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04 julho 2006

EXTRATIVISMO DE MADEIRA NA AMAZÔNIA (1)

Ocupação cabocla e extrativismo madeireiro no alto capim: uma estratégia de reprodução camponesa

Gabriel Medina
Licenciado Pleno em Ciências Agrárias, MSc., Consultor do Centro para a Pesquisa Florestal Internacional (CIFOR). Endereço: Convênio Embrapa/CIFOR, Tv. Enéas Pinheiro s/n, Belém, Pará. CEP. 66.095-100. E-mail: g.medina@cgiar.org

[artigo originalmente publicado na revista científica ACTA AMAZÔNICA VOL. 34(2) 2004: 309 - 318]

RESUMO
Com o avanço da atividade madeireira através da Bacia Amazônica, comunidades localizadas ao longo das fronteiras madeireiras passam a ter oportunidade de vender os direitos de extração da madeira de suas áreas. O valor localmente percebido e as decisões das populações locais sobre a forma de uso de seus recursos contrastam fortemente com as visões globalmente construídas sobre o valor da floresta tropical. Este valor local é baseado em representações que consideram a importância local dos produtos florestais e no contexto em que estas representações são construídas. Para explorar esta temática, o artigo começa com uma reconstrução do histórico de uma comunidade cabocla enfocando nas dinâmicas de uso da floresta. Para os comunitários, a madeira sempre representou uma herança que poderia ser gasta ao longo do tempo. A madeira foi o principal produto da floresta com valor de mercado e, até recentemente, sua extração não reduziu significativamente o acesso aos outros produtos florestais. A madeira, então, foi vista como uma herança com valor de troca e uso não conflituoso. Quatro fatores sócio-econômicos influenciaram a continuidade das vendas de madeira mesmo quando as perdas no consumo de produtos não madeireiros ficaram evidentes: 1) relações paternalistas entre os compradores da madeira e os caboclos; 2) dificuldades de gestão comum dos recursos; 3) especialização na extração de madeira e dependência de produtos externos e; 4) crescente envolvimento no mercado que demandou maior quantidade de dinheiro para suprir novas necessidades.

Palavras-chave: extrativismo, produtos florestais não madeireiros (PFNM), caboclo, desmatamento, Amazônia.

INTRODUÇÃO

Raramente mencionado, um dos grandes impactos da construção de rodovias através da Amazônia brasileira é o crescente contato entre empreendimentos grandes e modernos e pequenas comunidades rurais remotas. Assim que as rodovias permitem que fazendeiros e madeireiros penetrem em áreas antes inacessíveis para eles, comunidades caboclas rapidamente se descobrem vivendo entre novos e poderosos vizinhos.

Em seu processo de expansão na Amazônia, a atividade madeireira tem implantado um modelo de grande crescimento econômico inicial seguido de um rápido colapso (Veríssimo et al., 2002), que tem levado a uma tendência constante de migração para novas fronteiras (Schneider et al., 2000). O rápido crescimento da indústria madeireira tem sido garantido, em parte, pelo sucesso dos madeireiros em convencer pequenas comunidades, a vender os direitos de exploração de sua floresta para a extração de madeira.

Para comunidades que se encontram em fronteiras de expansão da atividade madeireira e ainda possuem áreas de floresta - geralmente com grande valor para sua subsistência, mas onde também se encontram madeiras de alto valor comercial - a questão do valor dos produtos florestais se impõe constantemente. Diante de freqüentes opções pela venda da madeira, torna-se imperativo indagar: por que comunidades com áreas de floresta optam pela exploração da madeira com ganhos limitados ao momento da venda, enquanto que o aproveitamento dos Produtos Florestais Não Madeireiros (PFNM) poderia se dar por tempo indeterminado?

