Google
Na Web No BLOG AMBIENTE ACREANO

07 fevereiro 2006

PROFISSÃO MATEIRO

Para os que fazem pesquisa botânica na Amazônia, o mateiro ou parataxonimista é uma pessoa chave. Ele entende sobre as plantas, seus nomes, famílias e mesmo gêneros científicos. São pessoas raras pois poucos têm a capacidade de assimilar e entender a diversidade de plantas da região. Seu conhecimento é imprescindível para os “doutores” que pesquisam as florestas.

Na Amazônia brasileira alguns deles se destacam, embora quase todos já tenham se aposentado. Os mais famosos são os do INPA em Manaus. Luiz e Dionízio Coêlho, José Ramos, José Lima. No Acre temos pelo menos três excelentes mateiros: Raimundo Saraiava, que trabalha na Funtac, Edilson Consuelo do Herbário do PZ e o Tonico, um autônomo.

Abaixo apresentamos uma entrevista com Luiz Coêlho, que encontramos no site de Drauzio Varella sobre o Rio Negro.

CADERNOS DE VIAGENS: RIO NEGRO
DRAUZIO VARELLA

Luiz Coelho explica o que é ser mateiro e fala das coisas que descobriu em suas andanças pela Amazônia, subindo e descendo os rios que cortam essa região. Ele é um profundo conhecedor da flora amazônica e antigo funcionário do INPA. Botânicos de renome internacional já se calaram humildes diante de sua sabedoria.

Seu Luiz aposentou-se no INPA, mas continua na ativa.

Profissão: mateiro

Drauzio – Seu Luiz, o que é ser mateiro?
L. Coelho – O mateiro coleta material botânico para a formação de um herbário. Quando comecei a freqüentar a escola agrícola, pensava em ser agrônomo, mas meu pai adoeceu e faltaram recursos para me mandarem para Recife porque em Manaus não havia faculdade de agronomia. Virei mateiro.Contratado pelo INPA para esse serviço, aos 28 anos, tive a sorte de trabalhar com o dr. William Antônio Rodrigues que me incentivou bastante para conhecer as famílias, depois os gêneros e finalmente as espécies de cada planta. Atualmente, tenho quase 40 anos de profissão e continuo trabalhando com o mesmo entusiasmo.

Manaus de antigamente

Drauzio – Como era Manaus naquela época?
L. Coelho – Nasci em Tefé em 1928 e desde os 6 anos moro em Manaus, embora prefira viver na floresta. Cheguei em 1934. A cidade era pequenininha, tão pequena que quando um fato inusitado acontecia - um desastre numa ponte ou um atropelamento por um bonde, por exemplo - o repórter escrevia a notícia numa placa, colocava-a na frente do Jornal do Comércio, o mais antigo de Manaus, e tocava uma sirene. Ao ouvir o sinal, o povo se juntava na frente do prédio para saber a novidade, pois só no outro dia a notícia apareceria no jornal.Era também um lugar de gente pobre, que andava descalça pelas ruas, e dos ricos proprietários de seringais. Corria a lenda de que esses magnatas milionários acendiam o charuto com notas de 500 mil réis.Não havia carros em Manaus. Os italianos faziam o transporte da bagagem dos passageiros que chegavam nos navios em um carrinho de mão. Levavam para o hotel, o Vovô dos Hotéis, o maior e o mais chique de todos que existiam. Dizem que houve um assassinato em suas dependências que fez história. Por causa do desentendimento com os seringueiros de um seringal, o patrão mandou matar um empregado que tinha um filho ainda criança. Quando o menino virou rapaz, foi para Manaus e soube que o mandante do crime estava hospedado no hotel. Comprou um revólver, encheu de balas e vingou a morte do pai.

