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02 fevereiro 2011

O LEVANTE BOLIVIANO CONTRA EVO MORALES

No final de dezembro se produziu um fato sem precedentes na história recente da América Latina: o primeiro levantamento popular contra um governo de esquerda, provocado pelo aumento do preço dos combustíveis decidido pelo governo de Evo Morales

Raúl Zibechi
La Jornada/Cepat.

No final de dezembro se produziu um fato sem precedentes na história recente da América Latina: o primeiro levantamento popular contra um governo de esquerda, provocado pelo aumento do preço dos combustíveis decidido pelo governo de Evo Morales. É possível que seja o fato político qualitativamente mais importante gerado pelos de baixo desde o “caracazo” [alusão a Caracas, como se chamou a reação popular a um pacote do presidente Carlos Andrés Pérez que, a mando do FMI, ordenou um aumento de 100% no preço da gasolina, 30% a 100% na passagem do ônibus, cortes drásticos no gasto público, liberação do câmbio, diminuição de salários, e um frenético programa de privatização] de fevereiro de 1989 contra um dos primeiros ajustes neoliberais na região. Em sendo assim, se abriria uma nova etapa nas lutas sociais em um período caracterizado pelo aumento generalizado dos alimentos.

A importância histórica do “caracazo” é que foi a primeira insurreição popular contra o modelo imposto pelo Consenso de Washington. Um pacote de medidas antipopulares foi respondido por centenas de milhares nas ruas, abrindo um fosso intransponível entre os de cima e os de baixo. A insurreição de Caracas mostrou que era possível derrotar o modelo quando se rompesse as barreiras estabelecidas para os protestos sociais, entre eles os sindicatos, convertidos em muros de contenção da rebeldia.

O novo período histórico foi seguido por dezenas de levantamentos populares, começando pelo Equador em 1990, que marcou uma ruptura nas lutas sociais ao instalar a agenda indígena de autogovernos territoriais no centro do cenário político. Desde esse ano se sucederam mais de meia dúzia de erupções populares forçando a queda de três presidentes. Os governos de Rafael Correa e Hugo Chávez são consequência do novo protagonismo popular.

Na Bolívia, três grandes insurreições (2000, 2003 e 2005) marcaram um ciclo de lutas que culminou com a eleição de Evo Morales. Do subsolo das sociedades nasceram fortes movimentos que modificaram o mapa político latino-americano.

O que aconteceu agora é diferente. A reação popular ao aumento da gasolina (72%) e do diesel (82%), divulgado em um domingo, na noite de 26 de dezembro, teve que ser suspenso porque a crescente mobilização ameaçava converter-se em explosão social. Foram as regiões mais evistas, aquelas onde o presidente colheu mais de 80% dos votos, que se mobilizaram contra a decisão do governo. O Altiplano aimara e as zonas cocaleiras do Chapare foram testemunhas de ações coletivas que enfocaram a ira da população contra os mesmos que se haviam beneficiado de um apoio quase unânime um ano atrás, quando o presidente foi reeleito com 64% dos votos.

O que aconteceu em El Alto é, talvez, o mais importante. A cidade aimara foi epicentro da rebelião de 2003 e ali Evo obteve 81% dos votos. No dia 30 de dezembro, a multidão atacou as sedes das organizações que se pronunciaram a favor do aumento dos combustíveis, entre elas a Federação das Juntas de Vizinhos, que protagonizou o levantamento de 2003 contra Gonzalo Sánchez de Lozada, e a Central Obrera Regional (COR). Também atacaram a prefeitura da cidade e incendiaram as estações de pedágio El Alto-La Paz, queimaram uma bandeira venezuelana e retratos de Evo.

No final de janeiro, o Instituto Ipsos divulgou pesquisas que mostram forte queda do apoio ao governo. A popularidade de Evo caiu de 84% em 2007 para 36% em janeiro de 2011, e 56% da população reprova sua gestão. O vice-presidente Álvaro García Linera, cujo nível de aprovação caiu de 46% em novembro de 2010 para 29%, colhe 71% de reprovações.

A rebelião contra os combustíveis mostra cinco fatos significativos. O primeiro é que o movimento popular não foi cooptado e mantém a sua autonomia, apesar dos consistentes esforços do governo para domesticá-lo com políticas sociais que se limitam a transferências monetárias. O que conseguiu foi atrair alguns dirigentes, mas ao preço de separá-los de suas bases, que mostraram que não são simples massa eleitoral.

A segunda é que o ciclo de lutas está sendo relançado contra os limites que o extrativismo impõe. A tentativa de aumentar o preço dos combustíveis mostra que a nacionalização dos hidrocarbonetos fracassou, porque ficou na mera negociação de contratos com as multinacionais. Mas ensina, além disso, que o salto industrial que o governo difunde não passou de declarações e que não se discute um modelo econômico alternativo.

Não ter consultado a população e os movimentos e o modo como foi emitido o Decreto 748, demonstra que não existe nem refundação nem descolonização do Estado, já que se aplicou uma medida neoliberal com métodos neoliberais. Esta é a terceira conclusão, que coloca todo o processo boliviano diante da disjuntiva: ou se reconduz rapidamente ou está com os dias contados.

Em quarto lugar, é uma série advertência a todos os processos da região, quer sejam os timidamente progressistas ou os que se inscrevem no “socialismo do século XXI”. Ingressamos em uma fase mais aguda da crise do sistema-mundo, caracterizada pela tendência ao desgoverno e ao caos que gera a combinação do aumento das matérias-primas e a desarticulação geopolítica global. Os acontecimentos da Bolívia e do sul do Chile irão se repetir e podem arrasar qualquer governo, mesmo aqueles que têm forte apoio popular.

Por último, é necessário haver uma opção ética. Quando os de baixo atacam e destroem os locais de “suas” organizações é porque os diques de contenção dos protestos sociais estão quebrados, ou são tão frágeis que não podem impedi-los. De que lado vamos nos colocar quando as multidões arremeterem contra governos e dirigentes de esquerda? Neste ponto não pode haver o menor cálculo no sentido de quem se beneficia ou fica prejudicado com a insurreição em curso. Estar com os de baixo é a única bússola no meio do caos.

Foto: Jorge Bernal/AFP