Considerando a discrepância entre a ênfase global à alternativa sustentável do extrativismo de PFNM e as escolhas econômicas das comunidades, torna-se essencial avaliar o significado do valor da floresta a partir da perspectiva local. A valorização dos recursos florestais pelas comunidades é resultado de representações feitas sobre a importância da floresta e do contexto em que tais representações são construídas. Como mostra Godelier (1984), a relação do homem com a natureza implica na elaboração de representações e interpretações compartilhadas pelos membros da sociedade. Segundo o autor, as diferentes formas de intervenção individual e coletiva sobre a natureza são baseadas nestas representações e interpretações. Estas representações, por sua vez, são fortemente influenciadas pelo contexto em que acontecem. Segundo Luckert e Campbell (2002:230) "os valores que as pessoas atribuem para os recursos florestais são chaves para compreender a racionalidade de suas decisões". É neste sentido que muitos moradores da floresta podem estar prontos para convertê-la para outros usos, mesmo considerando sua importância, se a opção está dentro de seu alcance e se as circunstâncias os levam a isto (Henkemans, 2001).

Para explorar esta temática, este trabalho foi desenvolvido a partir da reconstrução do histórico de uma comunidade cabocla e da forma como ela se apropriou de seus recursos florestais. A comunidade estudada, comunidade do Quiandeua, pertence ao município de Ipixuna-do-Pará e localiza-se às margens do Rio Capim. Na comunidade moram, hoje, 206 pessoas, das quais 118 são homens e 88 são mulheres. É um grupo composto essencialmente por negros, constituído depois de diversas etapas de migração de famílias que residiram antes em áreas do Baixo Capim e seus afluentes. São 32 famílias vivendo ao longo dos aproximadamente 2.300 hectares pertencentes à comunidade. A área não possui divisão de lotes - é de propriedade comum.

Este trabalho está dividido em três partes. Primeiro, cuida-se do histórico distante do grupo, desde sua chegada, quando desenvolveu o extrativismo da madeira em prancha, até o período em que começa a trabalhar tirando madeira em rolos para vender para serrarias que se estabeleceram nas proximidades. Depois, retrata-se a chegada das empresas madeireiras que passam a comprar os direitos de exploração da madeira em tora da área da comunidade. Na terceira parte é discutida a representação feita sobre os recursos florestais e os fatores contextuais que aí exerceram influência.

METODOLOGIA
Como neste trabalho o interesse é pelo valor atribuído aos recursos florestais pelos comunitários, o esforço metodológico esteve centrado em buscá-lo nos discursos dos membros da comunidade. Para ter acesso a estes discursos, a opção adotada foi a de reconstruir o histórico de apropriação dos recursos florestais pela comunidade e, a partir das construções feitas pelos entrevistados, buscar compreender a representação da importância destes recursos e o contexto em que foi construída.

O levantamento do histórico se desenvolveu através de contatos realizados em cinco viagens de campo, ao longo de 2001 e 2002, que compreenderam, no total, 45 dias de convivência com a comunidade. Para a reconstrução do histórico, as entrevistas se deram de forma semi-estruturadas buscando associar a casualidade e a liberdade das conversas com a necessidade de se percorrer um roteiro pré-estabelecido, contendo questões essenciais para a construção do trabalho. Para iniciar as entrevistas foram utilizadas perguntas abertas do tipo: me conte como era a vida aqui quando a senhora se casou? A partir, daí perguntas mais específicas, do tipo: o que foi feito com o dinheiro recebido pela venda da madeira deste período?, foram priorizadas buscando aprofundar temáticas que pudessem ser de interesse do interlocutor.

RESULTADOS

Parte 1 de – 1920 a 1985 – Madeira Branca das Margens dos Rios e Igarapés

De 1920 a 1935 – Os Chegantes

Entre 1897 e 1911 Belém vivenciou uma série de reformas urbanas patrocinadas pelo boom da borracha. A cidade precisava ser saneada e reorganizar seu espaço para suportar o crescimento demográfico e se preparar para o futuro (Derenji, 1994). A capital do Pará e as cidades próximas construíam, e a demanda por madeira era grande.

O Rio Capim tem uma corrente muito forte e deságua no Rio Guamá, próximo a Belém. Isto o tornava uma das fontes imediatas da madeira utilizada para as construções neste período. No entanto, a madeira mais acessível, aquela próxima aos rios e igarapés, de onde saia boiando, já não era mais encontrada com facilidade no Baixo Capim. Começava, então, o processo de ocupação e extração madeireira no Alto Capim.1

A história do grupo de que trata este estudo começa quando, na década de 1920, Salazar, um caboclo vindo de Avencar (Baixo Capim), se estabeleceu na área que hoje é da comunidade do Quiandeua, como entreposto comercial para extratores de madeira branca que subiam o rio.