Vida de seringueiro

Drauzio – Como era a vida dos seringueiros nesse tempo?
L. Coelho – Não cheguei a ver de perto como viviam os seringueiros porque me criei na cidade. Quando ia para o campo fazer trabalho de pesquisa, encontrava as seringueiras cortadas e as latas colhendo o látex, mas nenhum trabalhador por perto. Borracha mesmo, só vi no Acre.De qualquer modo, o trabalho na Amazônia sempre foi meio escravo. O povo é analfabeto e, como diz o ditado, em terra de cego quem tem um olho é rei. Conseqüência: os mais simples acabam sendo enganados pelos mais espertos.

Andanças pela Amazônia

Drauzio - O senhor andou pela Amazônia inteira acompanhando botânicos?
L. Coelho – Andei pela Amazônia inteira acompanhando botânicos brasileiros e estrangeiros. Naquele tempo, era muito difícil viajar por essa região. Ia-se num barco a motor que pertencia aos donos dos seringais, dos castanhais ou das plantações de piaçaba, pois só eles podiam subir o Negro. Desembarcávamos numa cidadezinha, onde ficávamos alguns dias coletando e à espera de outro barco que nos levasse de volta para Manaus. Cansei de passar 20, 30, 40 dias fora de casa porque não tinha como voltar. O material acabava, o trabalho acabava e a gente ficava sem ter o que fazer. Foi então que aprendi a jogar dominó.

População do alto rio Negro

Drauzio – Nessa época, a parte alta do rio Negro era habitada quase exclusivamente por índios?
L. Coelho – Ainda me lembro de que as primeiras excursões que fiz para o rio Negro, em 1956, foi acompanhando um botânico japonês chamado Takeushi. Subimos até São Gabriel da Cachoeira, no alto rio Negro. Quando chegamos, fiquei espantado. Ninguém falava português ali. Só se falava tucano, a língua dos povos indígenas que habitavam a região. Nossa sorte foi encontrar um comerciante natural do Maranhão e amigo dos padres missionários que nos serviu de intérprete.O migrante nordestino não se adaptou nessa região. Adaptou-se melhor nos rios Solimões, Purus e Juruá. No entanto, no Negro fixaram-se alguns comerciantes do Nordeste para os quais os índios trabalhavam na exploração da borracha, sova e piaçaba. Esse comércio da região favorecia os patrões e os comerciantes porque o caboclo, ah, esse fazia mesmo era só trabalhar.

Rotina dos mateiros

Drauzio – Como é a rotina dos mateiros nessas expedições?
L. Coelho – No verão, os mateiros levantam cedo e coletam até15h, 15:30h. Na volta, pesa-se todo o material antes de colocá-lo na estufa para secar. Às 5h da manhã do dia seguinte, ele é retirado porque está pronto para colecionar e só então se sai novamente para o campo.É trabalho para o dia todo, mas a parte mais difícil é registrar o material, o local onde foi coletado, o tipo de solo, o porte da planta, o diâmetro, a cor do fruto e da flor. A anotação tem de ser completa para o especialista poder identificar corretamente a planta com a qual está trabalhando.O mateiro precisa coletar um galho com folha, flor e fruto. O taxonomista precisa de uma peça assim completa para identificar família, gênero e espécie de cada exemplar.

Aprendendo com a prática

Drauzio - Como o senhor conseguiu decorar tantos nomes e aprendeu a reconhecer tantas espécies?
L. Coelho – Fui aprendendo os nomes das plantas e a reconhecer as espécies com a prática. O dr. William A. Rodrigues, meu chefe, é um grande botânico. Quando chegávamos do campo e íamos separar o material, ele pedia que eu reconhecesse as amostras. Se eu não sabia, ele separava a peça. Findo o trabalho, sugeria: “Olhe, Luiz, aquele material, procure se pertence a tal família e gênero”. Em casa, consultando os livros, via que ele estava sempre certo e ia aprendendo com suas lições.

Além do dr. William, trabalhei com botânicos franceses, alemães americanos e brasileiros. Todos me impressionaram por seu conhecimento, mas os estrangeiros me surpreenderam porque jamais escondem alguma coisa da gente. Nunca vi um botânico estrangeiro pegar um material e tentar escondê-lo de mim.

