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02 julho 2006

EUCLIDES DA CUNHA NA AMAZÔNIA

EUCLIDES DA CUNHA E A AMAZÔNIA: VISÃO MEDIADA PELA CIÊNCIA

José Carlos Barreto de Santana
Professor titular da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) Rua São Jorge, 63 Bairro Eucaliptos 44720-770 Feira de Santana — BA Brasil
zecarlos@uefs.br

Publicado em História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. VI (suplemento) 901-917, setembro 2000.

Parte 1


Famoso e desempregado em 1904, Euclides da Cunha foi nomeado chefe da Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus. Após percorrer uma parte da Amazônia, pretendia escrever um livro intitulado Um paraíso perdido. Através da análise dos "ensaios amazônicos", dos relatórios técnicos, da correspondência pessoal e das anotações de leituras, o que inclui uma caderneta ainda inédita, este artigo busca entender as mediações feitas por Euclides da Cunha, entre suas observações e a leitura intensa da produção de naturalistas e cientistas especializados sobre a Amazônia, vista por ele como a região cujo conhecimento demarcaria o fecho da história natural.

Após percorrer uma parte da Amazônia, em 1905, como chefe da Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus, Euclides da Cunha pretendia escrever um livro no qual registraria suas idéias sobre a região. Para isso tinha até escolhido o título, Um paraíso perdido,1 daquele que se destinava a ser o seu segundo "livro vingador". A morte, em forma de drama passional, no ano de 1909, chegou antes que fosse concretizada a sua pretensão, e "os ensaios amazônicos são o aspecto menos conhecido de sua obra. Encontram-se dispersos em artigos e entrevistas de jornal, em crônicas e prefácios, em sua correspondência particular e oficial, além dos relatórios técnicos da viagem" (Ventura, 1993, p. 44).2

Francisco Foot Hardman, após esboçar sumariamente o espaço temático no qual se inserem os "ensaios amazônicos" de Euclides da Cunha, e considerando o material existente sobre este assunto, propõe algumas direções possíveis em termos de fontes historiográficas e literárias. Das propostas de Foot Hardman (1992a) destaco a que trata de um rastreamento documental em acervos diversos, e novas incursões à correspondência do escritor, além de um diálogo com os próprios escritos amazônicos de Euclides da Cunha, estendendo seus canais e pontes até uma série de tradições "de que a ‘prosa perdida’ do escritor foi, em alguma medida tributária", o que incluiria a tradição dos viajantes naturalistas e cientistas.

Através da investigação dos trabalhos publicados sobre a Amazônia, dos relatórios técnicos, da correspondência pessoal e das anotações de leituras de Euclides da Cunha, serão analisadas as mediações feitas por entre as suas observações e a leitura intensa da produção de naturalistas e cientistas especializados sobre a Amazônia (ou, de forma mais ampla, sobre a natureza brasileira, quando for possível interpretar estas leituras como parte do seu esforço para integrar aquela região no seu projeto de interpretação nacional), vista por ele como a região cujo conhecimento demarcaria o fecho da história natural.

Visão pré-amazônica

O sucesso de Euclides da Cunha, como escritor, após a publicação de Os sertões, significou a abertura, para ele, de instituições como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a Academia Brasileira de Letras (1903), mas isto não veio acompanhado de uma almejada estabilidade funcional e financeira.

Após demitir-se do cargo de engenheiro da Superintendência de Obras Públicas de São Paulo, e de um breve período na Comissão de Saneamento de Santos, Euclides da Cunha viu-se famoso e desempregado em 1904. Pleiteando um cargo em comissão no Itamaraty, através de negociação envolvendo o diplomata e acadêmico Oliveira Lima e o crítico literário e também acadêmico José Veríssimo, Euclides da Cunha dispôs-se a seguir para o Mato Grosso, Acre ou para o Alto Juruá, "remotos pontos da nossa terra que desejo ver e estudar de perto" (Cunha, 1997, p. 207).

O primeiro registro do interesse de Euclides da Cunha em viajar ao Acre está contido numa carta a Luiz Cruls, datada de 20 de fevereiro de 1903, onde informou que "alimento há dias o sonho de um passeio ao Acre. Mas não vejo como realizá-lo. Nesta terra, para tudo faz-se mister o pedido e o empenho, duas coisas que me repugnam. Elimino por isto a aspiração — é que talvez pudesse prestar alguns serviços" (Cunha, op. cit., p. 149).