Os caboclos mais velhos ainda têm muito vivas as lembranças do patrimônio erguido ali por Salazar. As entrevistas mostram que tudo foi constituído à custa de muito trabalho, de boas relações com o "patrão" que lhe aviava as mercadorias para sua cantina e do aviamento de extratores locais de madeira. O comerciante do Quiandeua fornecia o rancho necessário para os "serradores de serrotão"2 que subiam o rio durante 10 a 15 dias de "casco de remo de faia"3 e ficavam de cinco a seis meses no Alto para voltar com dúzias e dúzias de pranchas serradas de madeira branca, principalmente de virola (Virola sp.; no Capim conhecida como envirola), marupá (Simarouba amara), freijó (Cordia sp.) e faveira (Parkya sp.). O próprio Salazar tirava pouca madeira; o comércio e os plantios eram suas principais atividades.

Para as famílias que moravam no Alto, as dificuldades de acesso aos centros urbanos eram grandes. Comprava-se pouco, mas era preciso comprar aquilo que não se produzia: o rancho era sabão; para roupa, compravam "o corte"; para a agricultura, terçado, machado e enxada; o sal era distribuído pelo governo em barras que eram trituradas e a carne invariavelmente vinha da caça abundante e dos peixes. Os filhos desta época ainda contam que o açúcar para adoçar o café era obtido da garapa da cana "cortada de manhã bem cedinho"; o azeite para as lamparinas, embora comprado por muitos, algumas vezes era produzido a partir de uma planta chamada carrapatinho. Para fazer fogo, usavam "uma isca (tipo espuma de colchão) que dá no 'pau-de-isca', é um pau amarelo. Eles (os antigos) enrolavam em uma pedrinha, tipo pedra de isqueiro (que era comprada) e batiam, tá!" (Beca, homem com 44 anos).
Depois da morte de Salazar, no começo da década de 1930, é que os homens que moravam no Quiandeua começaram a subir o rio com maior intensidade e a exploração de madeira serrada se tornou a atividade mais importante para o sustento das famílias. No Alto, com o desenvolvimento do comércio de madeira, começaram a chegar novas famílias que, em geral, foram se estabelecendo individualmente nas áreas de terra-firme das margens do rio. Vinham do Baixo em busca de espaços que apresentassem possibilidades para uma vida melhor do que nos seus locais de origem: "viemos porque lá ficou uma situação difícil de sobreviver, muita gente, dificuldade muito grande, não tinha completamente alimentação, só tinha que ir para o "braço da balança" (compra), mais do que se arrumar da alta floresta e da juquira". (Antonino, homem com 60 anos). Dos entrevistados, quatro pessoas que chegaram ainda crianças, vindos dos igarapés Nauerá, Maracaxi, Pirajauara e Caratateua, no Baixo Capim e alcançaram o Alto em um processo gradativo de subida do rio. Moraram antes em pelo menos dois outros lugares, conheceram melhor o Alto e acabaram se casando com parentes de Salazar. Se estabeleceram e, em alguns casos, acabaram trazendo mais alguns membros da família4.

De 1935 a 1975 - Extração de Madeira Branca em Prancha

A madeira em prancha, tirada no serrotão, era entregue aos "patrões" que exerciam grande poder sobre os comunitários por serem praticamente o único meio de contato com o centro urbano e permitirem a troca dos produtos da floresta pelos da cidade.5 McGrath (1999) ressalta que, para os que moravam no interior e tinham dificuldades de transporte, o endividamento com o "patrão" chegava a ser até uma forma de segurança, uma maneira de construir a continuidade nos intercâmbios. As dívidas eram comuns e os extratores se viam obrigados a subir o rio para tirar a madeira e pagar a dívida e, caso não conseguissem, precisavam voltar no outro ano, sob pena de perder o crédito e ser-lhe tomado o serrotão.

Neste tempo, o rancho trazido pelo patrão era essencial para garantir o acesso a alguns produtos que as famílias do Capim não produziam ou mesmo consideravam mais vantajoso que fossem trazidos de fora. A variedade dos produtos adquiridos do mercado aumentou, pois embora a coleta de produtos florestais (principalmente de caça) fosse grande, pouco trabalho estava sendo dedicado à agricultura. As atividades de agricultura perderam importância porque as famílias conseguiam com a madeira uma melhor remuneração para seu esforço de trabalho.

