprio governo do estado.
Desde 2005, o governo estadual do Acre trabalha para adquirir as instalações de uma antiga usina de álcool (a Alcobrás), implantada na década de oitenta no município de Capixaba (vale do rio Acre), empreendimento que até então nunca funcionara. Em 2007, o Banco do Brasil, que havia financiado o empreendimento e era detentor de seu patrimônio, repassa ao estado do Acre os bens remanescentes da usina. A alternativa para colocar a usina em funcionamento foi o arrendamento do patrimônio a um grupo privado do setor de açúcar e álcool, o Grupo Farias, com sede em Pernambuco (1).
Numa espécie de "parceria público-privada", o governo do Acre media as ações do grupo Farias para a formação da nova usina, que fora batizada de "Álcool Verde", com a intenção de que a participação do governo do estado pudesse orientar as atividades de modo que o empreendimento não gerasse impactos sociais e ambientais negativos. Um conjunto de normas foi formulado, como é o caso, por exemplo, da necessidade de se estabelecer parcerias entre o grupo que gerencia o empreendimento e pequenos produtores rurais do município que, potencialmente, poderiam arrendar parte de suas terras à usina. A nova usina acaba sendo fundada com a seguinte composição acionária – 60% das ações sob controle do Grupo Farias, 10% adquiridos pelo empresário Maurílio Biaggi, 25% controlados por empresários acreanos e 5% de propriedade do Estado do Acre.
O empreendimento já é considerado o de maior expressão econômica e financeira do estado na atualidade. Apenas no ano de 2007 o grupo Farias investiu cerca de 15 milhões de reais, com planos de investimento que totalizam mais de R$ 25 milhões até o ano de 2010, quando a usina deverá operar em sua capacidade máxima, com produção anual de 90 milhões de litros de álcool, o que deverá movimentar anualmente cerca de 70 milhões de reais (MAIA, 2008). Fala-se na geração de 880 empregos nos períodos de safra, quantidade que diminuirá para 635 postos durante a entressafra (ÁLCOOL VERDE/NEPUT-UFV, 2008, p. 15). Quando em funcionamento, a usina, única do gênero no Acre, deverá ocupar cerca de 10% da área de pastagens degradadas do vale do rio Acre (porção leste do Estado). Segundo dados divulgados pelo próprio grupo Farias, em outubro de 2007, já estavam diretamente empregados cerca de quatrocentos funcionários, principalmente no trabalho de plantio e colheita, ainda que esteja previsto o emprego da técnica mecanizada de colheita da cana (ROSAS, 2007).
Mesmo que existam impasses ambientais e toda uma resistência do IBAMA à expansão do cultivo de cana-de-açúcar e das usinas na Amazônia, o próprio zoneamento do território realizado pelo governo do estado (Zoneamento Ecológico-Econômico do Acre) permite e indica que a área a ser ocupada pelas plantações de cana (que se enquadra na chamada "Zona 1" do ZEE) é propícia para tal atividade, alegando que apenas as áreas de pastagens deverão converter-se em áreas para a nova cultura, ou seja, o que rege a política do zoneamento é essencialmente uma base ecológica. Para além dos aspectos ecológicos, o zoneamento ecológico-econômico realizado na Amazônia parece, às vezes, ser incapaz de levar em consideração toda a dinâmica (social, geográfica, política) do uso do território (ACSELRAD, 2000).
Aproveitando-se da situação e do poder de barganha perante o volume de capital que investe no lugar, o Grupo Farias vale-se mesmo de um discurso de valorização da preservação do meio ambiente, alegando que as suas atividades no município incluem, para além do uso exclusivo de pastagens degradadas e pouco produtivas, também a realização de programas de monitoramento e recuperação ambiental que incluem a recomposição de matas ciliares para a proteção de áreas de preservação permanente, ações que, de fato, já figuram como exigências para a liberação de licenças para o funcionamento deste tipo de empreendimento.
Manifestando a força de uma psicoesfera modernizadora (SANTOS, 1996), ainda que as preocupações territoriais de caráter social e ambiental apareçam frequentemente no discurso do Estado, grande euforia "desenvolvimentista" acompanha o projeto da Álcool Verde, e uma série de jornais locais, de imediato, começam a divulgar as transformações que ocorrem na paisagem da BR-317 com a inserção do cultivo da cana (2). O Relatório de Impacto Ambiental produzido pelo grupo Farias, que é uma das condições para a instalação da usina, conclui que
A instalação do empreendimento na região poderá criar um pólo de desenvolvimento, com incremento da agricultura e de todos os negócios que ao redor dela gravitam, na criação de empresas somente viáveis pela presença do empreendimento (ÁLCOOL VERDE/NEPUT, 2008, p. 87) (grifo nosso).
Dessas promessas, o empreendimento foi capaz de mobilizar uma série de produtores assentados em projetos de reforma agrária, que deixaram em segundo plano as suas atividades em busca de emprego na usina. A situação, de certo modo, parece escapar ao controle do poder público (3), fazendo mesmo com que apareçam, por parte do grupo que controla a usina, propostas para a compra das ações controladas pelo Estado do Acre.
Até o final do ano de 2009, o empreendimento não havia iniciado suas operações produtivas, já que, por diversas razões de ordem normativa (sobretudo por problemas de adequação às normas de caráter ambiental), os investimentos necessários para pôr a usina em funcionamento não foram realizados, ainda que o início da produção esteja previsto para 2010. Mais uma vez, o projeto corporativo de grandes grupos empresariais externos ao lugar aparece como projeto hegemônico, e desta nova "instabilidade do território", que se torna agora mais frágil e mais dependente de políticas e capitais externos ao lugar, desenha-se um novo futuro (ainda incerto) (4) para as famílias de assentados que praticam a agricultura no vale do rio Acre.