A menção desse interesse numa carta a Luiz Cruls parece encontrar a sua razão no fato de que o diretor do Observatório Astronômico estivera, entre 1900 e 1902, à disposição do Ministério das Relações Exteriores, servindo como diretor da Comissão de Limites e chefe da Comissão de Limites com a Bolívia (Morize, 1987, p. 130-1).3

No intervalo de tempo entre as cartas a Luiz Cruls (fevereiro de 1903) e a José Veríssimo (junho de 1904), Euclides da Cunha escreveu, para os jornais O País e O Estado de S. Paulo, os quatro artigos relacionados com a Amazônia que foram posteriormente incorporados ao livro Contrastes e confrontos (1907).

A questão de limites entre o Brasil e a Bolívia desaguara no tratado de Petrópolis, assinado em 17 de novembro de 1903, pelo qual a Bolívia cedia ao Brasil o território do Acre em troca de compensações territoriais e pecuniárias. Este acordo gerara reação de desagrado nos países vizinhos, principalmente no Peru, que tinha com a Bolívia, o Equador, a Colômbia e o Brasil pendências de limites na região Amazônica. Já desde 1896, caucheiros4 peruanos haviam atravessado o rio Javari, limite entre o Brasil e o Peru estabelecido desde meados do século XIX, e se mantinham nos vales do Juruá e Purus, garantidos por tropas peruanas (Rabello, 1966, p. 249).

Euclides da Cunha considerava as ações dos peruanos ditadas mais pelas condições do meio físico, que os impeliria em direção ao Atlântico, sendo a sua saída obrigatória o Purus. Mostrava-se contrário ao envio de tropas regulares para a região em litígio, pelo prejuízo resultante para as negociações em torno das circunstâncias administrativas criadas pelo tratado de Petrópolis, e entendia que "está passado o tempo em que a honra e a segurança das nacionalidades se entregavam, exclusivamente, ao rigor das tropas arregimentadas". Numa alusão aos imigrantes nordestinos, defendia que "as forças para repelir a invasão já ali se acham destras e aclimadas, nas tropas irregulares do Acre, constituídas pelos destemerosos sertanejos dos estados do Norte, que estão transfigurando a Amazônia". Contra os caucheiros haveria a ação dos jagunços (Cunha, 1966, pp. 159, 162).

Assim como já acontecera com os artigos que antecederam a sua ida para o sertão de Canudos, Euclides da Cunha escreveu sobre a Amazônia antes de conhecê-la in situ. Mais uma vez, fez-se acompanhar de autores/autoridades diversos, que passam por Humboldt, Agassiz, Bates, Chandless, Tavares Bastos e outros, demonstrando um esforço de leitura que o levou a tecer considerações sobre o meio físico, o homem e a cultura daquela região.

Os textos escritos por Euclides da Cunha, antes da sua ida até a Amazônia, e que têm-na como tema, expressam a predominância da visão de mundo norteada pelo determinismo geográfico, evolucionismo e darwinismo social, que podem ser identificados nas relações entre o clima e a adaptabilidade do homem, nas idéias sobre o "isolamento étnico" como elemento de preservação e formação das "raças", ou no emprego de "palavras-chave", como "aplicação dos princípios transformistas às sociedades", "seleção natural dos fortes" e "concorrência vital entre os povos" (Antonio Filho, 1995, pp. 74-84). Novamente estavam em pauta os modelos do cientificismo que tanto impregnara Os sertões.

Euclides da Cunha na Amazônia

Posicionando-se por meio da imprensa a respeito dos incidentes envolvendo os peruanos, Euclides da Cunha credenciava-se à comissão pretendida, mas, na carta de 24 de junho de 1904 a José Veríssimo, esclarecia estar determinado a seguir para o Mato Grosso, ou para o Acre, ou para o Alto Juruá, ainda que se antecipando à organização das comissões demarcatórias, pois era também seu interesse realizar apreciações sobre os aspectos físicos e riquezas da região. Para reforçar seus argumentos sobre a decisão tomada, Euclides da Cunha lembrava ao crítico literário que "se as nações estrangeiras mandam cientistas ao Brasil, que absurdo haverá no encarregar-se de idêntico objetivo um brasileiro?" (Cunha, 1997, p. 208).

Contando ainda com a participação do diplomata Domício da Gama, secretário do ministro do Exterior, o barão do Rio Branco, a nomeação para chefe da Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus apresentava-se duplamente importante para Euclides da Cunha: para o engenheiro, "que não pode ter um trabalho mais digno" e para o escritor, "que não poderá ter melhor assunto" (Cunha, op. cit., p. 219).