Este foi o período áureo da extração de madeira serrada no Alto Capim. Como garantisse o sustento das famílias através da troca pelo rancho, a madeira se tornou a principal atividade a ocupar a mão-de-obra local. Além da madeira, eram negociados com os patrões o látex da maçaranduba e couros de animais silvestres, mas estes produtos tiveram seu mercado reduzido a partir de 19606. Também eram utilizados e negociados com os marreteiros óleo de copaíba (Copaifera spp.), cipó-titica (Heteropisis flexuosa), breu (Protium sp.), jutaicica (resida da árvore de jatobá, Hymeneae coubaril) e varas de madeira (várias espécies). Até hoje, é possível vender estes produtos com relativa facilidade, porém, como no passado, quando as vendas acontecem, a quantidade negociada dos produtos é pequena. A madeira, por outro lado, tinha a vantagem de ter um valor de troca considerado alto e uma demanda constante de um comércio dificilmente saturável.

De 1975 a 1983 - Madeira Branca em Rolo

No Quiandeua, as mudanças causadas pela construção da Rodovia Belém-Brasília só começaram a ser percebidas a partir da década de 1970, quando a extração de madeira em prancha perdeu competitividade depois da chegada das serrarias e do loteamento das áreas que serviam como fonte de madeira. Como alternativa, as famílias começaram a procurar áreas não loteadas mais próximas à comunidade para extrair madeira em rolos7 e vender para duas serrarias pequenas que haviam se instalado nas proximidades. As madeiras brancas eram as preferidas pois, por serem menos densas, podiam ser transportadas para os rios e dali saírem boiando. Quando madeiras mais densas e com grande valor de mercado eram encontradas próximas aos fluxos d'agua, eram amarradas aos rolos de madeira branca para serem transportadas. Espécies como virola (Virola sp.), faveira (Parkya sp.), freijó (Cordia spp.), breu (Protium sp.), amapá (Brosimum parinarioides), pará-pará (Jacaranda copaia), morototó (Schefflera morototoni), timborana (Albizia sp.), e pau d'arco (Tabebuia sp.) foram as mais procuradas.

Neste tempo, formavam-se grupos de 3 a 5 moradores e cada grupo extraía no mínimo 50 rolos a cada ano. A madeira era retirada no inverno e os extratores trabalhavam no máximo 3 meses por ano, "mas o serviço era puxado para aproveitar a cheia". O acesso aos recuros florestais era livre. Valia a lei: "trabalhou, tem o direito de levar". Neste período, instauraram-se novas formas de negociação e o sistema de aviamento de rancho para os extratores caiu. A madeira em rolo do Alto Capim passou a ser negociada ou com os donos de serrarias ou com intermediadores (que revendiam para as serrarias) e o pagamento passou a ser em dinheiro. Mas, na maior parte dos casos, os extratores trabalharam subordinados aos donos das serrarias, que financiavam as extrações e, portanto, possuíam controle do processo e sobre seu produto - a madeira.

Com a maior proximidade com o comércio e uma vida social crescendo proporcionalmente ao aumento do número de moradores, passou a ser maior a demanda das famílias por produtos provenientes da cidade. Neste período, o extrativismo passou a ser importante para complementar a economia familiar. A quantidade e variedade de produtos de subsistência provenientes do comércio aumentou: café, açúcar, sabão, óleo, carne, arroz e feijão. Ainda era fácil conseguir peixe no rio, mas a caça já havia diminuído consideravelmente, provavelmente por causa dos desmatamentos provocados pelas fazendas que já cercavam a comunidade.8

A maior dedicação ao extrativismo da madeira em rolo durou até a redução da quantidade de árvores mais próximas aos cursos d'agua, por volta de 1983. Junto com a redução dos recursos, a chegada dos primeiros madeireiros, que se responsabilizavam pela retirada da madeira, marca o fim da extração da madeira em rolo e o início da exploração em terra-firme.