Arranjos normativos e "êxito" da produção de álcool em Rondônia
[Governador de Rondônia, Ivo Cassol, visitando plantação de cana-de-açúcar em Cerejeiras. Foto: Decom/RO]
Se, no Acre, o sistema de normas ambientais é exigente de uma série de adaptações ou restrições ao funcionamento das usinas produtoras de álcool, em Rondônia, ao contrário, um arranjo de normas territoriais garante o "êxito" da produção, especialmente pelas oportunidades de isenção fiscal oferecidas pelo Programa de Incentivos Tributários do estado. Assim, o território se torna viável (SILVEIRA, 2002, 2003) e Rondônia aparece como uma unidade da federação "atrativa", que passa a ser alvo de interesse de grupos externos que atuam no setor sucroalcooleiro.
Tal mecanismo normativo que garante os incentivos territoriais foi estabelecido em 2005, através da Lei n. 1558, intitulada Lei de Incentivos Tributários do Governo de Rondônia, que visa incentivar empresários a investir no território rondoniense. A lei prevê a isenção de 60 a 85% do ICMS devido pelas empresas, além de isentar de outros tributos recolhidos pelo Estado, incentivos que podem ser desfrutados por um período de até dez anos. Repetindo práticas de "desenvolvimento" que ocorrem em boa parte do território brasileiro, soma-se a esta política de isenção fiscal também a prática muito generalizada da doação, pelas prefeituras municipais, de terrenos, infraestrutura e também a isenção do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). É desta entrega facilitada dos recursos territoriais que se produz uma verdadeira "acumulação prévia" (PEREIRA, 2006), que viabiliza a instalação e garante, a priori, rentabilidade aos investimentos corporativos.
Atraída pelas vantagens fiscais oferecidas pelo Estado, a primeira usina instalada em Rondônia localiza-se no município de Santa Luzia d'Oeste (Usina Boa Esperança) e entrou em funcionamento no ano de 2008. Com investimentos da ordem de R$ 70 milhões (R$ 29 milhões financiados pelo Banco da Amazônia), o empreendimento tem capacidade instalada para a produção de 300 mil litros de álcool combustível por dia (não há previsão para início da produção de açúcar), produto que está sendo comercializado por doze diferentes distribuidoras no estado (5).
Tal como no caso acreano, estes novos objetos técnicos de produção no campo (usinas) atuam, necessariamente, como estimuladores de um novo cultivo, já que não há tradição deste tipo de atividade no estado de Rondônia. Disto, temos novamente uma instabilidade territorial que decorre potencialmente das transformações estruturais do espaço herdado, com reconfigurações produtivas, rearranjos da estrutura fundiária, entre outras ações que, em muitos casos, terminam por tornar ainda mais corporativo o uso do território. O resultado direto deste novo empreendimento produtivo em Rondônia é que o município de Santa Luzia, que há poucos anos não apresentava nenhuma área cultivada com cana-de-açúcar, era, já em 2007, responsável por mais de 85% da produção do estado (IBGE, 2009).
Até mesmo onde o cultivo de soja já se encontra bem estabelecido no estado de Rondônia, a cana-de-açúcar e a atração de usinas aparecem como nova estratégia de acumulação e crescimento econômico, tal como ocorre em Cerejeiras, o segundo município maior produtor de soja no estado.
O grupo mato-grossense USIMAT anuncia, em 2007, a instalação de uma usina de álcool em Cerejeiras e inicia o plantio de 300 hectares, com estimativa de alcançar 20 mil hectares em 2009, com início da produção de álcool programada para 2010 (produção anual estimada em 80 milhões de litros). Há expectativas de investimentos da ordem de R$120 milhões e proliferam-se os discursos em que sempre há lugar para a esperança de que novos empregos sejam gerados (6).
A função das normas e dos incentivos mais uma vez aparecem como o principal viabilizador do projeto – a localização do município de Cerejeiras abaixo do "Paralelo 13" (áreas que, em tese, menor impactam as zonas de florestas equatoriais) oportuniza melhor inserção da produção nos mercados da Europa e dos EUA, onde cada vez mais aumentam as restrições de cunho ambiental à importação de gêneros industrializados produzidos em áreas tropicais. Para além disto, a prefeitura de Cerejeiras doou terreno e realizou serviços de terraplanagem no local de instalação da usina, além do papel do Estado, que participou de forma decisiva na atração do empreendimento, concedendo incentivos fiscais e tributários. Há intenção de que a produção possa ser exportada a partir da hidrovia do Madeira, o que tornará o produto ainda mais competitivo no mercado externo (7). Assim, os problemas solucionados são antes de tudo os que aparecem como necessários à atração de empresas e capitais externos, que, no mais das vezes, tem seus interesses endereçados a demandas longínquas.
Considerações finais – Desenvolvimento? Por quais vias?
Para além de deixar em segundo plano importantes necessidades locais, como é o caso, por exemplo, da produção de gêneros alimentícios que continuam sendo importados, a expansão do cultivo da cana-de-açúcar no sudoeste da Amazônia é realizada de forma corporativa, e atende mais aos interesses de agentes privados do que aos interesses do lugar e da nação.