O contato inicial de Euclides da Cunha com a Amazônia, em dezembro de 1904,5 está registrado nas cartas, quer escritas aos amigos quer por força do cargo exercido, e a primeira impressão é do desapontamento que me causou o Amazonas, menos que o Amazonas que eu trazia na imaginação; a estranha tristeza que nos causa esta terra amplíssima, maravilhosa e chata, sem um relevo onde o olhar descanse; e, principalmente, o tumulto, a desordem indescritível, a grande vida à gandaia dos que a habitam...Estou numa verdadeira sobrecarga de impressões todas novas, todas vivíssimas e empolgantes. Preciso de uma situação de equilíbrio para o espírito (Cunha, op. cit., pp. 254-5).

Mais tarde, ao discursar na sessão de posse na Academia Brasileira de Letras, em 18 de dezembro de 1906, Euclides da Cunha (1966, p. 204) descreveria como se dera aquele encontro:

"há dois anos entrei pela primeira vez naquele estuário do Pará, "que já é rio e ainda é oceano", tão inserido estes fáceis geográficos se mostram à entrada da Amazônia. Mas contra o que esperava não me surpreendi...
Afinal, o que prefigurava grande era um diminutivo: o diminutivo do mar, sem o pitoresco da onda e sem os mistérios da profundura ... . De permeio baixios indecisos, varridos de maretas, mal desenhando-se grosseiramente, à tona, à maneira de caricaturas de ilhas; ou ilhas rasas, meio servidas pelas marés, encharcadas de brejos — uma espécie de naufrágio da terra ... .
Calei um desapontamento; e no obstinado propósito de achar aquilo prodigioso, de sentir o másculo lirismo de Frederico (sic) Hartt ou as impressões "gloriosas" de Walter Bates, retraíme a um recanto do convés e alinhei nas folhas da carteira os mais peregrinos adjetivos, os mais roçagantes substantivos e refulgentes verbos com que me acudiu um caprichoso vocabulário ... para ao cabo desse esforço rasgar as páginas inúteis onde alguns períodos muito sonoros bolhavam, empolgando-se, inexpressivos e vazios".


Com esta sensação de desapontamento, Euclides da Cunha desembarcou em Belém e dirigiu-se para o Museu Paraense. Portava uma carta do amigo José Veríssimo para Emílio Goeldi, diretor do Museu.6 Ali o escritor passaria "duas horas inolvidáveis" ao lado de Goeldi e do botânico Jacques Huber.7

Impressionado pelo que viu no Museu Paraense, faria referência ainda às "maravilhas de um dos mais notáveis arquivos do mundo. Mais tarde, e talvez pela imprensa, direi a minha impressão integral" (Cunha, 1997, p. 252).
Retornando ao navio levava consigo, oferecida pelo autor Jacques Huber, uma monografia sobre a região que lhe parecera tão desapontadora:

"deletreei-me a noite toda: e na antemanhã do outro dia — um daqueles glorious days de que nos fala Bates, subi para o convés, de onde, com os olhos ardidos da insônia, vi, pela primeira vez, o Amazonas ... Salteou-me, afinal, a comoção que eu não sentira ... . Atentei outra vez nos baixios, indecisos, nas ilhas ou pré-ilhas meio diluídas nas marejadas — e vi a gestação de um mundo (Cunha, 1966, p. 205)."

Para Lourival Holanda (1992, pp. 44-5),

"quando, entre 1904 e 1905, Euclides da Cunha chega à Amazônia, vem carregado já de expectativas criadas pelas tantas leituras feitas antes. Euclides faz a ‘invenção’ desta Amazônia ‘há muito tempo prefigurada’ (remetendo aqui ao étimo latino: alguém descobre além o que já trazia em si). O real imaginado vai sofrer o confronto do seu barco aportando em Belém e Manaus ... . Euclides vê a Amazônia ainda pelo olhar alheio: ele a vê como a lê nos tantos viajantes que deambulam Brasil afora. Caso singular de visão transversa; quando não de visão astigmata: as duas imagens não se justapõem inteiramente".

