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24 dezembro 2005

ETNOBOTÂNICA E BIOPIRATARIA NA AMAZÔNIA

Charles R. Clement, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia-INPA
Miguel N. Alexiades, The New York Botanical Garden

Ao longo deste século, etnobotânicos identificaram três classes de conhecimento indígena dos primeiros povos da Amazônia que possuem potencial econômico nos mercados regional, nacional e mundial: (1) plantas ou animais úteis, não manejados ou cultivados (especialmente plantas medicinais, tecnológicas, recreativas), e o conhecimento a elas associado; (2) animais ou plantas domesticados, sempre manejados ou cultivados (especialmente fruteiras, amiláceas, hortaliças, medicinais, tecnológicas, recreativas, fibras) e o conhecimento a elas associado; e (3) práticas de manipulação de ecossistemas (paisagens domesticadas em vários graus).

Na primeira classe, existem entre 500 e 2000 (talvez mais) espécies na Amazônia, enquanto na segunda existem pelo menos 100. O que mais chama a atenção da mídia hoje são as plantas medicinais, tanto da classe 1 como da 2, pois a indústria farmacêutica gera US$340 bilhões anualmente e não existe notícia mais atrativa que um remédio milagroso que gerará uma fortuna para seu descobridor. É por isto que a biopirataria é também um tema que fascina a mídia.As classes de conhecimento 1 e 2 são passíveis de biopirataria, porque tem demanda no mercado; a classe 3 não tem demanda e, portanto, não é objeto de pirataria.

A biopirataria pode ser definida como a remoção de uma planta, animal ou conhecimento de uma comunidade com a intenção de lucro econômico em outro local, sem negociação com a comunidade sobre a repartição de benefícios. A denominação 'biopirataria' só ganhou destaque após a Convenção da Diversidade Biológica, quando a soberania nacional sobre biodiversidade era reconhecida. Antes da Convenção, existia 'intercâmbio' praticado por governos e indivíduos, resultando na distribuição atual de plantas e animais agrícolas (p. ex., café, cana de açúcar, cabras etc.) e ornamentais, bem como de ervas daninhas, pragas e doenças. Na época pré-Convenção, biodiversidade era 'patrimônio da humanidade.'

Normalmente, a mídia somente dá atenção à biopirataria quando é praticada por estrangeiros, mas num país de dimensões continentais, com as desigualdades regionais do Brasil, poderia ser importante reavaliar isto, pois este tipo de transferência realça as desigualdades dentro do país também. Embora a mídia faça muito barulho, a biopirataria parece ser pouco comum hoje, talvez porque a maioria das plantas e animais com potencial econômico evidente já foi distribuída, tanto dentro como fora do Brasil.

Portanto, acreditamos que a biopirataria é relativamente pouco importante na economia nacional e mundial atualmente, embora possa ser muito importante para uma comunidade tradicional ou indígena cujos direitos foram ignorados.

Mais importante é quando uma planta, animal ou conhecimento é coletado para estudo e publicação por um etnobotânico ou outro cientista, e um uso econômico é descoberto por um terceiro posteriormente. Isto não é biopirataria no sentido comum do termo, embora possa ter a aparência de biopirataria se a sequência de eventos não é conhecida. Na realidade, esta sequência de eventos é a prática da ciência como sempre tem sido feita. No entanto, com a introdução de (1) a soberania nacional sobre a biodiversidade, (2) os direitos de propriedade intelectual sobre seres vivos e processos biológicos, (3) o reconhecimento dos direitos de populações indígenas e tradicionais sobre seus recursos biológicos, genéticos e intelectuais, e (4) a monetarização de quase tudo no modelo econômico vigente, o etnobotânico e outros cientistas se encontram em território ético novo.

A mudança de paradigma na forma como a biodiversidade é vista socialmente, de patrimônio da humanidade para patrimônio nacional (e até individual, quando patenteado), transforma a prática da ciência, tanto para etnobotânicos, como para outros cientistas. Queremos assinalar apenas dois aspectos desta transformação: uma questão ética e uma falha econômica.