Neste início de século, quando o álcool combustível (agora "etanol"), produto de que o Brasil detém tecnologia e liderança de produção, torna-se commodity valorizada (e globalizada) no mercado internacional, o país deixa de regular os preços da própria produção, perde o poder de regulação sobre o que produz. O aumento da produção, que agora ocorre em áreas sem nenhuma tradição e sem infraestrutura, não significa poder de barganha no mercado internacional, nem mesmo garantia de preço acessível e estável para o mercado interno.
Mais uma vez, a ideia de modernização e de desenvolvimento regional se impõe a espaços tantas vezes tidos como "atrasados", como comumente são referidas as áreas de produção agrícola tradicional e voltadas para o consumo local, nos estados de Rondônia e Acre. Deste modo, impera, nestes projetos de inserção da cana-de-açúcar e da produção do álcool combustível na Amazônia, uma psicoesfera que prepara espíritos e legitima ações e projetos corporativos (SANTOS, 1996) que, no mais das vezes, não possuem o menor compromisso com as características pretéritas do lugar (o "espaço herdado"), valorizando práticas estranhas à cultura local e agentes externos que disseminam novas necessidades e novos comportamentos sociais (8).
Onde imperam um tipo de "desenvolvimento" e atividades que pouco atendem aos interesses locais, prevalece uma dinâmica imprevisível do território, cujo controle escapa às instâncias locais de organização. Daí podermos pensar na emergência de um território instável, comando cujo uso é guiado por interesses longínquos.
Este território instável também resulta de um uso territorial cuja razão muito atende aos interesses corporativos, fenômeno que pode ser identificado nestes projetos recentes que incentivam e promovem a inserção do plantio da cana-de-açúcar e a instalação de usinas de álcool no sudoeste amazônico, empreendimentos que amplamente desfrutam de incentivos fiscais e territoriais estrategicamente elaborados para a atração do investimento privado, como se tal medida fosse, por si só, capaz de garantir o desenvolvimento da região e do país.
Notas
(1) Além das novas instalações no Acre, o Grupo Farias atua no ramo de açúcar e álcool nos estados de Goiás, Mato Grosso, Pernambuco, Rio Grande do Norte e São Paulo.
(2) Segundo informações divulgadas pela imprensa local (Jornal Página 20, Rio Branco), os ganhos anuais com a atividade pecuária chegam a R$ 200,00 por hectare, enquanto o arrendamento da mesma área para o plantio de cana rende R$ 300,00, sem despesas com insumos e funcionários. "A palavra cana soa doce aos ouvidos dos produtores, tanto grandes quanto pequenos. A partir da divisa dos municípios de Senador Guiomard e Capixaba é difícil ver boi. Os pastos estão sendo substituídos pela nova cultura numa velocidade impressionante. Arrendar terras para o Grupo Farias, acionista majoritário da Usina Álcool Verde, tornou-se melhor negócio do que a pecuária" (ROSAS, 2007).
(3) É o caso, por exemplo, de vários dos assentados do Projeto Zaqueu Machado e Alcobrás I e II, os mais próximos ao empreendimento, que preferem vender sua força de trabalho em troca de um salário mínimo e da carteira assinada, como fora muito divulgado no Jornal Página 20. "Mesmo com algumas regras para limitar a entrada de assentados, são será fácil. O próprio Mauro Ribeiro (secretário estadual de Agricultura e Pecuária) admite a existência de um diagnóstico em que 60% dos colonos têm vontade de plantar cana. Essa é uma tarefa que facilita a vida da Álcool Verde, que necessitará de 38 mil hectares para produzir o suficiente. Por enquanto, a plantação consome 1,8 mil hectares, com previsão de chegar a 2,4 mil até o fim do ano. A meta é chegar a sete mil hectares em 2008" (ROSAS, 2007).
(4) Durante o ano de 2009, o empreendimento encontrava-se em processo de adaptação do projeto da usina às exigências ambientais do IBAMA e também de constantes pedidos de revisão do EIA-RIMA pela Promotoria Pública e pela Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Acre.
(5) "A usina [em Santa Luzia-RO] ocupa área de 22 hectares, totalizando 4,9 mil metros quadrados de área construída. Seus reservatórios têm capacidade para armazenar 10 milhões de litros de álcool combustível. Todo o processo produtivo é controlado por sete modernas centrais de processamento de dados. Técnicos da usina monitoram tudo na tela do computador". "Ao todo, são 392 funcionários, sendo 147 da usina de álcool e 245 da lavoura" (CORECON, 2009).
(6) Vide, por exemplo, reportagem de Afonso Locks, publicada no jornal Folha de Rondônia (Ji-Paraná-RO), em 28/10/2007.
(7) Dados obtidos na reportagem "Cerejeiras: progresso com usina de álcool", publicada na revista Alerta Notícias, Vilhena, Ano II, n. 30, julho de 2007.
(8) A psicoesfera, reino das crenças e dos valores, acompanha e mesmo se antecipa à renovação da tecnoesfera (a esfera dos objetos técnicos no território) (SANTOS, 1996, p. 204). Tal como reconhece Ana Clara T. Ribeiro (1991, p. 48), "Essa psicoesfera produz a busca social da técnica e a adequação comportamental à interação moderna entre tecnologia e valores sociais. Alguns setores produtivos parecem alimentar, com especial ênfase, os processos culturais de consolidação dessa psicoesfera, conformando verdadeiros pólos emissores de valores".
Referências
ACRE (Estado). Zoneamento Ecológico Econômico do Acre. Fase II. Documento Síntese. Rio Branco: SEMA, 2006.
