TROPEIROS E CAMINHOS DO BENI PARA O ACRE
Alceu Ranzi*
No final do mês
de agosto de 2021, quando estive em Rio Branco, tive a oportunidade de
entrevistar dois acreanos que testemunharam ou acompanharam as tropas de gado
originadas dos campos do Beni, na Bolívia, a caminho do Acre, em especial Rio
Branco.
Conversei
primeiro com o Sr. Paulo da Silva Maia, nascido em 1931, e morador do Segundo
Distrito, onde vive até hoje. Paulo Maia sempre lidou com gado, foi um antigo
tropeiro e acompanhou em diversas oportunidades tropas de gado dos campos de
Santa Ana del Yacuma, na Bolívia, para o Acre.
Segundo ele, as
tropas de gado com 300 ou 400 cabeças eram divididas em grupos menores,
acompanhadas por tropeiros bolivianos a pé. Não se usavam cavalos ou mulas pela
dificuldade de andar nos varadouros.
O segundo
entrevistado foi o Sr. Clóvis Alves de Souza, nascido em 1933, neto do Capitão
Liberalino Alves de Souza, Guarda-Livros do Cel. Plácido de Castro que se
destacou, durante a revolução acreana, no combate de Santa Rosa, nas cercanias
do rio Abunã, Bolívia.
O Sr. Clóvis
nasceu e ainda é proprietário de terras na região dos antigos “Campo Esperança”
e “Campo Central”, nas proximidades da atual cidade de Capixaba. Segundo ele, o
Capitão Liberalino era proprietário do Seringal Gavião e casou com uma índia
parente de Benavide Benavenuto, o último Cacique dos “Apurinã do Gavião” que
também foi Pajé na aldeia do Muchanguy, situada entre o Gavião e o “Campo
Lindo”, no atual município de Capixaba.
O gado trazido
dos campos do Beni, depois de caminhar durante 30 a 40 dias, chegava ao Acre em
péssimas condições. A recuperação e engorda, antes do abate, ocorria nas
pastagens naturais do Campo Esperança e Campo Central, na região das cabeceiras
do rio Iquiri, e nos pastos de Newtel Maia e na planície do rio Acre no atual
Bairro da Cidade Nova, em Rio Branco.
Tanto o Sr.
Paulo Maia como o Sr. Clóvis Alves de Souza, amigos e contemporâneos, falaram
da importância do comércio de gado da Bolívia para o Brasil nos anos em que
carne chegava ao Acre na forma de Corned Beef (enlatada) ou como Charque ou
Jabá (salgada e seca ao sol).
O transporte do
gado vindo da Bolívia se iniciava em Santa Ana del Yacuma e nos primeiros 300
km, até a localidade de Exaltación, na margem do rio Beni, o caminho
atravessava campos naturais. Daí para a frente, o gado seguia em varadouros no
interior da Floresta cruzando os rios Madre de Dios (na localidade de
Mercedes), Orton (Palestina) e Abunã (Santa Rosa).
Conforme o mapa
“La Frontera del Norte”, de 1907, elaborado pelo Cel. Percy H. Fawcett e
publicado por Adolfo Ballivian (Chefe da Comissão Boliviana Demarcadora de
Limites com o Brasil), a partir de Palestina, no rio Orton, o varadouro seguia
quase em linha reta cruzando o rio Abunã em Santa Rosa, e, adentrando o Brasil,
passava pelo Seringal Gavião, no Campo Esperança, até chegar ao Campo Central
do Capatará. Esse é o mesmo varadouro indígena trilhado pelo Cel. Labre em 1887
(ver Ranzi & Ferreira, p. 147 e 305).
Na localidade
conhecida como quatro bocas, tinha um entroncamento
(Gavião-Capatará/Palmares-Empresa), com um ramal seguindo para o Seringal
Capatará, às margens do rio Acre, e o outro, via Missões (no eixo da atual
rodovia BR-317) ia até as pastagens de Newtel Maia em Rio Branco.
Os varadouros da
margem direita do rio Acre para os rios Xipamanu e Orton podem ser visualizados
no mapa “Bolívia-Brazil Boundary, 1911-1912” (Edwards, 2013) e o “Mapa de Vias
de Comunicacion de los Distintos Puntos de la República a Puerto Acre”, de
Meredia Villarreal (1903), publicado na p. 27 de Gumucio (2014).
Esse comércio de
gado do Beni para o Acre é antigo e foi objeto de um Decreto Supremo do governo
boliviano datado de 02 de setembro de 1912, assinado pelo Presidente Eliodoro
Villazón, que isentava de impostos e taxas o trânsito e exportação de reses do
Beni para a região do Acre “donde el consumo de carne se hace impossible para
los pobladores por su fabuloso precio”.
Ainda mais
antiga é a observação do Frei Nicolás Armentia de que “talvez se abrirá en
breve um camiño para el transporte del ganado de Mojos al Purús, donde existen
de cincuenta à sesenta mil esplotadores de goma que carecen em lo absoluto de
ese artículo tan necesário para la vida” (Armentia, 1888).
Por outro lado,
nos tempos da Revolução Acreana, Genesco de Castro (2002) cita que a firma N.
Maia & Cia. “importa da Bolívia mais de 2.000 cabeças de gado anualmente”.
O declínio, e
posterior paralização, da importação de gado vivo do Beni para o Acre tem como
seu ponto de partida a implantação e consolidação de extensas fazendas de
pecuária no Acre a partir do início dos anos 70. O fim desse comércio resultou,
em território acreano, no abandono de varadouros que serviram para esse
transporte por mais de 50 anos. Desde então, o Acre passou da condição de
importador de gado em pé para a de exportador de carne beneficiada.
* Alceu Ranzi Alceu
Ranzi é professor aposentado da UFAC e membro do Instituto Histórico e
Geográfico do Acre
Para saber mais:
Armentia, N.
1888. Descripción de la provincia de los
Moxos, en el Reino del Perú. Imprenta del Siglo Industrial, La Paz,
Bolivia.
Castro, G. 2002.
O Estado Independente do Acre. Senado
Federal, Brasília, 372 pp.
República da
Bolívia, 1912 – Decreto Supremo da
Bolívia de 02 de setembro de 1912, assinado pelo Presidente Eliodoro
Villazón.
Edwards, H. A.
1913. Frontier work on the Bolivia-Brazil
boundary, 1911-1912. The Geographical Journal, v. 42, n. 2, p. 113-126 (+
mapa).
Gumucio, M. P.
2014. Pando y la Amazonia Boliviana.
Grupo Editorial Kipus, Cochabamba, Bolivia, 352 pp.
Ranzi, A.; Ferreira, E. 2021. Acre: Visto e Revisto. Massiambooks, Florianópolis, 310 pp.
1 Comments:
bom dia senhor Evandro!!
tenho interesse em uma matéria que o senhor vez sobre o tabaco acreano.
poderia por gentileza entrar em contato.
claudiosiva231016@gmail.com
deste ja agradeço e fico no aguardo
att: claudio dias
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