O cientista ganha reconhecimento por meio de suas publicações e o etnobotânico é um cientista comum neste respeito. No entanto, o etnobotânico é diferente em que sua área de estudo engloba as três classes de conhecimento indígena, duas delas muito visadas dentro do novo paradigma bio-econômico.

O etnobotânico também tem responsibilidades maiores que um cientista de laboratório, pois ele precisa respeitar os direitos de seus parceiros indígenas e tradicionais, sem os quais não pode fazer pesquisa. Agora, se um etnobotânico publica o nome de uma planta medicinal, sua composição químico-farmacêutica e o receituário de um pajé sobre como a planta deverá ser usada, como este etnobotânico garantirá que (1) a população indígena terá seus direitos intelectuais respeitados e receberá uma parte de qualquer benefício que poderá aparecer, e (2) a soberania nacional será respeitada também?

Se publica, a informação estará no domínio público e um terceiro pode patentear o processo de isolamento do princípio ativo e, possivelmente, um novo remédio, ganhando assim um lucro monetário. Se não publica, não ganha reconhecimento como cientista. Isto é um dilema ético sério.

A Convenção da Diversidade Biológica dá direitos aos países e conclama a estes mesmos países a garantir que o conhecimento tradicional seja reconhecido como propriedade intelectual, para que os povos tradicionais possam participar da repartição de benefícios que poderão aparecer. No entanto, a questão está levantada: publicar ou não publicar?

A falha econômica é diretamente relacionada ao dilema ético. Para que um componente da biodiversidade seja considerado um recurso biológico ou genético, precisa ter valor agregado. Ou seja, precisa ter um investimento humano que o transforma em recurso. No caso dos três conhecimentos indígenas discutidos aqui, o investimento foi feito ao longo de milênios pelos primeiros povos, tanto no acúmulo de conhecimentos como na seleção praticada para criar plantas e animais domésticos.

Na economia atual, este investimento é chamado de pesquisa e desenvolvimento (P&D). No Brasil, estes investimentos não estão sendo feitos em escala proporcional à sua bio e sócio-diversidade. Isto é uma falha econômica, pois uma oportunidade está sendo deixada de lado.Se a maioria das plantas, animais ou conhecimentos oriundos do Brasil gerando lucros em outros países houvesse sido descoberta primeiro por brasileiros, não haveria tanta preocupação sobre biopirataria, pois sua transferência para o exterior seria apenas uma conseqüência do comércio livre, tão pregado por governos neoliberais.

Portanto, a biopirataria e a descoberta posterior de valor econômico são importantes indicadores da falta de investimento em P&D de novos produtos e cultivos no Brasil. Podemos afirmar sem receio que um investimento à altura do potencial da biodiversidade amazônica faria com que a biopirataria saisse definitivamente da mídia!

3 Comments:

Blogger Angela Ursa said...

Olá, Evandro! Eu soube do seu blog através da lista de literatura indígena. Parabéns pelos seus textos sobre biodiversidade e combate à biopirataria! Um ótimo Natal para você! Abraços florestais da Angela Ursa :))

25/12/2005, 16:12  
Blogger Evandro Ferreira said...

Angela,
Seja bem vinda ao "Ambiente Acreano" (literalmente), um lugar dinâmico e diverso. O Acre é assim, tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo.
Abraços,
Evandro

26/12/2005, 11:25  
Anonymous Anônimo said...

Prezados Srs.,

Espero que ajudem a combater a biopirataria de patrimônio genético da Amazônia e do Povo Brasileiro que vem sendo cometida por uma pessoa que se identifica como Guidelazeri de Minas Gerais em um fórum internacional de contrabando do patrimônio genético brasileiro.

Há tanta desfaçatez, que o contrabandista posta fotos detalhadíssimas com a prova do crime!!!!

Segue o link:

http://tropicalfruitforum.com/index.php?topic=23971.0

Ajudem a altertar o IBAMA e a POLÍCIA FEDERAL!!!

25/06/2017, 10:13  

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