ACSELRAD, Henri. O zoneamento ecológico-econômico e a multiplicidade de ordens socioambientais na Amazônia. Novos Cadernos Naea, Belém, v. 3, n. 2, p. 5-15, 2000.
ÁLCOOL VERDE/NEPUT-UFV (Núcleo de Estudo e Planejamento do Uso da Terra – Universidade Federal de Viçosa). Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (RIMA) Álcool Verde S.A., Capixaba, Acre. Viçosa: NEPUT, 2008.
CORECON (Conselho regional de Economia de Rondônia). Rondônia ganha sua primeira usina de álcool. Seção Notícias, 22 de novembro de 2008. Disponível em:. Acesso em: 25 fev. 2009.
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Sistema IBGE de Recuperação Automática - SIDRA. Produção Agrícola Municipal-PAM. Disponível em:. Acesso em: fev. 2009.
LOCKS, Afonso. Usineiros iniciam plantio de cana. Folha de Rondônia, Ji-paraná, 28 de outubro de 2007. Caderno Agropecuária. Disponível em. Acesso em: 28 out. 2007.
MAIA, Tião. Quando o progresso bate à porta. Página 20, Rio Branco, 02 de fevereiro de 2008. Caderno Política. Disponível em:. Acesso em: 02 fev. 2008.
PEREIRA, Mirlei Fachini Vicente. O território sob o efeito modernizador: a face perversa do desenvolvimento. Interações - Revista Internacional de Desenvolvimento Local, Campo Grande, v. 8, n. 13, p. 63-9, 2006.
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ROSAS, Leonildo. Cana é palavra doce para os produtores. Página 20, Rio Branco, 07 de outubro de 2007. Caderno Especial. Disponível em:. Acesso em: 08 out. 2007.
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(*) Artigo originalmente publicado na revista Interações (Campo Grande) vol. 11 no. 2 Campo Grande Jul/Dez 2010.
(**) Professor Adjunto, Instituto de Geografia, Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: mirlei@ig.ufu.br
Mirlei Fachini Vicente Pereira (**)
Introdução
[Colheita mecanizda de cana no Acre. Foto: Gleilson Miranda/Secom/AC]
A partir dos anos setenta até os dias de hoje, o poder público e a iniciativa privada operam políticas que visam tornar a agricultura uma atividade moderna e competitiva nos estados de Rondônia e Acre, no sudoeste da Amazônia brasileira. O meio geográfico e a estrutura fundiária da região conhecem, neste período, certa preparação para a empresa capitalista de origem externa.
Tal processo se intensifica no final da década de noventa, com a viabilização de um novo corredor de exportação, a hidrovia Madeira-Amazonas (que escoa a produção de grãos realizada no norte e noroeste do Mato-Grosso), e a agricultura de soja voltada para o mercado externo torna-se viável também no estado de Rondônia. Esta cultura de exportação tem expandido em diversos municípios no sul do Estado (sobretudo nos campos originalmente cobertos pelo cerrado), promovendo novas dinâmicas de uso do território que conferem importante reconfiguração das atividades agrícolas na região.
Assim, a história da ocupação e do uso do território nos Estados de Rondônia e Acre é muito marcada por um embate entre diferentes lógicas territoriais, onde, de um lado, resistem atividades tradicionais de produção agropecuária pouco capitalizadas (que às vezes se aproximam mesmo dos cultivos de subsistência), enquanto, de outro lado, agentes e capitais externos à região promovem, amiúde, ações para a inserção de práticas agropecuárias modernas e mais capitalizadas, voltadas sobretudo para um mercado consumidor que se localiza em outras regiões do país, ou mesmo no exterior.
Mais recentemente, nestes primeiros anos do novo século, novos esforços externos têm alcançado e transformado vastos espaços desta parte da Amazônia, inserindo, com amplo apoio de políticas públicas, a atividade sucroalcooleira, ou ainda, e melhor dizendo, o cultivo de cana-de-açúcar voltado especialmente para a produção de álcool combustível ("etanol"). A participação do Brasil como país agroexportador na divisão internacional do trabalho ganha ainda mais força neste período atual com as políticas de produção dos chamados biocombustíveis, demandando maior produção agrícola para a exportação de commodities valorizadas no mercado externo. O recente crescimento da área produzida e da produtividade da cana-de-açúcar (ou de etanol) em diversas unidades da federação atesta a tendência subordinada do país na divisão internacional do trabalho, resultando numa atividade que se volta em grande parte para o mercado externo.
É por isso que novas áreas cultivadas e um novo conjunto de unidades produtivas (grandes usinas) e objetos técnicos voltados para o processamento da cana-de-açúcar aparecem de norte a sul do Brasil, sobretudo no Centro-Sul do país, mas também em áreas localizadas até mesmo no interior da Amazônia, onde nunca a produção extensiva da cana-de-açúcar para a produção de álcool houvera existido. Paralelamente à inserção deste novo cultivo, tais novas regiões produtoras também são alvo de vetores econômicos e políticos importantes, que legitimam mudanças importantes, no mais das vezes caracterizadas por uma fragmentação territorial que desmantela organizações espaciais pretéritas, dotando o espaço de uma entropia de origem externa e tornando o território instável (SANTOS, 1978).
Em que pese tal fenômeno ser ainda muito recente, arriscamos avaliar alguns dos (des)caminhos que a inserção do cultivo de cana-de-açúcar e da produção de álcool combustível conhece na Amazônia, o que faremos neste ensaio, a partir dos casos acreano e rondoniense.