Esta oscilação entre a admiração prévia, o desapontamento e a comoção final diante do grande rio é mediada pela leitura dos cronistas e viajantes, com suas visões fantásticas e fabulosas, e pelo decifrar dos cartógrafos, cuja geografia se confunde com a mitologia. São projetadas imagens e pré-noções, fornecidas pela ciência européia (mas também pelos desbravadores brasileiros), sobre o meio amazônico e a floresta tropical. Como tais imagens e pré-noções não se ajustam à realidade observada, o escritor as irá retificando, até reencontrar o seu ponto de partida: o livro como metáfora ou símbolo da própria natureza (Ventura, 1995, p. 608).

Função de mediação também tivera a monografia de Jacques Huber.8 Só através dela foi possível a Euclides da Cunha (1966, pp. 205-6) compreender os mesmos céus resplandecentes e limpos; e que a terra toda surge à flor das águas e emerge mais e mais, crescendo na ascensão da seiva das florestas atraídas vigorosamente pelas energias incomensuráveis da luz ... . Com efeito, a nova impressão verdadeiramente artística, que eu levava, não ma tinham inspirado os períodos de um estilista. O poeta que a sugerira não tinha metro, nem rimas ... . O que eu, filho da terra e perdidamente enamorado dela, não conseguira demasiando-me no escolher vocábulos, fizera-o ele usando um idioma estranho gravado do áspero dos dizeres técnicos.

As leituras de Euclides da Cunha sobre a Amazônia haveriam de prosseguir em Manaus, onde ele chegaria em 30 de dezembro de 1904 e ali esperaria por três meses, juntamente com o representante do Peru, para que fossem efetivamente iniciados os trabalhos da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus. Neste período a monografia de William Chandless sobre o Purus, fornecida por Domício da Gama ainda antes da partida de Euclides da Cunha para a Amazônia, foi objeto de permanente consulta, e o nome do inglês se fez presente nas cartas escritas de Manaus para os amigos (Cunha, 1997, p. 224). O mapa do Purus, de autoria de Chandless, foi devidamente ampliado pelo assistente Arnaldo Pimenta da Cunha, para servir de base ao trabalho demarcatório.

A viagem da Comissão Mista durou do início de abril ao final de outubro de 1905, tendo se desenrolado em condições pouco propícias, porque coincidente com o período de vazante dos rios, diminuindo as facilidades da navegação a vapor e aumentando os trechos que deveriam ser percorridos em canoas. O reconhecimento foi feito ao longo de três mil e duzentos quilômetros, e dele resultou um relatório assinado pelos representantes brasileiro e peruano,9 além de ofícios e notas complementares escritas por Euclides da Cunha.
Esta viagem, que se destinava a servir para "um simples reconhecimento hidrográfico" (Cunha, 1994, p. 270), durante o qual se fariam as determinações de coordenadas geográficas, se converteria, para Euclides da Cunha, também numa missão científica ao completar a tarefa iniciada por Chandless para desvendar "aos olhos da ciência" o mistério da ligação das bacias dos rios Madre de Dios, Ucaiale e Purus.

Nas ‘Notas complementares’ ao Relatório,10 escritas por Euclides da Cunha, já no Rio de Janeiro, em 1906, é apresentada a história do conhecimento do rio Purus, ressaltando que até o início da década de 1860 persistiam dúvidas quanto a se este rio seria um prolongamento do Madre de Dios ou um desaguadouro do lago Roguagoalo, na Bolívia. Mesmo em 1868 havia quem o tratasse como sendo o lendário Amaru-Maiu ou Rio das Serpentes, dos incas, traçando-o a partir dos Andes: "Diante de juízos tão contrapostos, compreende-se que a Royal Geographical Society, de Londres, comissionasse, em 1864, um dos seus membros, William Chandless, para resolver o controvertido assunto, ou, como se ousou dizer por muito tempo, o problema do Madre de Dios e do Purus" (Cunha, op. cit., pp. 140-3).

William Chandless fez sua primeira viagem à Amazônia em 1861, quando percorreu dois mil quilômetros entre Porto Velho e a confluência do Tapajós com o Amazonas, escrevendo vários artigos sobre a navegabilidade de tributários do rio Amazonas, publicados na revista da Royal Geographical Society e que são considerados como uma importante contribuição para o conhecimento da Amazônia (Dickenson, 1994, pp. 134-6).

Por causa das suas pesquisas no rio Purus, entre 1864 e 1865, quando percorreu aproximadamente três mil quilômetros, a Royal Geographical Society, em 1866, premiou William Chandless com a Medalha de Ouro Victoria, destacando que o mesmo realizou seu trabalho "por puro amor à ciência, para solucionar um problema geográfico, e que é plenamente sucedido" (Leonardos, 1970, pp. 172-3), o que resultara em profundas modificações nos mapas da América do Sul (Dickenson, op. cit., p. 135). Em homenagem ao geógrafo inglês, foi dado o seu nome a um dos afluentes do Alto Purus, que seria percorrido por Euclides da Cunha.

