DOMESTICAÇÃO DA AMAZÔNIA ANTES DA CHEGADA DOS EUROPEUS*
Blog Ambiente Acreano
É
um fato. Até hoje a maioria das pessoas acredita que as florestas na Amazônia
são formações naturais que foram pouco alteradas pelos povos indígenas que as
habitavam por ocasião dos primeiros contatos com colonizadores europeus a
partir do início do século XVI.
Essa
impressão foi reforçada pelos relatos muitas vezes exagerados e confusos dos
primeiros exploradores espanhóis que, a partir de 1500, com a descoberta da foz
do rio Amazonas por Vicente Pinzón, realizaram 24 expedições de penetrações na
região.
Francisco
de Orellana, em 1542, e Pedro de Ursúa e Lope de Aguirre, entre 1560 e 1561,
percorreram totalmente o rio Solimões-Amazonas. Eles buscavam o reino “El
Dorado”, um paraíso de ouro, e o “País da Canela”, onde supostamente abundava
uma planta tão valiosa quanto a “Canela da Índia”, uma especiaria que
conquistara consumidores europeus fazia poucos anos.
As
descrições fantasiosas de Gaspar de Carvajal, padre dominicano que acompanhou a
expedição de Orellana, reforçaram a ideia da Amazônia como uma floresta
impenetrável, intocada, misteriosa e defendida por guerreiras ferozes (as
Amazonas), que abrigava não apenas o reino de “El Dorado”, mas também o “País
das Esmeraldas” e a elusiva – e nunca encontrada – cidade amazônica Inca de
Paititi.
Nas
últimas décadas, entretanto, evidências arqueológicas, botânicas, ecológicas,
antropológicas, genéticas e históricas tem demonstrado que os indígenas da
Amazônia foram e são como outros povos primitivos mundo afora que construíram
(e continuam a construir) seus espaços de vida dentro de ecossistemas locais,
modificando-os para que eles atendam aos seus interesses de sobrevivência.
A
necessidade de moldar o ambiente às suas necessidades levou à domesticação de
espécies de plantas e animais indispensáveis à sobrevivência dessas sociedades.
Com o tempo, e o acúmulo de conhecimentos ecológicos que viabilizaram o manejo
de ecossistemas do entorno de onde viviam, foi possível a domesticação de
paisagens, ou seja, de áreas geográficas nas quais ocorrem interações entre os
seres vivos e o meio ambiente e que antes da intervenção dos indígenas eram
espacialmente heterogêneas.
Essa
domesticação feita pelos indígenas consistia na retirada, por exemplo, de
plantas úteis para a sua alimentação, medicina ou construções, diretamente do
ambiente natural para cultivo nas redondezas de suas moradias. Foi assim com
algumas espécies de plantas importantes para a sociedade moderna, como a
mandioca, castanha do Brasil e pupunha.
No
processo de domesticação levado a cabo pelos indígenas, prevaleceu a seleção de
características genéticas que privilegiavam a obtenção de frutos maiores, com
menor número de sementes ou sementes de menor tamanho, de árvores de porte mais
baixo para facilitar a colheita, ou mesmo sem espinhos, como no caso da
pupunha.
O
pesquisador Charles Clement, do Instituto Nacional de Pesquisas da
Amazônia-INPA, acredita que numerosas plantas da flora amazônica foram ou
começaram a ser domesticadas há dez mil anos, ou seja, pouco depois da chegada
do homem ao continente americano, que se presume ocorreu por volta de 12 mil
anos atrás.
Essa
crença está baseada em dois aspectos principais. O primeiro diz respeito ao
crescente número de sítios arqueológicos indicadores de moradias de comunidades
indígenas primitivas encontrados ao longo de quase todos os rios da região
amazônica. Esses sítios apresentam um tipo único de solo conhecido como “terra
preta de índio”, escuro, muito fértil e de origem antropogênica. Ou seja, que
se formou pela intervenção humana via depósito de resíduos de fogueiras,
lixeiras e mesmo sepultamentos. Essa terra fértil favorecia o cultivo
recorrente de plantas anuais e perenes.
O
segundo aspecto está relacionado à composição florística das florestas em volta
desses sítios arqueológicos. Levantamento florísticos tem revelado que o
percentual de plantas úteis para o homem nestas florestas é muito superior ao
observado em regiões mais ermas, distantes das margens dos rios. Aqui também
fica claro que a floresta foi modificada para aumentar a disponibilidade de
recursos para os habitantes primitivos do entorno dos sítios arqueológicos.
Essa
“domesticação” do ambiente produziu, na opinião dos arqueólogos, alterações em
escala continental na paisagem amazônica e permitiu que a população indígena
que habitava a região antes da chegada dos europeus atingisse, segundo algumas
estimativas, entre oito e dez milhões de pessoas. Obviamente que a violência
militar dos conquistadores europeus e, principalmente, as doenças trazidas por
eles levaram a um rápido declínio dessa população indígena.
É
importante ressaltar que ecólogos não concordam inteiramente com as teorias
defendidas pelos arqueólogos sobre a forma de ocupação da Amazônia. Os
arqueólogos defendem que indígenas primitivos modificaram a composição das
florestas da região por meio do cultivo e manejo de determinadas espécies de
plantas. A castanheira (Bertholletia
excelsa), que pode viver mais de mil anos, é um bom exemplo, pois, além de
ser frequentemente encontrada em sítios arqueológicos, apresenta uma
distribuição em escala continental na Amazônia.
Como
os frutos da castanheira são dispersos somente por humanos e pequenos roedores
(cotias), a única explicação para a distribuição continental da mesma se deve
aos humanos, mais precisamente às práticas de cultivo e manejo realizadas por
populações indígenas que habitavam a região antes da chegada dos europeus.
O
fato de humanos terem atuado para alterar no passado as florestas na Amazônia
tem levado alguns pesquisadores a defender que as atuais florestas da região,
em função da intervenção indígena pretérita, deveriam ser consideradas como
patrimônio natural e cultural brasileiro e que sua derrubada significa não
apenas a destruição de sua valiosa biodiversidade, mas também a perda
definitiva deste patrimônio cultural.
Para saber mais: “The domestication of Amazonia before European conquest”, de autoria de Charles R. Clement e outros autores, publicado na revista científica Proceedings of the Royal Society, Biological Sciences, vol. 282, n° 1812, agosto de 2015.
*Artigo
originalmente publicado no jornal A Gazeta, em Rio Branco, Acre, em 07/10/2019.
Ilustração: Francisco de Orellana's 1541 expedition down the Amazon River, American engraving, 1848. The Granger Collection, New York
1 Comments:
Fantastico o conteudo do Blog: Parabens.
Sou facinado por este tema e a quebra dos paradigmas que nos são postos devivo a cultura dos conquistadores.
Visitarei sempre. Um grande abraço aos amigos pesquisadores da UFAC!
Abraços
Postar um comentário
<< Home