Para pensar a instabilidade do território: a inserção recente da cana-de-açúcar no Sudoeste da Amazônia
Que tipo de fenômeno geográfico poderia caracterizar determinado território como instável? As profundas transformações a que o território brasileiro está exposto configuram um dinamismo resultante de uma "rápida evolução" (fruto mesmo de um crescimento econômico e de um desenvolvimento do conjunto da nação) ou trata-se mesmo da proliferação de usos territoriais corporativos e de origem exógena (SANTOS; SILVEIRA, 2001, p. 299) que, no mais das vezes, indicam a ausência de um projeto pautado em propósitos bem definidos e corretamente direcionados?
O avanço da cultura da soja, do modo como ele ocorre no Brasil, parece resultar justamente desta corrida sem freio a um crescimento concentrador que só tem preocupação com o mercado externo e com a acumulação de alguns poucos agentes que continuam a figurar como os mais privilegiados. Tais processos parecem indicar a natureza de um fenômeno espacial que, em determinados lugares, configura o que Milton Santos e María Laura Silveira denominaram "território instável" (SANTOS, 1978; SANTOS; SILVEIRA, 2001; SILVEIRA, 2002).
Tal instabilidade do território que, no dizer de Santos e Silveira (2001, p. 299), já aparece em frações do território brasileiro como uma verdadeira "crise de identidade", pode ser observada na porção sudoeste da Amazônia brasileira, nos estados de Rondônia e Acre. Para além da constituição de novas áreas da produção moderna de soja para a exportação (especialmente no estado de Rondônia), o sudoeste amazônico tem sido alvo de alguns projetos bastante recentes de inserção da produção de cana-de-açúcar e da instalação de usinas voltadas à produção de álcool combustível (etanol).
O discurso que privilegia a inserção do cultivo e da industrialização da cana-de-açúcar é sempre aquele voltado para o "desenvolvimento", pois, em tese, significa diversificação e autossuficiência na produção, o que significaria acesso a um combustível mais barato. No entanto, os projetos de instalação das usinas de álcool no sudoeste da Amazônia têm, no mais das vezes, a pretensão de uma produção também voltada para a exportação e que deixa de atender, portanto, as necessidades locais.
Insistências e crise da inserção do cultivo da cana e da produção de álcool no estado do Acre
[Autoridades do governo acreano prestigiando o início das atividades de colheita de cana na usina Alcool Verde. Foto: Gleilson Miranda/Secom/AC]
No estado do Acre, em que o projeto de desenvolvimento territorial aparece em muito pautado no discurso da sustentabilidade (ACRE, 2006), uma inserção recente do cultivo de cana-de-açúcar é estimulada pelo próprio governo do estado.
Desde 2005, o governo estadual do Acre trabalha para adquirir as instalações de uma antiga usina de álcool (a Alcobrás), implantada na década de oitenta no município de Capixaba (vale do rio Acre), empreendimento que até então nunca funcionara. Em 2007, o Banco do Brasil, que havia financiado o empreendimento e era detentor de seu patrimônio, repassa ao estado do Acre os bens remanescentes da usina. A alternativa para colocar a usina em funcionamento foi o arrendamento do patrimônio a um grupo privado do setor de açúcar e álcool, o Grupo Farias, com sede em Pernambuco (1).
Numa espécie de "parceria público-privada", o governo do Acre media as ações do grupo Farias para a formação da nova usina, que fora batizada de "Álcool Verde", com a intenção de que a participação do governo do estado pudesse orientar as atividades de modo que o empreendimento não gerasse impactos sociais e ambientais negativos. Um conjunto de normas foi formulado, como é o caso, por exemplo, da necessidade de se estabelecer parcerias entre o grupo que gerencia o empreendimento e pequenos produtores rurais do município que, potencialmente, poderiam arrendar parte de suas terras à usina. A nova usina acaba sendo fundada com a seguinte composição acionária – 60% das ações sob controle do Grupo Farias, 10% adquiridos pelo empresário Maurílio Biaggi, 25% controlados por empresários acreanos e 5% de propriedade do Estado do Acre.
O empreendimento já é considerado o de maior expressão econômica e financeira do estado na atualidade. Apenas no ano de 2007 o grupo Farias investiu cerca de 15 milhões de reais, com planos de investimento que totalizam mais de R$ 25 milhões até o ano de 2010, quando a usina deverá operar em sua capacidade máxima, com produção anual de 90 milhões de litros de álcool, o que deverá movimentar anualmente cerca de 70 milhões de reais (MAIA, 2008). Fala-se na geração de 880 empregos nos períodos de safra, quantidade que diminuirá para 635 postos durante a entressafra (ÁLCOOL VERDE/NEPUT-UFV, 2008, p. 15). Quando em funcionamento, a usina, única do gênero no Acre, deverá ocupar cerca de 10% da área de pastagens degradadas do vale do rio Acre (porção leste do Estado). Segundo dados divulgados pelo próprio grupo Farias, em outubro de 2007, já estavam diretamente empregados cerca de quatrocentos funcionários, principalmente no trabalho de plantio e colheita, ainda que esteja previsto o emprego da técnica mecanizada de colheita da cana (ROSAS, 2007).
