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04 setembro 2020

CAPIVARAS: HERBÍVOROS MANSOS E “PERIGOSOS”

Evandro Ferreira
Blog Ambiente Acreano

As capivaras (nome científico: Hydrochoerus hydrochaeris), os maiores roedores do mundo, são mamíferos nativos da América do Sul, onde se encontram amplamente distribuídas. Seus parentes mais próximos são o Preá ou Porquinho-da-Índia (Cavia aperea), animal domesticado inexistente em sua forma selvagem, e o Mocó (Kerodon rupestris), espécie selvagem parecida com o coelho, porém de maior tamanho e com orelhas e cauda muito pequenos, endêmico da região da Caatinga no Nordeste do Brasil.

As capivaras estão distribuídas por todo o Brasil, exceto na Caatinga, sendo abundantes em regiões ricas em água, como o Pantanal (são animais semi-aquáticos). Na Amazônia elas são menos abundantes nas áreas de terra firme, mas podem ser encontradas próximo de lugares alagados.

Elas são animais sociais que podem viver em grupos com até 100 indivíduos, mas geralmente os grupos contem entre 10 e 20 animais. Apesar de não domesticadas, são consideradas animais mansos e permitem a aproximação, o toque e mesmo a alimentação diretamente da mão de humanos. Por essa razão, não é incomum encontra-las em áreas urbanas. Em Rio Branco, dentro e no entorno do Campus da Universidade Federal do Acre (UFAC), numerosas capivaras vagam livremente, constituindo-se em uma atração para os frequentadores.

Apesar da abundância e da mansidão desses animais, sua caça e o consumo de sua carne não são comuns no Brasil. Em países, como a Venezuela e a Colômbia, por exemplo, o consumo da carne é muito popular e uma tradição durante a quaresma e a semana santa. Por esta razão, a criação em cativeiro da espécie tanto para a venda da carne como da pele são práticas comuns.

E o que faz o consumo da carne de capivara não ser popular no Brasil? Pode ser que seja o sabor muito forte, o cheiro ou mesmo a cor da carne. Mas a principal razão reside em um processo de “demonização” deste animal patrocinado pela imprensa.

Todas as vezes que são reportados casos de febre maculosa no Brasil, invariavelmente são indicados como a “fonte” da doença os carrapatos que vivem naturalmente na pele das capivaras.

A febre maculosa é uma doença infecciosa de gravidade variável que pode causar febre aguda e apresentar elevada taxa de letalidade se não for tratada corretamente. Ela é transmitida pelo carrapato-estrela (Amblyomma cajennense) infectado pela bactéria Rickettsia rickettsii ou outras bactérias do mesmo gênero. Se o carrapato pica seres humanos, estes podem desenvolver a doença.  

Entretanto, sabe-se que o carrapato-estrela (hematófago) também pode ser encontrado em animais de grande porte (bois e cavalos), cães, aves domésticas e roedores. Se o carrapato presente nestes outros animais estiver infectado pela bactéria Rickettsia rickettsii e picar seres humanos, é grande a possibilidade de os mesmos desenvolverem a doença. Mas a “fama” faz com que a capivara seja quase sempre considerada a culpada.

Um “trend” mais recente envolvendo a capivara é seu suposto papel como importante transmissor de agentes etiológicos zoonóticos diz respeito à infecção por Salmonella.

A Salmonella é uma bactéria que pode causar dois tipos de doença, dependendo do sorotipo: salmonelose não tifóide e febre tifoide. Os sintomas da salmonelose não tifóide são semelhantes a outros problemas gastrointestinais e incluem diarreia, vômitos, febre moderada dor abdominal, cansaço e perda de apetite. Não é letal e os afetados podem se recuperar em até sete dias. A febre tifoide é uma forma mais grave e tem uma taxa de mortalidade maior.

A forma mais comum da transmissão desta doença é a ingestão de alimentos contaminados e maus hábitos de higiene. Estima-se que a Salmonella atinge mais de 93 milhões de pessoas/ano no mundo causando mais de 155 mil mortes. Apesar de a maioria dos casos da doença ser decorrente da ingestão de alimentos contaminados, uma porção bem pequena dos casos é derivada da infecção via contato de humanos com as fezes de animais portadores da bactéria.

É isso. A transmissão a partir de animais selvagens “exige” o contato com as fezes do animal. E a capivara, mais uma vez, é apontada como uma fonte potencial para esses casos.

Mesmo considerando que na literatura científica apenas dois casos de Salmonella tenham sido reportados para capivaras, pesquisadores da UFAC resolveram investigar o possível perigo que as capivaras da zona rural e urbana do Estado representam como repositórios de Salmonella que eventualmente poderia infectar a população local.

Para isso eles capturaram 54 capivaras assintomáticas para doenças intestinais de duas áreas urbanas e duas áreas rurais do Acre e as mantiveram em cativeiro por três a quatro dias para amostragem. Três amostras de fezes desses animais foram colhidas durante a permanência dos mesmos em cativeiro.

O resultado do estudo revelou que oito (5%) das 162 amostras examinadas por cultura bacteriana foram positivas para Salmonella spp., enquanto quatro (7%) das 54 amostras examinadas pelo método PCR foram positivas. Dos oito animais positivos em cultura, cinco eram oriundos de área urbana e três de área rural. Nas amostras positivas pelo método PCR apenas um animal positivo era de área urbana e quatro da área rural.

Ao final os autores consideraram que, considerando os resultados dos dois métodos de diagnóstico empregados, apenas um animal foi considerado positivo. E concluíram que as capivaras tem potencial como reservatórios e disseminadores de Salmonella na área urbana e rural do Acre.

Vejam que nenhum caso de transmissão de Salmonella de capivaras para humanos foi reportado para o Acre. Mas a fama da mesma foi suficiente para justificar o estudo.

Diante disso, só posso dizer – se é que entendem o sentido – aos leitores de A Gazeta: “Cuidado, apesar de mansas as capivaras são um perigo...”

 

Para saber mais: Farikoski, I. et al. 2019. As capivaras urbanas e rurais (Hydrochoerus hydrochaeris) como reservatório de Salmonella no oeste da Amazônia, Brasil. Pesquisa Veterinária Brasileira, vol. 39, n° 1, p. 66-69.