Corre por aí a idéia de que eles pretendem roubar espécies da flora brasileira. Se o crime existe, não é cometido pelos botânicos. É por outras pessoas que coletam o material. Uma vez vi uma estudante italiana escondendo orquídeas para enviar para a Itália. Eu lhe disse: “Não faça isso, esse material não é seu, é do INPA, é do Brasil”, e as orquídeas ficaram.

Projeto Radam

Drauzio – Nessas andanças pela Amazônia, o senhor esteve em lugares distantes nos quais o homem branco estava chegando pela primeira vez?
L. Coelho – Nessas andanças, andei por lugares da Amazônia em que o homem branco jamais havia pisado Na época do presidente Geisel, fui emprestado para o Projeto Radam Brasil que se propunha fazer um levantamento dos recursos potenciais do país. Recurso potencial madeireiro na área da botânica, dos minérios e do solo analisando seus níveis de fertilidade, além de um levantamento cartográfico da Amazônia. Foi um projeto bem organizado que contava com a colaboração da aeronáutica. Chegávamos de avião ou de helicóptero numa clareira aberta por rapelistas no meio da floresta e montávamos um acampamento, em geral perto de um igarapé. Dali deslocávamo-nos tantos quilômetros quantos fossem necessários para a pesquisa. O pessoal de frente ia abrindo picada e os técnicos iam atrás.

Engenheiros florestais localizavam as árvores pelo radar. Eram formados na Holanda e dominavam perfeitamente essa técnica. A partir do ponto onde o helicóptero aterrissava, estabelecia-se um rastreamento chamado espinha de peixe. A pesquisa considerava uma área de 5km de extensão com picadas de 500m de cada lado. Avaliava-se o potencial madeireiro desse espaço. Os dados obtidos eram extrapolados para saber quantos metros cúbicos de madeira existiam na região. Fiz parte desse projeto durante dois anos e meio, mas perdi a conta de quantas missões participei. Comecei pelo Maranhão, cheguei à fronteira brasileira com a Colômbia e sobrevoei o Acre, lugar de muito bambu.

Onde a floresta é mais bonita

Drauzio – Quando se passa sobre a floresta, tem-se a impressão de um tapete verde e homogêneo. Na verdade, a vegetação ali é muito diversificada. O que mais o encanta na floresta amazônica?
L. Coelho – As florestas do rio Negro na fronteira com a Venezuela e com o Peru não são muito densas. É uma área hidromórfica. Quando se sobrevoa a região, um brilho trespassa as copas das arvores. É a água. No entanto, a região mais bonita fica na fronteira com a antiga Guiana Holandesa, atual Suriname, um terreno acidentado, mas de vegetação densa. Observá-la de avião é um espetáculo inesquecível. As copas ficam cobertas pelas flores amarelas da maçaranduba, uma árvore da família das sapotáceas cuja madeira é excelente para a fabricação de móveis. Seu látex também era aproveitado antigamente.
Muita dessa madeira foi derrubada. Tem muita gente rica só com a madeira retirada do rio Negro. Abatiam sem critério, ,jogavam os troncos no rio e comerciavam lá embaixo. Eram jangadas e jangadas de madeira da floresta numa longa procissão rio abaixo.

Houve um tempo em que o governo não se incomodava com isso. Quando decidiu fazer uma reserva nas ilhas Anavilhanas, já não havia o que preservar. Hoje, algumas mudas das espécies abatidas estão crescendo devagarinho.

Mesmo agora, quando se entra no mato em lugares distantes, não é raro encontrar árvores derrubadas com moto-serra. Toda a itaúba desapareceu, porque sua madeira era utilizada na fabricação de barcos. Para fazer os flutuantes, a acaçu, própria da mata dos Solimões, foi a espécie mais castigada. É uma lástima a atitude irresponsável dessa gente que não pára de destruir a floresta!