Mesmo que existam impasses ambientais e toda uma resistência do IBAMA à expansão do cultivo de cana-de-açúcar e das usinas na Amazônia, o próprio zoneamento do território realizado pelo governo do estado (Zoneamento Ecológico-Econômico do Acre) permite e indica que a área a ser ocupada pelas plantações de cana (que se enquadra na chamada "Zona 1" do ZEE) é propícia para tal atividade, alegando que apenas as áreas de pastagens deverão converter-se em áreas para a nova cultura, ou seja, o que rege a política do zoneamento é essencialmente uma base ecológica. Para além dos aspectos ecológicos, o zoneamento ecológico-econômico realizado na Amazônia parece, às vezes, ser incapaz de levar em consideração toda a dinâmica (social, geográfica, política) do uso do território (ACSELRAD, 2000).
Aproveitando-se da situação e do poder de barganha perante o volume de capital que investe no lugar, o Grupo Farias vale-se mesmo de um discurso de valorização da preservação do meio ambiente, alegando que as suas atividades no município incluem, para além do uso exclusivo de pastagens degradadas e pouco produtivas, também a realização de programas de monitoramento e recuperação ambiental que incluem a recomposição de matas ciliares para a proteção de áreas de preservação permanente, ações que, de fato, já figuram como exigências para a liberação de licenças para o funcionamento deste tipo de empreendimento.
Manifestando a força de uma psicoesfera modernizadora (SANTOS, 1996), ainda que as preocupações territoriais de caráter social e ambiental apareçam frequentemente no discurso do Estado, grande euforia "desenvolvimentista" acompanha o projeto da Álcool Verde, e uma série de jornais locais, de imediato, começam a divulgar as transformações que ocorrem na paisagem da BR-317 com a inserção do cultivo da cana (2). O Relatório de Impacto Ambiental produzido pelo grupo Farias, que é uma das condições para a instalação da usina, conclui que
A instalação do empreendimento na região poderá criar um pólo de desenvolvimento, com incremento da agricultura e de todos os negócios que ao redor dela gravitam, na criação de empresas somente viáveis pela presença do empreendimento (ÁLCOOL VERDE/NEPUT, 2008, p. 87) (grifo nosso).
Dessas promessas, o empreendimento foi capaz de mobilizar uma série de produtores assentados em projetos de reforma agrária, que deixaram em segundo plano as suas atividades em busca de emprego na usina. A situação, de certo modo, parece escapar ao controle do poder público (3), fazendo mesmo com que apareçam, por parte do grupo que controla a usina, propostas para a compra das ações controladas pelo Estado do Acre.
Até o final do ano de 2009, o empreendimento não havia iniciado suas operações produtivas, já que, por diversas razões de ordem normativa (sobretudo por problemas de adequação às normas de caráter ambiental), os investimentos necessários para pôr a usina em funcionamento não foram realizados, ainda que o início da produção esteja previsto para 2010. Mais uma vez, o projeto corporativo de grandes grupos empresariais externos ao lugar aparece como projeto hegemônico, e desta nova "instabilidade do território", que se torna agora mais frágil e mais dependente de políticas e capitais externos ao lugar, desenha-se um novo futuro (ainda incerto) (4) para as famílias de assentados que praticam a agricultura no vale do rio Acre.
Arranjos normativos e "êxito" da produção de álcool em Rondônia
[Governador de Rondônia, Ivo Cassol, visitando plantação de cana-de-açúcar em Cerejeiras. Foto: Decom/RO]
Se, no Acre, o sistema de normas ambientais é exigente de uma série de adaptações ou restrições ao funcionamento das usinas produtoras de álcool, em Rondônia, ao contrário, um arranjo de normas territoriais garante o "êxito" da produção, especialmente pelas oportunidades de isenção fiscal oferecidas pelo Programa de Incentivos Tributários do estado. Assim, o território se torna viável (SILVEIRA, 2002, 2003) e Rondônia aparece como uma unidade da federação "atrativa", que passa a ser alvo de interesse de grupos externos que atuam no setor sucroalcooleiro.
Tal mecanismo normativo que garante os incentivos territoriais foi estabelecido em 2005, através da Lei n. 1558, intitulada Lei de Incentivos Tributários do Governo de Rondônia, que visa incentivar empresários a investir no território rondoniense. A lei prevê a isenção de 60 a 85% do ICMS devido pelas empresas, além de isentar de outros tributos recolhidos pelo Estado, incentivos que podem ser desfrutados por um período de até dez anos. Repetindo práticas de "desenvolvimento" que ocorrem em boa parte do território brasileiro, soma-se a esta política de isenção fiscal também a prática muito generalizada da doação, pelas prefeituras municipais, de terrenos, infraestrutura e também a isenção do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). É desta entrega facilitada dos recursos territoriais que se produz uma verdadeira "acumulação prévia" (PEREIRA, 2006), que viabiliza a instalação e garante, a priori, rentabilidade aos investimentos corporativos.
Atraída pelas vantagens fiscais oferecidas pelo Estado, a primeira usina instalada em Rondônia localiza-se no município de Santa Luzia d'Oeste (Usina Boa Esperança) e entrou em funcionamento no ano de 2008. Com investimentos da ordem de R$ 70 milhões (R$ 29 milhões financiados pelo Banco da Amazônia), o empreendimento tem capacidade instalada para a produção de 300 mil litros de álcool combustível por dia (não há previsão para início da produção de açúcar), produto que está sendo comercializado por doze diferentes distribuidoras no estado (5).