Parte 2 - de 1983 a 2002 - Madeira Vermelha da Terra Firme

O rápido e recente crescimento da indústria madeireira na Amazônia e a liderança do Pará neste processo são dignos de nota. Metade das empresas madeireiras do Pará iniciou suas atividades na década de 1990, 39% se estabeleceram na década de 1980 e apenas 11% foram instaladas durante os anos 70 ou antes (Veríssimo et al. 2002). A exploração madeireira, no entanto, tem se dado de forma predatória e sua economia tem seguido o modelo crescimento-colapso (Veríssimo et al., 2002). Segundo o modelo, depois de um rápido crescimento na primeira década, por volta do vigésimo ano de extração ocorre a escassez de madeiras de valor comercial e a economia local entra em crise (Schneider et al. 2000).

A extração da madeira de acordo com este modelo predatório leva a um processo de migração constante das empresas madeireiras em busca de novas áreas para explorar. O trabalho de Souza Jr. et al. (2000) mostra que 73% do Estado do Pará é coberto por florestas que, em sua maior parte (77%), são economicamente acessíveis à atividade madeireira.9

No Quiandeua, esta expansão da atividade madeireira começou a ser percebida no início da década de 1980, quando os madeireiros alcançam o Alto e passam a negociar com comunidades e fazendeiros a compra dos direitos de exploração da madeira de suas florestas. Para as comunidades, depois da escassez das fontes de madeira branca, os madeireiros representaram novas possibilidades para a obtenção de recursos com a venda de madeira e para o estabelecimento de relações com grupos de maior poder econômico.

A extração passou a se dar em áreas de terra-firme que são mais ricas em diversidade de espécies e onde há predominância das chamadas madeiras duras, ou vermelhas, mais valorizadas no mercado. A madeira passou a ser transportada em caminhões e balsas. Os primeiros a chegar foram os madeireiros pequenos que revendiam as toras para serrarias rio abaixo e atuaram em quatro extrações dos anos de 1983 a 1990.10 Só a partir da década de 1990, empresas grandes, vindas de Paragominas, Ipixuna e Tomé-açu, alcançaram o Alto Capim.

Dentre os madeireiros grandes (que exploraram a área a partir de 1990), é possível diferenciar aqueles que realizaram explorações seletivas (quatro empresas, que atuaram de 1990 a 1995) daqueles que exploraram de forma predatória (cinco empresas, que atuaram de 1997 a 2003), explorando uma variedade crescente de espécies com diâmetros de árvores cada vez maiores. Com as explorações seletivas o número de espécies e a quantidade de árvores derrubadas haviam sido relativamente pequenos. Como resultado, o consumo de PFNM ainda era consideravelmente alto. A pesquisa de Shanley (2000) mostra que a média de consumo de PFNM pelas 30 famílias da comunidade era bastante significativa. Em 1994, o consumo médio de cipós por família foi de mais de 20 quilos, o de frutas mais de 400 quilos e o de caça mais de 130 quilos.

A continuidade das extrações mesmo depois de tantos eventos de venda da madeira, é explicada por três fatores. O primeiro, conforme já havia constatado Veríssimo et al. (1996), se deve à tendência de aumento, em áreas de fronteira mais antiga, da quantidade de espécies de interesse comercial. O segundo refere-se ao fato de que árvores de diâmetro cada vez menor passaram a ser procuradas pelos madeireiros. Além disso, no Quiandeua, como as explorações não se concentraram em um só ponto, a maior parte da área havia sido explorada uma única vez. O levantamento de Veríssimo et al. (1996) é bem ilustrativo também no sentido de mostrar que mesmo depois de vários danos com a extração madeireira, uma área de floresta ainda apresenta grande potencial para futuras explorações.11

Nas explorações consideradas predatórias, uma das conseqüências foi um incêndio acidental em 1997 em mais de 500 hectares de área recém explorada.12 Decorrente dos efeitos da extração madeireira associados aos efeitos desastrosos da queimada, o consumo de PFNM pelas famílias da comunidade diminuiu significativamente tanto por sua menor oferta como pelo menor acesso aos recursos restantes. Discutindo a existência de um ponto limite até onde as florestas são capazes de resistir à exploração madeireira e continuar sendo fonte de PFNM, Shanley et al. (2002) mostram que, para o Quiandeua e duas comunidades vizinhas este ponto pode ser identificado no ano de 1997. Entre 1993 e 2003, por exemplo, ocorreu uma queda de 80% no consumo médio da fruta do piquiá (Caryocar villosum) pelas famílias das comunidades (Shanley, P. & Medina, G., 2004). Neste sentido, pode-se afirmar que, a partir de 1997, passa a existir um claro conflito de uso entre os produtos madeireiros e os não madeireiros. A figura 1 mostra a evolução da área e do número de espécies exploradas na comunidade.