Contemporâneos de William Chandless, dois brasileiros também haviam realizado expedições pelo Purus. Um deles foi Manuel Urbano, que, assim como o inglês, também emprestaria seu nome a um dos afluentes do Purus. Euclides da Cunha (1994, p. 144) descreve-o como "um cafuz destemeroso e sagaz", no qual William Chandless via "um mulato de pouca instrução, mas que sabia usar a grande e natural inteligência" (Chandless, apud Leonardos, 1970, p. 174). Antes de Chandless, em 1860, sob as ordens do governo provincial do Amazonas, Manuel Urbano percorrera um longo itinerário com o objetivo de verificar a existência de uma comunicação entre os rios Purus e Madeira. "Efetuadas por um homem inculto, apenas aparelhado de um tino admirável, essas viagens, entretanto, forneceram os primeiros dados seguros a respeito do Purus e de três dos seus maiores afluentes" (Cunha, 1994, p. 145). As viagens de Manuel Urbano serviram de base para explorações posteriores do Purus, inclusive as de Chandless.

Como conseqüência da sua experiência e conhecimento do rio, Manuel Urbano acompanhou, em 1862, o engenheiro militar e professor de geologia e mineralogia da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, João Martins da Silva Coutinho,11 encarregado pelo governo provincial da realização de levantamento do Purus, que, além dos elementos hidrográficos, incluía também a geologia, a flora e as tribos da região. O trabalho de Coutinho serviria de referência a Euclides da Cunha para a elaboração das suas ‘Notas complementares’ ao relatório da comissão.

William Chandless explorou o rio Purus para desvendar a questão das suas ligações com o Madre de Dios, um dos aspectos da ligação das bacias do Amazonas e do Prata, e fixou os pontos principais do Purus em coordenadas, realizando um trabalho que seria, durante muitos anos, a principal referência sobre a região, e concluiu que aquele rio não era uma extensão do Madre de Dios. No entanto, por não ter chegado até os pontos mais extremos da cabeceira do Purus, resguardou-se de um juízo definitivo sobre o assunto: "certainly the simplest solution of the problem would be a descent of the Madre de Dios from the cordilheira" (Chandless, apud Cunha, 1994, p. 148).
Depois de William Chandless, o único reconhecimento que se fez até as cabeceiras do Purus foi o realizado pela Comissão Mista Brasileiro-Peruana, cujos resultados, em grande parte, são um complemento dos trabalhos do inglês, conforme reconhece o próprio Euclides da Cunha (op. cit., p. 150). O que de mais importante diferenciou os trabalhos do membro da Royal Geographical Society dos realizados pela comissão foi que, chegando às cabeceiras do Purus, num trecho onde o mesmo se reparte em dois braços, um dos quais leva o nome de Cavaljani, e o outro leva o nome do rio principal, William Chandless resolveu seguir por este último, não prosseguindo além de poucas milhas, enquanto a comissão decidiu subir o Cavaljani, chegando até a parte mais extrema da origem do Purus.

Do ponto em que divergira da direção tomada por Chandless em diante, a comissão avançaria "para lugares nunca cientificamente explorados". Chegaria, enfim, ao varadouro,12 no qual cinco minutos de marcha levaria ao divisor das águas dos rios Purus e Madre de Dios (Cunha, 1994, p. 155).13 O próprio relatório da comissão afirmava tratar-se de uma região conhecida pelos caucheiros, ainda mais incultos que Manuel Urbano, que percorriam a região e teriam construído os varadouros, mas este trecho do Purus ainda não havia sido "apresentado às ciências geográficas", capazes de torná-lo finalmente integrado à cultura (Cunha, op. cit., p. 118).

Utilizando-se do recurso de imaginar William Chandless seguindo o trecho final percorrido pela comissão, Euclides da Cunha (op. cit., p. 149) considera que, chegando até esta parte mais extrema do Purus, o inglês, num só dia chegaria a muitas conclusões valiosíssimas: constataria a independência da bacia do Purus em relação ao Madre de Deus — já presumida por Chandless — e a proximidade das nascentes dos rios Purus, Madre de Deus e Ucaiale, que justificaria, em parte, as confusões que durante anos persistiram quando se tratava das origens destes rios, revelando assim um "fato geográfico, absolutamente sem par".