Tal como no caso acreano, estes novos objetos técnicos de produção no campo (usinas) atuam, necessariamente, como estimuladores de um novo cultivo, já que não há tradição deste tipo de atividade no estado de Rondônia. Disto, temos novamente uma instabilidade territorial que decorre potencialmente das transformações estruturais do espaço herdado, com reconfigurações produtivas, rearranjos da estrutura fundiária, entre outras ações que, em muitos casos, terminam por tornar ainda mais corporativo o uso do território. O resultado direto deste novo empreendimento produtivo em Rondônia é que o município de Santa Luzia, que há poucos anos não apresentava nenhuma área cultivada com cana-de-açúcar, era, já em 2007, responsável por mais de 85% da produção do estado (IBGE, 2009).
Até mesmo onde o cultivo de soja já se encontra bem estabelecido no estado de Rondônia, a cana-de-açúcar e a atração de usinas aparecem como nova estratégia de acumulação e crescimento econômico, tal como ocorre em Cerejeiras, o segundo município maior produtor de soja no estado.
O grupo mato-grossense USIMAT anuncia, em 2007, a instalação de uma usina de álcool em Cerejeiras e inicia o plantio de 300 hectares, com estimativa de alcançar 20 mil hectares em 2009, com início da produção de álcool programada para 2010 (produção anual estimada em 80 milhões de litros). Há expectativas de investimentos da ordem de R$120 milhões e proliferam-se os discursos em que sempre há lugar para a esperança de que novos empregos sejam gerados (6).
A função das normas e dos incentivos mais uma vez aparecem como o principal viabilizador do projeto – a localização do município de Cerejeiras abaixo do "Paralelo 13" (áreas que, em tese, menor impactam as zonas de florestas equatoriais) oportuniza melhor inserção da produção nos mercados da Europa e dos EUA, onde cada vez mais aumentam as restrições de cunho ambiental à importação de gêneros industrializados produzidos em áreas tropicais. Para além disto, a prefeitura de Cerejeiras doou terreno e realizou serviços de terraplanagem no local de instalação da usina, além do papel do Estado, que participou de forma decisiva na atração do empreendimento, concedendo incentivos fiscais e tributários. Há intenção de que a produção possa ser exportada a partir da hidrovia do Madeira, o que tornará o produto ainda mais competitivo no mercado externo (7). Assim, os problemas solucionados são antes de tudo os que aparecem como necessários à atração de empresas e capitais externos, que, no mais das vezes, tem seus interesses endereçados a demandas longínquas.
Considerações finais – Desenvolvimento? Por quais vias?
Para além de deixar em segundo plano importantes necessidades locais, como é o caso, por exemplo, da produção de gêneros alimentícios que continuam sendo importados, a expansão do cultivo da cana-de-açúcar no sudoeste da Amazônia é realizada de forma corporativa, e atende mais aos interesses de agentes privados do que aos interesses do lugar e da nação.
Neste início de século, quando o álcool combustível (agora "etanol"), produto de que o Brasil detém tecnologia e liderança de produção, torna-se commodity valorizada (e globalizada) no mercado internacional, o país deixa de regular os preços da própria produção, perde o poder de regulação sobre o que produz. O aumento da produção, que agora ocorre em áreas sem nenhuma tradição e sem infraestrutura, não significa poder de barganha no mercado internacional, nem mesmo garantia de preço acessível e estável para o mercado interno.
Mais uma vez, a ideia de modernização e de desenvolvimento regional se impõe a espaços tantas vezes tidos como "atrasados", como comumente são referidas as áreas de produção agrícola tradicional e voltadas para o consumo local, nos estados de Rondônia e Acre. Deste modo, impera, nestes projetos de inserção da cana-de-açúcar e da produção do álcool combustível na Amazônia, uma psicoesfera que prepara espíritos e legitima ações e projetos corporativos (SANTOS, 1996) que, no mais das vezes, não possuem o menor compromisso com as características pretéritas do lugar (o "espaço herdado"), valorizando práticas estranhas à cultura local e agentes externos que disseminam novas necessidades e novos comportamentos sociais (8).
Onde imperam um tipo de "desenvolvimento" e atividades que pouco atendem aos interesses locais, prevalece uma dinâmica imprevisível do território, cujo controle escapa às instâncias locais de organização. Daí podermos pensar na emergência de um território instável, comando cujo uso é guiado por interesses longínquos.
Este território instável também resulta de um uso territorial cuja razão muito atende aos interesses corporativos, fenômeno que pode ser identificado nestes projetos recentes que incentivam e promovem a inserção do plantio da cana-de-açúcar e a instalação de usinas de álcool no sudoeste amazônico, empreendimentos que amplamente desfrutam de incentivos fiscais e territoriais estrategicamente elaborados para a atração do investimento privado, como se tal medida fosse, por si só, capaz de garantir o desenvolvimento da região e do país.
Notas
(1) Além das novas instalações no Acre, o Grupo Farias atua no ramo de açúcar e álcool nos estados de Goiás, Mato Grosso, Pernambuco, Rio Grande do Norte e São Paulo.
(2) Segundo informações divulgadas pela imprensa local (Jornal Página 20, Rio Branco), os ganhos anuais com a atividade pecuária chegam a R$ 200,00 por hectare, enquanto o arrendamento da mesma área para o plantio de cana rende R$ 300,00, sem despesas com insumos e funcionários. "A palavra cana soa doce aos ouvidos dos produtores, tanto grandes quanto pequenos. A partir da divisa dos municípios de Senador Guiomard e Capixaba é difícil ver boi. Os pastos estão sendo substituídos pela nova cultura numa velocidade impressionante. Arrendar terras para o Grupo Farias, acionista majoritário da Usina Álcool Verde, tornou-se melhor negócio do que a pecuária" (ROSAS, 2007).