Nas formas de negociação com os madeireiros pequenos, as relações se mantiveram bastante personalizadas. Mesmo com alguns madeireiros grandes as amizades e a troca de favores ainda estiveram presentes em alguns momentos. No entanto, com a chegada das grandes empresas, foi cada vez maior a despersonalização das relações entre a comunidade e os compradores. Não obstante, os caboclos do Capim permanecem subjugados por um mecanismo que, nos resultados alcançados, não se difere muito do sistema de aviamento em vigor anteriormente. Ocorre o aliciamento dos comunitários pelos madeireiros em um sistema que consiste no pagamento adiantado e em espécie de parte do valor negociado pela madeira. Como uma "isca", o dinheiro adiantado assegura o interesse dos comunitários na negociação. Além disso, os madeireiros buscam identificar alguém com capacidade de liderança nas comunidades para aliciar e sempre evitam os espaços de discussão abertos a todos os comunitários.

Novamente aqui, no contato com os madeireiros, pode-se verificar a dependência mútua entre vendedores e compradores. Os comunitários dependem dos madeireiros para que sua madeira possua valor de troca, pois eles mesmos não podem extraí-la e vendê-la (uma vez que não possuem o maquinário e treinamento necessários). Por sua vez, os madeireiros precisam da matéria prima, da força de trabalho da comunidade para ajudar na extração e de seu silêncio para garantir a extração da madeira ilegalmente. A extração de floresta não plantada é considerada legal quando a madeira é proveniente de área com autorização para o desmatamento concedida dentro do limite máximo de 20% da propriedade (M.P. 2166-67/01) ou de planos de manejo florestal sustentável aprovados pelo IBAMA (Guimarães, 2003) 13. Em todos os casos de venda no Quiandeua isto não aconteceu.

Na extração da madeira vermelha, o pagamento foi feito inicialmente pela quantidade de árvores transportadas e depois por área explorada, mas o dinheiro resultante não era mais o que mantinha as famílias. De fato, o dinheiro proveniente da venda da madeira foi importante para proporcionar a aquisição de bens substitutos no mercado. Este poder de compra garantiu tanto o acesso a bens de subsistência como também a bens de consumo. O visitante que porventura entrar em algumas casas do Quiandeua onde moram as famílias com maiores posses, certamente encontrará um fogão a gás; camas compradas no mercado de Ipixuna; colchões; guarda-roupas com portas com espelhos; aparelhos de som e bicicletas. A última venda também representou a possibilidade real de tentar consertar um barco ganho da prefeitura de Ipixuna e conseguir comprar gado, coisa que não havia sido possível somente com o dinheiro da venda da farinha (principal produto agrícola comercializado).
No entanto, talvez mais que o dinheiro ou o que foi feito com ele, o que está mais vivo na memória dos entrevistados são os favores prestados pelos madeireiros. Eles construíram o barracão da igreja (que hoje não existe mais), ajudaram usando o caminhão para buscar madeira para construções na comunidade e farinha na roça, emprestaram a motossera (algumas famílias já faziam roça de motossera) e doaram combustível. A gratidão das famílias da comunidade pode ser vista neste depoimento: "ele (o madeireiro) não dava o coração porque não podia tirar" ("Dona" Teodora, mulher com 38 anos).
Nesta fase, mesmo que a gestão conjunta dos recursos madeireiros já estivesse definida, existiram fortes influências individuais na decisão do grupo sobre as vendas. Como comentou o coordenador da comunidade, "administrar o que é meu é fácil, mas administrar o que é nosso é difícil. Nós combinamos, não era para vender a madeira, mas também não era para colocar roça na mata, que a roça também estraga, mas no meio de todos quando quatro fazem diferente, estraga. O cara começava a fazer errado, mas se a gente fosse falar ele poderia não gostar e a gente achou melhor vender tudo logo" (Ocário, homem com 27 anos).

(ARTIGO CONTINUA EM OUTRO POST)