Como este foi o roteiro seguido pela comissão, e não por William Chandless, talvez Euclides da Cunha estivesse chamando atenção para a sua própria realização. Nos meios científicos a valorização da ‘descoberta’ é um dos aspectos mais consagrados. Tratando-se de Euclides da Cunha, que buscava o reconhecimento da comunidade científica, revelar para o mundo culto a existência de um novo "fato geográfico" certamente se constituía num elemento de grande importância.

A comparação entre as cartas hidrográficas elaboradas por William Chandless e pela Comissão Brasileiro-Peruana mostra diferenças que são atribuídas por Euclides da Cunha ao caráter divagante do rio Purus, "um rio em plena evolução geológica, modificando ainda de maneira sensível o seu traçado". O Purus seria parte de um mundo em formação, modificando o seu leito numa velocidade tal que, no prazo de quarenta anos, o mesmo local onde o "notável cientista inglês" navegou, a comissão encontrou coberto de imbaúbas, enquanto trechos atravessados pela comissão em canoas corresponderiam a "belos recantos de florestas" contemplados por Chandless (Cunha, op. cit., pp. 122-7). As considerações de Euclides da Cunha sobre o caráter divagante do rio Purus, baseadas nas concepções de "ciclo vital" dos rios de Morris Davis, mostram a sua atualização em relação às teorias hidrográficas mais respeitadas na virada do século XIX, o que permitiu a Roquete-Pinto (1919, pp. 66-7) considerá-las como representando "um dos mais importantes fatos geológicos adquiridos pela ciência brasileira".

No Relatório da Comissão de Exploração não existem indicações geológicas capazes de elucidar as relações entre topografia e estrutura dos terrenos estudados. Durante a viagem foram recolhidas amostras de fósseis e rochas, posteriormente encaminhadas ao Museu Paraense para que fossem apreciadas pelos "raros competentes no assunto" (Cunha, 1984, p. 133).

Na carta de 28 de outubro de 1905, que trata do recebimento dos materiais enviados por Euclides da Cunha, Emílio Goeldi (apud Tocantins, 1992, p. 123) lamenta a impossibilidade de os mesmos serem avaliados pelo geólogo do museu, que só chegaria ali no ano seguinte, ou por Jacques Huber, ausente do museu naquele momento, mas apresenta uma "exposição rápida" do que havia conseguido observar:

"impressionou-me principalmente de encontrar lá, como fato geológico integrante de feição predominante, outra vez o elemento, como aqui no baixo Amazonas — o grés limonítico, o Pará Sandstein, como ele ficou batizado pelos nossos geologistas no museu. É a mesma pedra, ora com grão de areia fina, ora com seixos pequenos e maiores, reunidos em conglomerados, ligado e cimentado (sic) por óxido de ferro, que na superfície e pela ação da água e dos agentes atmosféricos se transformam em limonitos (‘Brauneisen’) . ... O grés limonítico deve a sua origem — tanto quanto me lembro das minhas conversas com os nossos geologistas — a vastas inundações, por dilatado tempo, de água doce".

Como acontecera em Os sertões, Euclides da Cunha (1994, p. 125) iria retrabalhar o texto de um cientista, sem a preocupação de citar a fonte. Estas considerações de Goeldi viriam aparecer no relatório, com a seguinte redação:

Apenas conseguimos notar como fator preponderante desde a confluência do Solimões, até a foz do Chandless, o mesmo grés limonítico que sob o nome cientificamente consagrado de Parasandstein forma a base dos terrenos amazônicos.

É a mesma rocha, já finamente granulada, já com seixos conglomerados pelo óxido de ferro — e uma disposição estratigráfica idêntica. E, como ela, francamente sedimentária, se originou no seio de vastas massas de água doce, conclui-se com segurança que o Purus até quase às suas cabeceiras, a exemplo da maioria dos tributários do Amazonas, se traduz como um resto de amplíssimo lago que na época terciária, após a sublevação dos Andes, cobria tão desmedidas superfícies.

Concluído o Relatório da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus em dezembro de 1905, Euclides da Cunha retornou ao Rio de Janeiro. Durante os primeiros meses, dedicou-se à tarefa de revisão do Relatório e à elaboração das ‘Notas complementares’, que seriam incorporadas àquele, quando da publicação pelo Itamaraty em 1906.

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