(3) É o caso, por exemplo, de vários dos assentados do Projeto Zaqueu Machado e Alcobrás I e II, os mais próximos ao empreendimento, que preferem vender sua força de trabalho em troca de um salário mínimo e da carteira assinada, como fora muito divulgado no Jornal Página 20. "Mesmo com algumas regras para limitar a entrada de assentados, são será fácil. O próprio Mauro Ribeiro (secretário estadual de Agricultura e Pecuária) admite a existência de um diagnóstico em que 60% dos colonos têm vontade de plantar cana. Essa é uma tarefa que facilita a vida da Álcool Verde, que necessitará de 38 mil hectares para produzir o suficiente. Por enquanto, a plantação consome 1,8 mil hectares, com previsão de chegar a 2,4 mil até o fim do ano. A meta é chegar a sete mil hectares em 2008" (ROSAS, 2007).
(4) Durante o ano de 2009, o empreendimento encontrava-se em processo de adaptação do projeto da usina às exigências ambientais do IBAMA e também de constantes pedidos de revisão do EIA-RIMA pela Promotoria Pública e pela Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Acre.
(5) "A usina [em Santa Luzia-RO] ocupa área de 22 hectares, totalizando 4,9 mil metros quadrados de área construída. Seus reservatórios têm capacidade para armazenar 10 milhões de litros de álcool combustível. Todo o processo produtivo é controlado por sete modernas centrais de processamento de dados. Técnicos da usina monitoram tudo na tela do computador". "Ao todo, são 392 funcionários, sendo 147 da usina de álcool e 245 da lavoura" (CORECON, 2009).
(6) Vide, por exemplo, reportagem de Afonso Locks, publicada no jornal Folha de Rondônia (Ji-Paraná-RO), em 28/10/2007.
(7) Dados obtidos na reportagem "Cerejeiras: progresso com usina de álcool", publicada na revista Alerta Notícias, Vilhena, Ano II, n. 30, julho de 2007.
(8) A psicoesfera, reino das crenças e dos valores, acompanha e mesmo se antecipa à renovação da tecnoesfera (a esfera dos objetos técnicos no território) (SANTOS, 1996, p. 204). Tal como reconhece Ana Clara T. Ribeiro (1991, p. 48), "Essa psicoesfera produz a busca social da técnica e a adequação comportamental à interação moderna entre tecnologia e valores sociais. Alguns setores produtivos parecem alimentar, com especial ênfase, os processos culturais de consolidação dessa psicoesfera, conformando verdadeiros pólos emissores de valores".
Referências
ACRE (Estado). Zoneamento Ecológico Econômico do Acre. Fase II. Documento Síntese. Rio Branco: SEMA, 2006.
ACSELRAD, Henri. O zoneamento ecológico-econômico e a multiplicidade de ordens socioambientais na Amazônia. Novos Cadernos Naea, Belém, v. 3, n. 2, p. 5-15, 2000.
ÁLCOOL VERDE/NEPUT-UFV (Núcleo de Estudo e Planejamento do Uso da Terra – Universidade Federal de Viçosa). Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (RIMA) Álcool Verde S.A., Capixaba, Acre. Viçosa: NEPUT, 2008.
CORECON (Conselho regional de Economia de Rondônia). Rondônia ganha sua primeira usina de álcool. Seção Notícias, 22 de novembro de 2008. Disponível em:
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Sistema IBGE de Recuperação Automática - SIDRA. Produção Agrícola Municipal-PAM. Disponível em:
LOCKS, Afonso. Usineiros iniciam plantio de cana. Folha de Rondônia, Ji-paraná, 28 de outubro de 2007. Caderno Agropecuária. Disponível em
MAIA, Tião. Quando o progresso bate à porta. Página 20, Rio Branco, 02 de fevereiro de 2008. Caderno Política. Disponível em:
PEREIRA, Mirlei Fachini Vicente. O território sob o efeito modernizador: a face perversa do desenvolvimento. Interações - Revista Internacional de Desenvolvimento Local, Campo Grande, v. 8, n. 13, p. 63-9, 2006.
RIBEIRO, Ana Clara Torres. Matéria e espírito: o poder (des)organizador dos meios de comunicação. In: PIQUET, Rosélia; RIBEIRO, Ana Clara Torres (Orgs.). Brasil, território da desigualdade: descaminhos da modernização, 1991. p. 44-55.
ROSAS, Leonildo. Cana é palavra doce para os produtores. Página 20, Rio Branco, 07 de outubro de 2007. Caderno Especial. Disponível em:
SANTOS, Milton. O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo. São Paulo: Hucitec, 1978.
______. A natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.
SANTOS, Milton; SILVEIRA, María Laura. O Brasil. Território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2008.
SILVEIRA, María Laura. Uma globalização desnecessária, um território instável. Ciência Geográfica, Bauru, v. 1, n. 21, p. 43-6, 2002.
______. A região e a invenção da viabilidade do território. In: SOUZA, Maria Adelia Ap. de (Org.). Território brasileiro: usos e abusos. Campinas: Edições Territorial, 2003. p. 408-16. cap.24.
(*) Artigo originalmente publicado na revista Interações (Campo Grande) vol. 11 no. 2 Campo Grande Jul/Dez 2010.
(**) Professor Adjunto, Instituto de Geografia, Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: mirlei@ig.ufu.br
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